Digital Story Telling

A Arte de Contar Histórias na Era Digital

1. A Primeira Oficina de Digital Story Telling no Brasil

De 18 a 20 de Novembro de 2004 realizou-se no Information Technology Academy Center (ITAC) da Microsoft Brasil, nas dependências da Fundação Bradesco, na Fazenda Sete Quedas, em Campinas, SP, a Primeira Oficina Brasileira de “Digital Story Telling“. A atividade fez parte do Programa “Parceiros na Aprendizagem” (Partners in Learning).

Eu tive o prazer de preparar e coordenar a oficina, a pedido de Márcia Teixeira, então Gerente Sênior de Educação da Microsoft Brasil, mas, na apresentação, contei com a colaboração de várias pessoas.

Havia vinte participantes, todos eles consultores da Microsoft Brasil na área educacional, ou oriundos de organizações parceiras da Microsoft no Brasil (a própria Fundação Bradesco, o Cidade Escola Aprendiz, o Instituto Ayrton Senna, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e o Ministério da Educação). A oficina teve duração de 20 horas, tendo início às 8h30 da Quinta-feira, dia 18, e concluindo com almoço no Sábado, dia 20. Os últimos participantes deixaram as dependências do ITAC depois das 15h.

O sucesso da oficina pode ser medido pela qualidade dos resultados: vinte histórias inéditas, produzidas inteiramente durante a oficina (com exceção de uma, a do saudoso Alexandre Gallotta), que podem ser vistas através de Windows Media Player. Todas as histórias são primeira produção de seus autores. Na verdade, no caso de uma participante, que produziu uma segunda história à noite, em casa, com seu marido, a segunda história, incluída na lista, é, literalmente, uma segunda produção…

Devo registrar que as condições de infraestrutura tecnológica e de apoio técnico que o ITAC da Microsoft na Fundação Bradesco oferece foram excepcionais.

Em termos de infraestrutura tecnológica, cada participante tinha acesso a um microcomputador pessoal, de última geração, com acesso à Internet, webcam, microfone, caixas de som embutidas, tocador de DVD/CD/CD-ROM/CD-R e gravador de CD-R/RW. Além disso, havia dois computadores adicionais, com scanners e impressora, além de uma câmera fotográfica digital para quem, porventura, não houvesse trazido a sua e precisasse, emergencialmente, tirar uma fotografia. O sistema de projeção era fantástico e uma novidade na época, no Brasil, utilizando a tecnologia “Smart Board“. Hoje isso pode parecer lugar comum, mas doze anos atrás era raro.

Em termos de apoio técnico, contamos com toda a equipe do ITAC, competentemente coordenada por Rubem Paulo Torri Saldanha (que, aliás, também participou da oficina e coordenou todo o apoio).

Em resumo: quem verificar os resultados poderá constatar o quanto se pode fazer, em tão pouco tempo, quando há interesse e motivação e tecnologia adequada.

Tecnologia adequada é aquela que é eficaz (faz o que precisa ser feito) e eficiente (faz o que precisa ser feito com a menor quantidade possível de recursos e com uma curva de aprendizagem mínima). A tecnologia adequada é aquela que nos ajuda, em vez de atrapalhar… É aquela que nos permite aprender através dela — em vez de nos obrigar a ficar o tempo todo aprendendo a usa-la, decifrando os seus comandos arcanos. Leitores mais jovens podem nem entender, na última frase, a referência a “comandos arcanos”, mas os mais velhos não deixarão de se lembrar de MS-DOS e de Word Star para DOS.

Usamos na oficina exclusivamente Windows Movie Maker 2, para construir as histórias, e Windows Media Player, para conta-las. Esses dois produtos estavam na época incorporados ao Microsoft Windows XP, na época a versão de Windows mais recente que estava disponível no mercado.

Uma segunda oficina estava prevista para Fevereiro de 2005, mas, por razões que não vêm ao caso aqui, não foi realizada.

[Parte desse material foi escrita em 20 de Novembro de 2004, tendo todo o materiao sido revisado agora para ajustar a linguagem ao fato de que faz quase doze anos que foi escrito.]

2. “Digital Story Telling”: O Contar Histórias na Era Digital

A. Contar Histórias

Nossa identidade pessoal é definida por nossas memórias – e nossas memórias refletem as histórias que somos capazes de contar: sobre nós mesmos, sobre nossos parentes e amigos, sobre nossos amores, sobre nosso trabalho, sobre a cidade ou o país em que vivemos – enfim, sobre as experiências e os relacionamentos que temos, as ideias que pensamos, as emoções que sentimos, os sonhos que sonhamos, os projetos que criamos para tentar transformar nossos sonhos em realidade.

Gabriel Garcia Márquez usa como mote de sua autobiografia uma frase instigante: “Nossa vida não é aquela que efetivamente vivemos, mas, sim, aquela de que nos lembramos, e como a lembramos, para poder conta-la como história” [Vivir para Contarla, Grupo Editorial Norma, Bogotá, 2002].

Resumindo: nossa identidade é definida pelas histórias que somos capazes de contar.

Mas não é apenas nossa identidade pessoal que é definida pelas histórias que somos capazes de contar: nossa identidade cultural e mesmo étnica ou nacional também é definida pelas histórias que somos capazes de contar sobre as coisas que importam em nossa cultura, em nossa religião (se é que temos uma e ela tem grande significado para nós), em nosso grupo étnico (se isso é importante para nós) ou em nosso país (novamente, se o nosso país é importante para nós), sobre os eventos e personagens que ajudaram a construir a nossa história – não a nossa história individual e pessoal, mas a nossa história social, podemos chama-la assim. A nossa língua é parte essencial de nossa identidade cultural-étnica-nacional – e nossas histórias são sempre construídas na língua que adotamos como nossa…

Assim, nossa identidade, tanto no plano individual como no plano cultural, étnico, e nacional, está profundamente misturada com nossa capacidade de contar histórias.

B. O Contar Histórias e a Tecnologia Digital

Por muito tempo o contar histórias foi uma atividade tipicamente oral: as histórias, reais ou inventadas, eram contadas de viva voz, de um para outro, em pequenos grupos.

Com o surgimento da escrita, apareceu, ao lado do contar histórias oral, o contar histórias escrito – e, com esse, sugiram tanto a história, propriamente dita, ou seja, relatos de eventos que se acredita terem de fato acontecido, como a literatura, ou seja, relatos de eventos imaginados (ficção).

Com o aparecimento da impressão de tipos móveis, por volta de 1455, tornou-se possível também o aparecimento eventual do jornalismo – que é um contar histórias correntes, da atualidade.

[Sobre a relação entre história-jornalismo e literatura, vide o interessantíssimo livro de Mario Vargas Llosa, La Verdad de las Mentiras (Alfaguara, Buenos Aires, 2002 – 2ª ed)]. A “mentira” é, naturalmente, a ficção, a literatura, que se contrapõe à suposta verdade da história e do jornalismo. A tese de Vargas Llosa é de que, frequentemente, há mais verdade na ficção do que na não-ficção…

O século XX, porém, foi o século do audiovisual. A fotografia foi inventada antes, mas o cinema e a televisão são típicos do século XX. É verdade que o cinema começou mudo – mas continha pequenos textos e diálogos. Em meados do século XX surgiu o computador e, mais para o final do século multimídia: o audiovisual por excelência.

Assim, o contar histórias, no século XX, passou a ser não mais baseado exclusivamente na palavra, oral ou escrita (embora a palavra continue extremamente importante): as imagens passaram a ser ingredientes indispensáveis das nossas histórias — e agora nós não somente ouvimos e lemos histórias, mas assistimos à sua representação audiovisual. Apesar do fato de que a história, o jornalismo e a literatura estão, hoje, mais fortes do que nunca, não se concebe, hoje, uma história sem fotografias e documentários, um jornalismo exclusivamente impresso, ou uma ficção que não seja traduzível para um filme ou vídeo, uma minissérie, uma novela…

C. O Contar Histórias Digital na Escola

Crianças adoram ouvir histórias. “Conta outra”, é o que sempre pedem… Gostam também de contar histórias. E não resta dúvida de que adoram tecnologia. Assim, é evidente que gostam de histórias audiovisuais construídas e transmitidas com o auxílio da tecnologia: o sucesso da televisão está aí para comprovar isso. [Vide nesse contexto o meu artigo “A Tecnologia e os Paradigmas na Educação: O Paradigma Letrado entre o Paradigma Oral e o Paradigma Audiovisual”, em Mídia, Educação e Leitura, organizado por Maria Inês Ghilardi Lucena, com os trabalhos apresentados no Encontro sobre Mídia, Educação e Leitura, que se realizou durante o 12º Congresso de Leitura (COLE), Campinas, SP, 1999].

Entretanto, se entrarmos numa sala de aula de língua portuguesa, em nossas escolas, provavelmente não veremos professores e alunos construindo histórias – nem mesmo puramente as textuais, quanto mais as que envolvem imagens e fazem uso da tecnologia. Na maioria das classes se estuda gramática… Em outras se pede aos alunos que façam composições – que, além de puramente textuais, são em geral sobre temas que nada têm que ver com sua realidade, com seus interesses, com sua vida… As crianças não são intrinsecamente motivadas a fazer as composições escolares, porque essas composições não têm como objeto uma história que as crianças querem contar.

As aulas de geografia em geral começam falando do sistema solar, e aulas de história sobre o passado remoto – coisas tão distantes, no espaço e no tempo, da realidade, dos interesses, da vida dos alunos que não é de admirar que eles detestem geografia e história. As de história se concentram mais no Egito, na Grécia e na Roma antigos do que naquilo que se passa na história de que o aluno é herdeiro direto e faz parte.

D. Uso Criativo e Inovador da Tecnologia na Educação

Em todo lugar em que se discute hoje a inserção da tecnologia na escola, o maior desafio dos proponentes do uso da tecnologia na educação está em como inserir a tecnologia na escola de modo a melhorar significativamente a qualidade do que ali se faz. A conclusão a que se chega é que esse desafio não está na infraestrutura (existência de computadores e conectividade nas escolas), no acesso a essa tecnologia, nem mesmo no manejo técnico dela. O desafio está em fazer algo de criativo e inovador com a tecnologia que efetivamente ajude as pessoas a aprender melhor com ela do que aprenderiam sem ela.

O essencial, disse Bill Gates no Global Leaders Forum de 2004 (evento realizado na sede da companhia em Redmond e dirigido a lideranças mundiais), não é a tecnologia: é o que fazemos com ela. Traduzido para a educação, isso significa que o essencial não é aprender a usar a tecnologia, mas usar a tecnologia para aprender.

Durante muito tempo o contar histórias audiovisuais só pode ser feito por profissionais com acesso à complexa e cara tecnologia do cinema e da televisão. Hoje, porém, com a popularização da câmera digital (que se vende muito mais do que a convencional, a ponto de a Kodak não mais estar fabricando câmeras convencionais) e com a existência de produtos relativamente simples e virtualmente sem custos, qualquer um pode construir uma história digital – pessoal ou não, verídica ou inventada – com extrema facilidade e grande poder de comunicação e mesmo persuasão.

Isso quer dizer que a tecnologia digital, hoje, pode ser aproveitada, de forma criativa e inovadora, para dar vida às classes de comunicação e expressão, geografia, história, estudos sociais (entre outras). Todo mundo tem histórias a contar: sobre si mesmo, sobre seus parentes e amigos, sobre sua família, seus animais favoritos, sua comunidade, sua cidade, seu país… O aprendizado de temas relacionados à linguagem, à geografia e à história, aos estudos sociais pode assumir uma nova dimensão, se tornando contextualizado na experiência de vida e nos interesses dos alunos. E, no processo, as crianças estarão desenvolvendo importantes competências e habilidades na área de comunicação e expressão.

É esse o objetivo que se imprimiu à oficina.

[A maior parte do material deste capítulo também foi escrita em 20 de Novembro de 2004, tendo todo o material sido revisado agora para ajustar a linguagem ao fato de que faz quase doze anos que foi escrito.]

2. Um Excelente Projeto para Escolas

Mas é possível e relativamente fácil criar uma oficina de aprendizagem, em cima do tema “O Contar Histórias Digitais”, com ênfase na formação profissional dos professores para atuar na capacitação dos alunos para se expressar na linguagem multimídia do Século XXI, nas áreas de Língua Portuguesa, Língua Estrangeira, Literatura (Contos de Fadas), História, Geografia, Artes, construindo e narrando histórias digitais relevantes (verídicas ou inventadas).

A. Estrutura Proposta para a Oficina

Eis uma sugestão de estrutura para a oficina em cinco módulos que podem ser de quatro ou de oito horas cada.

Primeiro Módulo

  1. Apresentação da oficina
  2. Apresentação dos participantes
  3. Questões básicas:
  • Entender o que é “contar uma história” (Story Telling)
  • Descobrir as novas dimensões que a tecnologia digital acrescenta ao processo de contar histórias
  1. A tecnologia básica:
  • Câmeras digitais (de fotos)
  • Scanners
  • Software (Stop Motion Editor)
  1. As etapas básicas para a construção de uma história digital
  2. Prática orientada sobre a escolha de uma história

Segundo Módulo

  1. A definição da história
  2. O desenvolvimento dos blocos básicos do roteiro
  3. A definição das fotos
  4. Story Boarding
  5. Prática orientada sobre Story Boarding

Terceiro Módulo

  1. O uso do software de edição de filmes Stop Motion
  2. A gravação do texto
  3. A importação das fotos
  4. O alinhamento de texto e fotos
  5. O problema de transições e efeitos especiais
  6. Prática orientada sobre a construção de um filme Stop Motion

Quarto Módulo

  1. Acertos e testes
  2. A elaboração da versão beta da história
  3. A escolha de um fundo musical
  4. A inserção do fundo musical
  5. A gravação da versão final da história
  6. Prática orientada sobre acabamento e polimento

Quinto Módulo

  1. Finalização das histórias
  2. Apresentação das histórias
  3. Discussão e avaliação das histórias pelos participantes
  4. Encerramento com entrega dos certificados

B. Materiais

Para a realização da oficina são necessários os seguintes materiais:

  1. Todos os participantes precisam ter a computadores individuais com o Sistema Operacional Microsoft Windows, a “suite” Microsoft Office, um editor de imagens, um editor de filmes Stop Motion, e Microsoft Media Player 10 (ou equivalentes)
  2. Todos os participantes precisam ter acesso a uma câmera digital, individual de preferência, e a scanners compartilhados
  3. Todos os participantes precisam ter acesso a uma boa impressora para fotos e posters

Para fotos e ilustrações genéricas, há, na Internet, vários sites que disponibilizam imagens que estão no domínio público, como, por exemplo, Creative Commons, Creative Commons no Flickr, Open Photo, etc. Fotos específicas para a história que se deseja contar devem ser trazidas de casa pelos participantes.

Em Salto, 15 de Junho de 2016



Categories: Digital Media, Media, Movies, Story-Telling

1 reply

  1. Gostei muito do seu blog Eduardo Chaves.

    Sou professora pedagoga e estou iniciando uma pós-graduação e foi de muita valia ler os seus blogs.

    Felicidades.

    Patricia Resende
    São Paulo (capital)

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