O Livro e a Fotografia: Recado a Editoras e Livreiros

Há coisa que só não escuta e não vê quem não quer.

Quantas fotografias impressas você carrega em sua carteira? Quantos filmes Kodak / Fuji você tirou de fotografias no último ano? Quantas câmeras fotográficas convencionais (que usam filmes) você ainda usa normalmente?

Ah, você carrega suas fotos em seu telefone, não é? E é com ele que você tira as suas fotografias, não é? Você provavelmente não compra um filme para máquina fotográfica não digital (convencional) há muito tempo, não é? E suas velhas máquinas fotográficas convencionais você nem sabe onde estão guardadas, não é? São relíquias que, um dia, você vai dar para um museu.

A fotografia não digital impressa em papel especial (caro, brilhante ou fosco) sumiu de nossa vida e a gente nem percebeu. A partir de quando? Faz um bom tempo. Sumiu e não deixou saudade. As lojas que vendiam e revelavam filmes tiveram que encontrar outra maneira de ganhar dinheiro. As empresas que fabricavam filmes, também. As empresas que fabricavam máquinas fotográficas convencionais (pobre Kodak), também. Estas foram substituídas, primeiro, por câmeras digitais, depois por telefones com câmeras embutidas, e assim vai. Até as velhas fotografias impressas em papel que a gente tinha, de nossos avós, pais, de nós mesmos quando crianças, foram escaneadas e estão hoje guardadas, ou são hoje distribuídas, em formato digital.

No processo, a fotografia foi redefinida. Não é um pedaço de papel meio cartolinado, que contém uma imagem, é a imagem, em si, que você capta com uma câmera digital e imediatamente pode verificar para ver se saiu boa. Se saiu, em meio minuto aquela fotografia digital está sendo distribuída mundo afora.

Algo semelhante aconteceu, ou está acontecendo, com vídeos e filmes. Os vídeos e filmes de seus filhos e netos estão também… onde? Em seu smartphone, não é verdade?

Algo semelhante aconteceu com músicas. Ninguém mais compra CDs com quinze ou vinte músicas, muito menos discos em vinil, enormes, com duas músicas, uma de cada lado. Você baixa as músicas de que você gosta – pagando ou pirateando.

Donos de editoras e de livrarias que lidam com livros impressos viram isso acontecer com as fotografias, com os vídeos e filmes, e com as músicas. Mas parece que acharam que, no caso deles, não iria acontecer – ou que, se viesse a acontecer, iria demorar tanto tempo que eles estariam mortos antes de que seus negócios morressem.

Erraram. Estão pagando caro por sua falta de visão.

Faz uns dez anos que eu venho falando que o livro impresso vai seguir o mesmo destino da fotografia em papel, do vídeo ou do filme em celuloide, fita ou disco, da música em fita ou disco. Dei palestra na Abril Educação sobre isso, num encontro que tiveram em Indaiatuba. Escrevi em meus blogs.

Gente importante respondia: “Imagine! O livro impresso nunca vai desaparecer… As pessoas têm um caso de amor com o livro, gostam de cheira-lo, passar a mão dele, acariciando-o, como se acaricia a pessoa amada ou uma criança linda.”

Erraram. Há pessoas que ainda fazem isso, mas são poucas, e o número diminui a cada dia – não são em número suficiente para manter dezenas, se não centenas de editoras de livros impressos e de dezenas ou centenas de milhares de livrarias que vendem livros impressos.

Livros impressos estão com os dias contados. Por várias razões.

Primeiro, livros impressos em papel são caros e demorados para produzir e distribuir. Na época de ouro do livro impresso, os autores escreviam ou a mão ou em máquina de escrever. Bertrand Russell, filósofo britânico, autor de inúmeras obras, algumas enormes, como sua História da Filosofia Ocidental, escreveu todos os seus livros a mão. E ele morreu em 1970, há menos de cinquenta anos. Jorge Amado escrevia seus livros em uma máquina de escrever antiquíssima (eu jurava que a palavra “antiquérrima” existia!), manual, não elétrica, nem muito menos eletrônica – e de computador com processador de texto ele nem passava perto. E ele morreu em 2001, há menos de dezoito anos, em pleno século 21 ou já no terceiro milênio da Era Cristã – a era que a gente chamava do futuro! Os textos escritos a mão ou datilografados eram enviados para uma editora. Antes das fotocompositoras, precisam ser compostos a mão ou com máquinas de linotipia… Com base no texto composto se faziam as “galley proofs”, já mais ou menos formatadas. Mas não era ainda o fim do processo. Era necessário revisar, corrigir, remover, acrescentar – e isso era feito por um venerando método chamado “cut and paste” – só que, há pouco tempo atrás, o “cut” (corte ou recorte) era feito com tesoura ou com aquelas faquinhas afiadas e o “paste” (colagem) era feito com cola mesmo, tipo “goma arábica” ou algo mais moderno. Se se descobria um erro depois de o processo de edição e formatação (diagramação) estar adiantado, era necessário imprimir uma errata. Imaginem: um livro novinho, saído da forma, já vinha com uma errata… Na hora de imprimir, qual a tiragem? Se imprimir demais, o livro pode ficar encalhado. Se imprimir de menos, o processo terá de ser repetido muito cedo – o que não é econômico. Para imprimir, é necessário papel. Para o papel, é necessário cortar árvores. E assim vai. Impresso, o livro é volumoso, ocupa enorme espaço de estocagem. Para distribuí-lo, sai caro. Se, depois de pronto e distribuído, se descobre um erro grave, há que colocar uma errata na forma de uma folha, ou uma tirinha de papel, solta dentro do livro, indicando…

É verdade: eles normalmente ficam bonitos numa livraria enorme como a Cultura do Conjunto Nacional, ou numa megalivraria da Saraiva em um shopping bacana. Só que espaço para manter grandes livrarias em locais nobres é caríssimo e cada vez mais proibitivo. Uma loja de material doméstico vende uma geladeira e fatura dois mil reais. Para faturar isso uma livraria tem de vender oitenta livros de vinte e cinco…

Porque o processo de publicar um livro, nesse universo tradicional, é custoso e demorado, as editoras precisavam ser muito seletivas. Seletivas demais. O primeiro romance de Ayn Rand, The Fountainhead (A Nascente), foi rejeitado por doze editoras antes de um editor corajoso da Random House decidir colocar seu cargo em risco e publica-lo. Isso foi em 1943. Virou um best-seller, até hoje é um best-seller, que já vendeu milhões e milhões de cópias, virou filme com Gary Cooper, etc. Muito bom autor teve sua entrada no mercado bloqueada porque ninguém se dispôs a colocar seu cargo em risco para publicá-lo.

Mudança rápida de cena – passemos para os dias de hoje.

Atualmente os livros são escritos e já recebem uma formatação inicial num computador (daqueles que só duas décadas atrás a gente chamava de microcomputador). Revisar, corrigir, editar, formatar é coisa relativamente fácil e rápida. Corrigi-lo, depois de publicado e distribuído, extremamente fácil. Não requer papel de impressão, não requer tinta, máquinas de grandes tipografias, nada disso. Não requer espaço de estocagem nem processo de distribuição lento e oneroso. A Amazon vende baratinho inúmeros livros que ajudam você mesmo a publicar um e-book seu na plataforma da empresa. E não há um editor em cima de você, o autor, procurando achar problema no seu texto para poder rejeitá-lo… O mercado livreiro foi democratizado do ponto de vista dos potenciais autores.

Do lado do comprador, se você adquire um livro digital (e-book) de um fornecedor confiável, como a Amazon, ele atualiza automaticamente a sua cópia quando sai uma versão atualizada e corrigida. O preço de um livro grande – de, digamos, 500 páginas – poderia ser menor do que o de um café expresso no Starbuck’s, se levarmos em conta apenas o custo de produção e distribuição. E você recebe o livro imediatamente. Há edições das obras completas de todos os grandes filósofos clássicos, ou até mesmo de todos os chamados  “Pais da Igreja”, que se vendem por menos de um dólar.

Só não vê quem não quer que isto vai matar aquilo, que o livro digital vai matar o livro impresso. É inevitável e não vai demorar. Em pouco tempo a gente vai precisar levar os netos a uma vetusta biblioteca para ele ficar conhecendo um livro impresso.

Agora as editoras e as grandes livrarias, que se recusaram a enfrentar essa realidade, estão quebrando. Qual as soluções que elas veem para o seu problema?

Nenhuma das soluções reconhece que o problema está nelas, não fora delas. Nisto se parecem com o PT. O problema está sempre fora delas.

Uma solução que têm proposto: O MEC criar um grande programa nacional de incentivo à leitura…

Outra solução: O MEC voltar a patrocinar a distribuição de livros didáticos em grandes quantidades, gratuitamente, para todos os alunos das escolas públicas – algo que fazia com que apenas uma editora de livros didáticos vendesse setenta milhões de exemplares de uma só vez, a cada ano, para o MEC…

Outra solução: O MEC exigir que cada escola tenha uma biblioteca de livros impressos de boas dimensões e ajudar as escolas a manterem o acervo atualizado…

Resultado: Se o governo cooperar com elas, editoras e grandes livrarias, quem sabe elas não quebram…

Mas o governo só fazia coisas desse tipo quando era um governo corrupto que tirava os seus dez por cento (ou mais) em cada compra e distribuição de livros didáticos. Agora, em tempos de Lava-Jato, Bolsonaro, na Presidência, Moro na Justiça, e Velez Rodriguez no MEC, não vai fazer mais… Nunca, jamais.

Resultado: um monte de pedido de concordata de editora e grande livraria. Para ficar só com as livrarias, a Saraiva e a Cultura pediram concordata (recuperação judicial). Não vão se recuperar.

E vai ficar pior, quando as grandes revistas (VEJA, Época, IstoÉ) quebrarem, e os grandes jornais (Folha, Estadão, O Globo) seguirem o naipe. Já estão quase.

Quem tem ouvidos para ouvir, ouça; e quem tem olhos para ver, veja.

Recomendo ao leitor que assista a dois vídeos (um pouco longuinhos demais) de gente muito nova mas com bastante entendimento da causa e juízo — embora não concorde com tudo que dizem, especialmente no segundo caso:

E para terminar, mais um recado: as escolas, se Deus quiser, vão pelo mesmo caminho. Só não ouve ou vê quem não quer.

Em São Paulo, 24 de Novembro de 2018.



Categories: Books, Livros, Technology, Tecnologia

1 reply

  1. Grande professor Eduardo,
    Sempre direto ao ponto, mas desta vez, pude sentir o frescor do seu português jovial e sem ranço “à la Jânio Quadros” – mas claro, bem escrito. Lembrou os tempos da edutec…
    Quanto ao assunto, eu concordo em gênero, número e grau, *mas acrescentaria a mesma tendência seguida por softwares, filmes e músicas – ao invés de comprar livros online, no futuro iremos comprar assinaturas (mensais ou anuais) de grandes editoras.* E assim, ter acesso a todo o acervo – podendo ler, imprimir e compartilhar quantas vezes quiser.
    Espero que seja logo hehehe…

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