O Desaparecimento dos Livros Impressos e das Bibliotecas Físicas

Começo fazendo uma citação de três parágrafos do meu livro Educação e Desenvolvimento Humano: Uma Nova Educação para uma Nova Era (2a.ed., Mindware & Amazon, São Paulo, 2019; 1a.ed. 2003), Capítulo Primeiro: Uma Nova Era, Seção I: A Escola, a Educação e a Sociedade, Subseção 3: A Sociedade:

[INÍCIO DA CITAÇÃO DO MEU LIVRO]

“As transformações profundas e em grande medida revolucionárias por que passou a sociedade ocidental especialmente desde o fim da Segunda Guerra Mundial, que, apesar de suas raízes no Ocidente, afetaram o mundo inteiro, criaram um novo contexto social, econômico e cultural, do qual a educação não pode se divorciar e ao qual os educadores devem estar bastante atentos [1]. Nesse contexto, as novas tecnologias digitais de informação e comunicação [2] e as redes sociais que elas viabilizaram vieram a desempenhar um papel fundamental.

Tão radicais foram as transformações que ocorreram nesse período que muitos argumentam que esses cinquenta e poucos anos representam uma fase de transição da era industrial para uma nova era, caracterizada por um novo tipo de sociedade, a Sociedade da Informação [3]. Na verdade, importantes observadores e analistas da sociedade atual, como Peter Drucker, sugerem que, com a Sociedade da Informação, se inaugura uma nova era, que ele denomina de Segunda Renascença [4].

Para dar foco a apenas um dos aspectos do atual contexto, o aumento brutal na quantidade das informações disponíveis [5] faz com que o desafio da educação hoje não seja transmitir informações às novas gerações: informações, estas as têm até demais, ou podem obter com extrema facilidade [6]. No caso da escola, como organização promotora da educação, seu maior desafio é ajudar as novas gerações, que vão viver sua vida inteira na Sociedade da Informação, a construir as competências e habilidades necessárias para definir um projeto de vida próprio e transformá-lo em realidade, no contexto dessa sociedade. Nessa sociedade você define e busca a informação que você quer ou de que precisa, quando você quer ou precisa dela (just in time), na quantidade em que deseja ou precisa (just enough)… Nessa sociedade, a informação é buscada e puxada, nunca é empurrada e enfiada por sua goela abaixo ou por sua mente adentro…”

[FIM DA CITAÇÃO DO MEU LIVRO]

Faço, no segundo parágrafo citado, uma referência ao grande pequeno livro de Peter Drucker que tem  o título de As Novas Realidades. Além do comentário que eu faço na Nota 4, quero citar três passagens relevantes do livro de Peter Drucker, que, no livro, estão mais ou menos em sequência:

[INÍCIO DAS CITAÇÕES DE PETER DRUCKER]

“Quarenta anos atrás Marshall McLuhan [em seu livro Understanding Media: The Extensions of Man] apontou pela primeira vez que não foi a Renascença que transformou a universidade medieval, e sim o livro impresso. (…) Assim como o livro impresso era a ‘alta tecnologia’ da educação no século XV, também o computador, a televisão e o videocassete estão se tornando a alta tecnologia do século XX. Esta nova tecnologia está fadada a ter um profundo impacto sobre as escolas e sobre o modo como aprendemos” [7].

“Desde o início, o livro impresso forçou as escolas a modificarem drasticamente o que ensinavam. Antes dele, a única maneira de aprender era copiar laboriosamente manuscritos ou ouvir palestras e recitações [chamadas lições, porque geralmente eram lidas]. Subitamente eis que as pessoas podiam aprender lendo [e não ouvindo]” [8].

“O livro impresso provocou no Ocidente (…) uma tal vontade de aprender que o mundo jamais vira antes e nunca mais viu desde então. O livro impresso permitiu que pessoas de todas as posições sociais pudessem aprender conforme o seu ritmo natural, na intimidade de suas casas ou na companhia de outros leitores de mesmo espírito. Permitiu também que pessoas separadas umas das outras pela distância e pela geografia pudessem aprender juntas” [9].

[FIM DAS CITAÇÕES DE PETER DRUCKER]

Tudo isso para emoldurar a seguinte discussão… Ontem, em um grupo do Facebook dedicado ao compartilhamento de fotos antigas de São Paulo, foi postada uma foto da magnífica Biblioteca Pública Municipal Mário de Andrade. Alguém fez o seguinte comentário, que foi endossado por muita gente:

“Meu medo é que num futuro próximo, bibliotecas se tornem obsoletas. Deus nos livre.”

Senti-me obrigado a responder, e o fiz de forma coerente com o que afirmo e cito no meu livro, nos termos que seguem (re-elaborados um pouco) [10].

No século 15 os livros impressos começaram a se acrescentar e, oportunamente, a substituir TOTALMENTE, os livros manuscritos. A sorte dos livros, enquanto tais, independentemente de sua forma, se manuscrita ou impressa, só melhorou. Eles se multiplicaram de forma inacreditável e milhares e milhões de pessoas que não tinham acesso a eles passaram a tê-lo. E a educação foi revolucionada pela disponibilidade ampla de livros. Alguns acharam que seria um desastre irreparável que os livros manuscritos, tão bonitos e bem trabalhados, deixassem de existir, passando a ser apenas peças de museus. O livro, enquanto tal, continuou a existir e prosperou inacreditavelmente, expandindo-se como nunca havia se imaginado antes.

O mesmo está se dando e, ninguém tenha dúvida, se dará, em relação aos livros impressos com a chegada dos livros eletrônicos (ebooks). Os livros impressos se tornaram peças de museus e bibliotecas transformadas em museus. Mas o livro, enquanto tal, independentemente de sua forma, se manuscrita, impressa ou eletrônica, continuarão a existir em número muitíssimo maior e seu alcance chegará a toda parte do mundo, sem exceção. E se os políticos e os atuais donos de editoras de livros impressos, donos de gráficas, donos de livrarias físicas, e os responsáveis por bibliotecas de livros físicos (impressos) tentarem impedir isso irão sofrer o mesmo destino dos copistas de livros impressos: ninguém se lembrará deles, exceto no caso de uns poucos artistas que produzirão livros impressos que serão objetos de arte para serem exibidos na mesinha de café. E aqueles dentre nós interessados em contar histórias inventadas, narrar histórias acontecidas (como eles as imaginam), e discutir ideias em geral irão produzir muito mais e alcançar muito mais pessoas com seus ebooks. E todos estarão melhor por causa dessa mudança.

Nada há a temer — PELO CONTRÁRIO! Se as bibliotecas físicas desaparecerem, como irão desaparecer, isto só se dará porque a Internet, com suas as redes de informação, redes de comunicação, e redes sociais se tornaram hiper-mega-super-duper-bibliotecas de acesso fácil, na ponta dos nossos dedos, estejamos nós não importa onde.

Romantismo não é uma atitude sadia diante de mudanças inevitáveis e inexoráveis como as que estão acontecendo hoje, no que Drucker chama de Segunda Renascença, à semelhança das que aconteceram na Primeira Renascença, só que eu grau inimaginavelmente maior.

Notas

[1] Cp. Daniel Greenberg, Worlds in Creation (The Sudbury Valley School Press, Framingham, MA, 1994), p. 231: “Para que as crianças cresçam e se tornem adultos eficazes e eficientes, elas devem de alguma forma estar em sintonia com a estrutura socioeconômica do mundo em que vivem e em que vão viver. As escolas, portanto, devem estar atentas às necessidades desse mundo e os educadores devem ter uma profunda apreciação de sua natureza”.

[2] Às vezes se usam as siglas “NTIC” para designar as “Novas Tecnologias de Informação e Comunicação” e “TIC” para abranger tanto as novas como as tradicionais. Em vez de “NTIC”, também se usa a sigla “TDIC” para designar as “Tecnologias Digitais e Informação e Comunicação” – que evidentemente são as novas.

[3] A Sociedade da Informação tem recebido vários outros nomes (com diversas variações de ênfase): Sociedade do Conhecimento, etc. Mais recentemente têm sido usadas as expressões Sociedade da Criatividade e Sociedade da Aprendizagem. Outros nomes são Sociedade Pós-Industrial, Sociedade Pós-Moderna, etc. A Sociedade da Informação também corresponde ao que Alvin Toffler denominou de “Terceira Onda”; vide Alvin Toffler, A Terceira Onda (Editora Record, Rio de Janeiro, 1980), tradução brasileira de João Távora do original em Inglês The Third Wave (William Morrow, New York, 1980).

[4] Vide Peter Drucker, As Novas Realidades (Livraria Pioneira Editora, São Paulo, 1989), tradução brasileira de Carlos Afonso Malferrari do original em Inglês The New Realities (Harper Books, New York, 1989, 1994). A analogia com a Renascença está na p. 213 da edição brasileira. Ao comparar a Sociedade da Informação com a Renascença, Drucker está sublinhando a profundidade, a amplitude e, consequentemente, a importância das mudanças que aconteceram nessa sociedade. O ponto de comparação da Sociedade da Informação é, para ele, mais a Renascença do que a Sociedade Industrial, tão mais significativas são as transformações que deram à luz a Sociedade da Informação. E uma das coisas que o leva a fazer essa comparação é o papel das Tecnologias de Informação e Comunicação no nascimento de ambas: a tecnologia de impressão tipográfica, centrada no livro, no caso da Renascença, as novas tecnologias digitais de informação e comunicação, centradas no computador, no caso da Sociedade da Informação. O livro e o computador: poderosos instrumentos de mudança. E o computador hoje, absorve o livro, que se torna livro digital ou ebook.

[5] Um outro aspecto importante do atual contexto, e que afeta a educação, é a desmaterialização do trabalho. Eis o que diz sobre esse assunto o Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, coordenada por Jacques Delors, publicado na forma de livro com o título Learning: The Treasure Within (UNESCO, Paris, 1996) e traduzido para o Português por José Carlos Eufrázio, recebendo, no Brasil, o título Educação: Um Tesouro a Descobrir (UNESCO, MEC, Cortez Editora, São Paulo, 1997, 2ª edição 1999): “[Na sociedade atual] a substituição do trabalho humano pelas máquinas tornou o trabalho humano cada vez mais imaterial. (…) As consequências para a educação da ‘desmaterialização’ das economias avançadas são particularmente impressionantes se se observarem as mudanças qualitativas e quantitativas que ocorreram no setor de serviços. Os serviços, que formam uma categoria bastante diversificada, definem-se sobretudo pela negativa: não são entidades industriais nem entidades agrícolas e, apesar da sua diversidade, têm em comum o fato de não produzirem bens materiais. (…) [Mesmo assim, ] na indústria (…) a noção de domínio de informações como fator de produção vem cedendo lugar à noção de competência pessoal. O progresso técnico modifica, inevitavelmente, as qualificações exigidas pelos novos processos de produção. As tarefas puramente físicas são substituídas por tarefas de produção mais intelectuais, mais mentais, como o comando de máquinas, a sua manutenção e o seu monitoramento, ou por tarefas de concepção, de estudo, de organização à medida que as máquinas se tornam, também, mais ‘inteligentes’ e o trabalho físico exigido no trabalho diminui – tornando-se ‘imaterial’. (…) O setor dos serviços, por sua vez, está a exigir o cultivo de qualidades humanas que não são necessariamente cultivadas pela formação tradicional, e que correspondem à habilidade de estabelecer relações estáveis e eficazes entre os indivíduos” (pp. 93-95, na edição em Português; pp. 89-90 na edição original em Inglês; a tradução para o Português publicada foi alterada para melhor adequação ao texto original; ênfases acrescentadas). A esse respeito, há os que sustentam a tese de que o trabalho é a ação do homem sobre a natureza, com o intuito de transformá-la. Se essa noção de trabalho for sustentada, ao final do primeiro quarto deste século apenas cerca de 5% da população economicamente ativa estará trabalhando. Assim, é concebível que, mesmo que não desapareça, o proletariado, como tradicionalmente entendido, se torne insignificante neste século, completando o que teve início no século anterior. Adam Schaff, importante teórico marxista, é taxativo: “A automação e a robotização (…) reduzirão, às vezes de forma espetacular, a demanda de trabalho humano. Isto é inevitável, independentemente do número de esferas de trabalho que forem conservadas e do número de esferas novas que possam surgir como consequência do desenvolvimento da microeletrônica e dos ramos de produção a ela associados. (…) A chamada automação plena (…) eliminará inteiramente o trabalho humano. (…) É pois um fato que o trabalho, no sentido tradicional da palavra, desaparecerá paulatinamente e com ele o homem trabalhador, e portanto também a classe trabalhadora entendida como a totalidade dos trabalhadores. (…) A classe trabalhadora desaparecerá.” Schaff se consola no fato de que a classe dos capitalistas, como tradicionalmente definida, também corre o risco de desaparecer. Vide Adam Schaff, A Sociedade Informática, tradução brasileira do original em Alemão de Carlos Eduardo Jordão Machado e Luiz Arturo Obojes (Editora UNESP e Editora Brasiliense, São Paulo, SP; publicado originalmente sob os auspícios do Clube de Roma), pp. 27, 43, 44 e seguintes; ênfase acrescentada. Ainda um outro aspecto importante do atual contexto, também discutido por Schaff, está na possibilidade (agora bastante concreta) da democracia direta e, portanto, da gradual substituição da democracia representativa. Diz ele: “Vale a pena, pois, assinalar as implicações sociais da segunda revolução industrial [a atual revolução, aqui chamada de Sociedade da Informação] a este respeito: a informática abre novas perspectivas para a democracia direta, isto é, para o autogoverno dos cidadãos no verdadeiro sentido do termo, porque torna possível estender a instituição do referendo popular em uma escala sem precedentes, dado que antes tais referendos eram praticamente impossíveis do ponto de vista técnico. Isto pode revolucionar a vida política da sociedade, no sentido de uma maior democratização” (op.cit., p. 69, ênfase acrescentada). (O título em Português do livro de Schaff é uma tradução infeliz. O título original em Alemão é Wohin fuhrt der Weg, que, traduzido literalmente, quer dizer Aonde nos Leva o Caminho — que parece um título bem melhor do que o adotado pelo tradutor.)

[6] Não é à toa que a nossa está sendo chamada de Sociedade da Informação. Há livros mostrando que estamos vivendo, hoje, com “sobrecarga de informação” (“information overload”). A escola não deve agravar esse problema, em si já sério. Em vez de transmitir mais informações às crianças, adolescentes e jovens, ela deve ajudá-los a desenvolver as competências e habilidades necessárias para lidar com as informações, especialmente quando em excesso,, entre as quais está a competência de separar informação confiável e útil de informação que não é confiável ou útil.

[7] Peter Drucker, op.cit., p. 213 (ênfase acrescentada). Ver a esse respeito Marshall McLuhan, op.cit.: “O livro foi a primeira máquina de ensinar e também a primeira mercadoria produzida em massa. (…) A sociedade aberta é aberta em virtude de um processamento educacional tipográfico uniforme, que permite expansão indefinida de qualquer grupo por adição. O livro impresso baseado na uniformidade e repetibilidade tipográfica na ordem visual foi a primeira máquina de ensinar, e a tipografia foi a primeira mecanização de uma arte manual” (p.174).

[8] Drucker, op.cit., loc.cit. (ênfase acrescentada). Por isso, McLuhan, op.cit., p. 173, chama essas escolas medievais de verdadeiros “scriptoria”.

[9] Drucker, op.cit., pp. 213-214.

[10] Facebook, grupo Memórias Paulistas, que eu recomendo, que está localizado no seguinte endereço: https://www.facebook.com/groups/memoriaspaulistas/?multi_permalinks=4523254011054387&comment_id=4529325690447219.

Em Salto, 20-21 de Outubro de 2021



Categories: Liberalism

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