Dez Crônicas Esparsas de Eduardo Chaves, em Ordem Aleatória, Escritas de 2000 a 2008

[NOTA: Uma crônica não é exatamente um artigo, muito menos um pequeno ensaio. Uma crônica é algo que nasce na sua mente sem planejamento, a partir de uma experiência que, em retrospectiva, lhe parece interessante — que lhe parece cronicável. Não tem maiores pretensões além de agradar e divertir o leitor. Talvez cutucá-lo um pouco, provocá-l a pensar sobre algo razoavelmente trivial e comum. EC.]

Os Títulos das Crônicas e a Data (Quando Registrada) 

1. “Casas Simples, com Cadeiras na Calçada…” (de 2001)

2. Zeca, Profissão: Engraxate (de 2003)

3. Formaturas (de 2000)

4. Professores (de ?)

5. A Linguagem e as Línguas (de ?)

6. Free Flow of Consciousness (de 15.4.2008)

7. Arremetidas (de 24.8.2007)

8. Lost in Translation (de 6-7.5.2006)

9. United Flight 881 (de 2.5. 2006)

10. Uma Modesta Contribuição à Estética da Aparência Feminina (de 15.9.2006)

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1. “Casas Simples, com Cadeiras na Calçada…” (de 2001)

Relendo as últimas mensagens nesta nossa lista de discussão, comecei a pensar.

A lista é de educação. Apesar disso, ou, talvez, por isso mesmo, a gente vinha discutindo canções de ninar e histórias infantis. Canções que nos falam do bicho papão, da cuca, do soldado com olho de vidro, perna de pau e cara de mau. Histórias da Branca de Neve e da Rainha Má, dos Três Porquinhos e do Lobo Mau, e do Chapeuzinho Vermelho, e, de novo, o Lobo Mau. Feiúra, medo e maldade para todos os cantos.

Daí veio a onda mais amena, puxada pelo Antonio “Tonhão” Gonzales: as letras de Se Esta Rua Fosse Minha, de Alecrim Dourado… Juntando tudo o Axel de Ferran sentiu “saudades dos tempos que não podem retornar”. (Lembro-me de que meu pai em 1953 escreveu uma crônica para “A Hora da Saudade”, programa da Radio Tupy, chamada “Tempos que não voltam mais”. Falava da infância dele.)

Depois houve uma nova onda de mensagens, introduzida pela mensagem da Sílvia Caldeira, transcrevendo o texto de Martha Medeiros (Zero Hora de 30/09/2002), que diz que a felicidade só se alcança depois dos 35 anos.

E, daí, veio a chocante e dolorosa mensagem do Cláudio Alex Fagundes da Silva, falando da morte de seu filho, Gabriel, assassinado anteontem de manhã, em Búzios.

O Cláudio não diz qual a idade do Gabriel ao morrer — mas ele não deve ter chegado aos 35. Segundo a tese da outra mensagem, ele não chegou sequer à idade em que viria a ser feliz.

Muitos comentaram as essas mensagens todas. Uns, num tom nostálgico e alegre; outros, evidentemente, num tom que revela dor, estado de choque, revolta e pasmo diante daquilo que não compreendemos e, por causa disso, não conseguimos aceitar.

Comento a resposta da Hérica à mensagem sobre a felicidade.

Segundo ela nos diz, faltam exatamente doze para que ela chegue aos 35 anos, à idade em que (segundo nos diz Martha Medeiros) podemos aspirar à felicidade… Isto significa, se minha aritmética não me falha, que ela está agora com 23 anos. Mais nova do que a mais nova de minhas filhas, que em breve fará 28 (e me dará, “Deo volente”, meu terceiro neto até o fim do ano). Menina madura a Hérica, para os seus 23 anos, como bem deixa entrever a sua mensagem. Tem juízo e bom senso.

Em Julho de 1967, 36 anos atrás, quando eu tinha a idade dela, eu me preparava para ir fazer pós-graduação nos Estados Unidos (fui dia 19/8/67) – e não sabia ainda que iria me casar dali a menos de três meses (casei-me pela primeira vez, lá nos Estados Unidos, em 13/10/67 — a namorada era brasileira: aqui de Campinas mesmo). Sem nenhum planejamento – e sem nenhum preparo para uma decisão tão importante. Tinha a vida inteira pela frente — ou assim me parecia. Estava feliz — ou também assim me parecia.

Hoje, quase uma vida inteira depois, me preparo (?) para os sessenta anos, que farei no próximo 7 de Setembro. E me pergunto, como alguém já se perguntou aqui, se, caso tivesse a oportunidade, optaria por voltar aos dezoito, ou aos 23, ou aos trinta, ou aos quarenta, ou até mesmo aos cinquenta?

Uns dizem que gostariam de voltar aos dezoito anos, desde que pudessem manter a mente, a vivência, a experiência da idade atual. Confesso que essa ilusão já me tentou.

Hoje me pergunto que graça haveria voltar aos dezoito se a gente fosse viver exatamente a mesma vida: estar nos mesmos lugares, encontrar as mesmas pessoas, tomar as mesmas decisões… Mas, por outro lado, se a gente, voltando aos dezoito, pudesse viver uma vida diferente, isto também teria seu ônus — e um ônus para mim muito pesado: nessa hipótese, eu não as filhas que tenho, nem (horror!) os netos que hoje ajardinam a minha vida.

Minha conclusão pensada, portanto, é que, tendo a oportunidade, e mesmo que pudesse manter a mente, a vivência e a experiência dos sessenta, eu não optaria por voltar a ter dezoito anos. Se o preço são as rugas, a flacidez, as doenças da idade… que seja pago. A gente recebe muita coisa boa em troca desse preço – e eu, no fundo, sou um negociante, um “trader”, que sabe que as coisas boas da vida têm seu preço. “There is no free dinner”, como dizia Milton Friedman.

Ingrid Bergman, talvez a mulher (em Casablanca, Oscar do ano em que nasci, 1943 — meu segundo nome não é Oscar por nada…) — retomando, talvez a mulher mais linda a povoar um dia o meu imaginário, uma vez, quando indagada se não se importava com envelhecer, com o fato de que, com a idade, a sua beleza deslumbrante começaria a fugir, disse: “Não… pois a única alternativa a não envelhecer é morrer cedo”… Mulher sábia, além de linda.

Talvez, ao dizer isso, Ingrid Bergman já tivesse perdido parte de sua beleza fulgurante. Duvido, porém, que tivesse tido essa sabedoria aos dezoito anos. É esse fato que nos permite nos conformar com a velhice, e, às vezes, até nos confortar com ela, saudá-la com alegria e reconhecer que nunca fomos tão felizes antes. E ter esperança de que venhamos a ser ainda mais felizes, à medida que o tempo avançar ainda mais…

O duro é ver o jovem morrer cedo — não chegar nem perto da idade que eu hoje tenho. O duro é ver o que aconteceu com o Gabriel, filho do Cláudio. Com isso acho impossível me conformar. Esse é um preço pago por nada, sem nada em troca.

O filho do Cláudio tinha o mesmo nome do meu neto mais velho, de três anos (quase quatro). Como diz o poeta, em Gente Humilde, olhando para ele eu, que não creio, peço a Deus que ele possa chegar à minha idade, e ir muito além, tendo, como eu (até agora), a sorte de não passar por uma dor tão grande quanto a do Cláudio nesse momento.

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Gente Humilde

(Vinicius, Chico e Garoto, 1969)

Tem certos dias em que eu penso em minha gente,
E sinto assim todo o meu peito se apertar,
Porque parece que acontece de repente
Feito um desejo de eu viver sem me notar.

Igual a como quando eu passo no subúrbio,
Eu muito bem, vindo de trem de algum lugar,
E aí me dá como uma inveja dessa gente,
Que vai em frente, sem nem ter com quem contar…

São casas simples, com cadeiras na calçada,
E na fachada escrito em cima que é um lar,
Pela varanda, flores tristes e baldias,
Como a alegria que não tem onde encostar.

E aí me dá uma tristeza no meu peito,
Feito um despeito de eu não ter como lutar,
E eu que não creio peço a Deus por minha gente,
É gente humilde, que vontade de chorar.

Em Campinas, 2001.

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2. Zeca, Profissão: Engraxate (de 2003)

Enfim, recomeço a rotina.

Hoje minha casa finalmente voltou ao normal, depois do casamento de minha filha mais nova no sábado atrasado. Minha outra filha, que mora fora, também voltou para casa com minha neta, depois de 21 dias, e, assim, pude retomar controle do quarto que ela ocupou, que é o local onde fica a minha TV de tela grande, o meu aparelho de DVD, o meu VCR, a minha cadeira do papai e toda minha coleção de filmes em VHS e DVD.

Mas de manhã não queria ficar em casa. Queria andar, bater perna, jogar conversa fora, sem compromissos. Cheio dos shoppings, resolvi ir passear no centro da cidade. Gosto do centro de Campinas: do largo da Catedral, do antigo largo do teatro, do jardim Carlos Gomes, e, naturalmente, do Largo do Rosário. E quando vagabundeio por lá inevitavelmente decido ter os meus sapatos engraxados (ainda três reais), para poder ter um dedo de prosa com os famosos engraxates do Largo do Rosário — todos eles acima de 70 anos. Há cidades, como Londrina, em que todos os engraxates são adolescentes. Em Campinas, não: são todos anciãos — e é bem melhor assim. Não há comparação entre a prosa que se pode ter com uma pessoa com várias décadas de experiência e com um moleque que nem sabe direito onde fica o nariz (por mais petulante que possa ser a forma desse nariz).

Hoje, pela primeira, vez optei pelo Zeca (nome fictício, para preservar-lhe, tanto quanto possível, a anonimidade). Tem uma cadeira incrementada, com o nome dele escrito do lado com percevejos coloridos. E que dá uma boa visão do movimento da praça. Além do mais, tem guarda-sol e jornais e revistas para os clientes. Mas eu queria é conversar com ele, e minha escolha foi acertada: o Zeca é bom de prosa.

Zeca tem 73 anos, dos quais 34 ali como engraxate no Largo do Rosário (onde está desde fevereiro de 1969). O Zeca tem mais tempo de vida ali no largo do que muito cara metido a besta que, tendo comido mortadela a vida inteira, resolve arrotar peito de peru. E está contente com seus quase 35 anos de engraxate ali naquele mesmo lugar. Ali no Largo do Rosário, segundo disse, já riu muito, já fez os outros rirem, mas também já chorou e quase morreu com uma bala perdida que atravessou o peito de um outro homem e se alojou em sua nuca.

Casou tarde. Durante esses 34 anos de Largo do Rosário teve e criou quatro filhas. Teve também um filho que morreu aos 23 anos — não quis perguntar do que nem ele o disse voluntariamente. A privacidade deve ser respeitada. Embora possa parecer difícil, ao longo desses anos juntou dinheiro suficiente para comprar uma pequena chácara em Hortolândia, onde mora uma de suas filhas e que hoje vale, segundo disse, uns oitenta mil. As outras três filhas ainda moram com ele e a mulher, mas estão todas bem empregadas. Uma até trabalha no Palácio da Justiça, ali mesmo no largo.

O Zeca tem bom humor, é gozador. Contou-me que de uma árvore ali do largo, perto de sua cadeira, começou um dia cair uma gosma, que se acumulava no chão. Reuniu os engraxates ali de perto, mais o Júlio, dono da banca de revistas e livros usados, e resolveram enganar os vagabundos que todos os dias ficam sentados nos bancos da praça, sem fazer nada, esperando que alguma sorte caia do céu. Disseram a eles que aquela gosma curava tudo o que era dor ou doença. O pessoal começou a aparar a gosma que caía da árvore e passar nos ombros, nas costas, nas pernas… Segundo disse, alguns até comeram a substância pastosa, que, conforme a história já devidamente aumentada, era boa até para úlcera do estômago… Depois de uns dias, ficaram com medo de a polícia descobrir a brincadeira e o Zeca pegou uma vara e cutucou o lugar da árvore de onde saía a gosma curativa: junto com um pedaço da casca da árvore, caíram no chão dezenas de baratas… O prazer da brincadeira ainda se refletia no seu rosto de moleque maroto, apesar dos 73 anos…

Aos poucos entrou na conversa um outro personagem, desses que passam o dia inteiro ali no largo, esperando algum bico. O Zeca disse a ele: “Sabe aquele vagabundo do Toninho? Ontem de tarde, depois que eu te dei aquela graninha procê tomar uma Scariol (Schincariol), ele teve a cara de pau de vir me pedir dois real pra almoçar. Eu perguntei pra ele se ele achava que porque eu te dei dinheiro ia dar pra ele também. Falei pra ele que eu te dou dinheiro porque você me faz uns serviços, me quebra um monte de galho, mas que ele é um serve-pra-nada que fica lá parado o dia inteiro, sem tentar arrumar serviço. Ele me disse que ainda não saiu a aposentadoria dele. Eu disse pra ele que quando sair vê se ele guarda um pouco pra não ficar pedindo pros outros no fim do mês”. Comecei a perceber que a filosofia política do Zeca estava numa direção muito mais certa do que a do Presidente Lula.

O Zeca teve, segundo me disse, várias chances, nos últimos tempos, de arranjar a vida — mas não pode aproveitá-las, por culpa exclusiva da mulher. Mulher é bom, refletiu, mas às vezes atrapalha um bocado. As três oportunidades que teve envolviam vender a chacrinha para, em dois casos, abrir um negócio, e, no terceiro caso, comprar um lindo sítio (onze alqueires) perto de Araxá, com córrego e lago, que uma velha amiga, que ficara viúva, lhe oferecera por quase nada (ainda se dispondo a esperar que ele vendesse a chacrinha para lhe pagar). Procurou e achou comprador para a chácara, a filha que mora na casa concordou em mudar para Araxá, mas na hora de assinar a escritura… a velha empacou: recusou-se a assinar. Resultado: continua engraxate e culpa a mulher. Fiquei pensando: por que é que tem mulher que faz dessas coisas com a gente? Mas o interessante é que, pela sua sorte, o Zeca não culpou a globalização, nem os países capitalistas, nem mesmo o governo brasileiro… A responsabilidade foi alocada ali mesmo, em casa…

Há pequenas coincidências em nossas vidas. O avô dele nasceu na mesma cidade do Triângulo Mineiro em que nasceu meu pai. Pensei até que pudéssemos ter algum parentesco, mas os sobrenomes não batem. É por causa de seu avô que queria tanto poder retornar ao Triângulo Mineiro, com a compra do sítio perto de Araxá.

Entre nós, mesmos, há coincidências. Ele nasceu na região de Itápolis e eu em Lucélia, localidades que não ficam muito distantes uma da outra. Ele conhece Lucélia. Informou-me ainda que a gerente do prédio em que funciona o famoso Restaurante Rosário (que estava bem atrás de nós no largo) também é de Lucélia. Coincidências em um mundo pequeno. Lembrei-me de que só vim encontrar alguém nascido, como eu, em Lucélia, em 1973, quando trabalhava em Hayward, na Califórnia. Era uma moça que fazia doutorado na Universidade de Berkeley. Não me lembro do nome dela. Deve ser hoje professora universitária em algum lugar. Quem sabe está em greve.

Perguntei ao meu amigo Zeca — a essas alturas já éramos amigos, embora ele, bom profissional, não houvesse perguntado nada acerca de mim — se era melhor morar aqui em Campinas hoje do que em 1970 — e a resposta veio com rapidez: em 1970. Nem se comparam as duas coisas, disse. Hoje Campinas é uma cidade perigosa, cheia de vagabundos, ladrões, assaltantes, não mais a cidade tranquila, pitoresca e agradável que era na época em que o Quércia era prefeito. Em 1970 os bondes acabavam de ser removidos da cidade. Diz a lenda que o Quércia usou os trilhos para cercar a sua fazendo em Pedregulho, mas o Zeca acha que isso é calúnia dos inimigos do Quércia. De qualquer maneira, a cidade era mais cidade então, e a Lagoa do Taquaral acabava de ganhar a sua caravela, que está lá até hoje — presente do mesmo Quércia.

Por fim, arrisquei-me a perguntar-lhe sobre a guerra. “E o que você está achando dessa guerra, Zeca?” “Guerra é um troço feio”, disse ele, “mas eu acho que o Bush deve dar uma lição nesse filho da puta do Saddam Hussein”.

Não sei porque, mas quando vi o Zeca pressenti que havia mais sabedoria ali naquele engraxate idoso, representante autêntico “do Brasil profundo” (se posso me apropriar de expressão usada pelos franceses em relação ao seu país), do que num bando inteiro de professores universitários e jornalistas formados. Sapiência se obtém, não na vida da escola, mas na dura escola da vida.

Em lugar dos três reais que me cobrou, lhe paguei seis. A prosa mais do que valeu a diferença. O professor que habita em mim, muitas vezes malgré moi-même, devia ter-lhe dado dez. Mas de vez em quando sou meio pão duro.

Em Campinas. 25 de Junho de 2003. Hoje minha filha mais velha faz 30 anos.

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3. Formaturas (de 2000) 

De sexta às 23h até sábado por volta das 4h30 estive no Baile de Formatura de minha filha caçula. Cento e vinte formandos de Odonto, curso diurno, de uma Universidade da região (não vou dizer o nome para não ficar chato, diante do que vou dizer adiante), mais ou menos 1800 pessoas no salão. Fomos de ônibus especial, os quase 30 convidados, por uma razão de bom senso. Primeiro, o aluguel do ônibus saiu o mesmo preço do que cerca de 15 carros no estacionamento. Segundo, e mais importante, de ônibus você consegue voltar para casa mesmo meio bêbado, segundo me informaram os sábios e sensatos jovens que sugeriram a medida. Embora a viagem não tenha durado mais do que 30 minutos (com chuva torrencial), pois a casa de eventos era em Jaguariúna, eles conseguiram consumir dois litros de uísque antes de chegar lá — para não mencionar umas substâncias cafeinadas vendidas em umas latinhas. Lá, mais três litros de uísque se esgotaram fácil, além de não sei quantas cervejas e garrafas de vinho (estas incluídas no preço — o uísque tive de comprar e levar – e nem gosto de uísque.

No salão, era impossível se movimentar. Para dançar, você tinha de pedir para, por amor de Deus, lhe darem um metro quadrado de chão. Lá fora, a chuva caía sem dó. Dentro, a gente suava – e era começo do Inverno! As formandas de longo (o que sobrava em baixo faltava em cima), os rapazes de terno preto com gravata borboleta. Quando eu me formei no Ginásio, em Dezembro de 1959, se bem me lembro, o traje já era este — para vocês verem como a gente em 1959 já era avançadinho: usava roupas do ano 2000.

A comida, sofrível — coxinhas, bolinhas de queijo, perninhas de siri, e mais algumas coisas do gênero. Assim que cheguei dei 10 reais de gorjeta para a moça dos salgadinhos (e mais 10 para o garçom das bebidas) e fomos bem tratados. Um dia ainda vão chamar isso de corrupção (propina). A garrafa de cerveja chegava à metade e ele já a trocava por uma mais gelada. Os salgadinhos esfriavam eles levavam e traziam outros (?) quentes.

Para os pais, tocaram uns dois boleros e duas musicas de Ray Conniff (Aqueles Olhos Verdes e outra). Depois tocaram duas valsas de Strauss, uma para os formandos com os pais, a outra para os formandos com os cônjuges ou equiparados. Depois disso, o estilo era rebola a bundinha e solta um punzinho (juro que ouvi uma música que dizia exatamente isso).

Como não gosto de som alto, não gosto de muita gente perto de mim (especialmente bebendo), e detesto calor, diverti-me pra valer. Arre! Aproveitei o tempo para filosofar — ignorando os olhares fulminantes de meus companheiros de mesa, que, acredito, se sentiram assim meio esnobados por mim. Procurei fazer como aquele individuo, num comercial meio antigo já, que tomava cerveja a uma mesa no meio de uma arena de touros — manter a calma, sorrir quando absolutamente necessário, gingar o corpo um pouco, ainda que sentado, quando o ritmo ficava irresistível, e esperar que o tempo prossiga em seu curso inexorável. Tempo é um negócio muito importante: resolve muitos problemas. Oportunamente, até o maior dos problemas, a própria vida.

Meditei, primeiro, sobre as razões por que alguns consideram diversão aquilo que estava acontecendo ali ao meu redor. Lembram da piada da hiena? De por que ela ri? Fiquei sentindo a mesma coisa. Mas acredito que achei a resposta: lugar superlotado, temperatura acima de 30, barulho ensurdecedor, comida de botequim — só estando bêbado mesmo para achar aquilo divertido. Eles bebem tanto para conseguir se convencer de que o que estão fazendo é divertir-se. Não conseguem entender como alguém pode se divertir mais (neste caso de fato), lendo um livro, sentado, sozinho, numa sala cheia de estantes, em sua própria casa. Para se divertir, eles precisam estar em turma e estado avançado de intoxicação. Não sabem extrair de dentro de si, em estado de plena consciência, o prazer autêntico e refinado que uma boa leitura, uma boa música, um bom filme, ou uma boa conversa, podem produzir — e que não é provocado por terceiros, mas vem de dentro. Senti-me um privilegiado, ali, ao perceber que eu podia filosofar até no meio do caos.

Fiz voltar meu pensamento para a noite anterior, a da colação de grau. No mesmo local, só que com as cadeiras dispostas como em um auditório. 240 formandos (os do noturno colaram grau juntos). Que coisa mais deprimente ver aqueles marmanjos vestidos de beca, com uma touquinha na cabeça e um laço colorido na cintura. Até quando as nossas universidades vão preservar essas tradições primitivas? Quatro horas de “festa”! Para colar o grau, tinham de parar na frente do Diretor do Centro de Ciências da Saúde, que papagaiava algo ininteligível enquanto aproximava um barrete da cabeça do formando. Este, ao sair dali, colocava aquele chapelete ridículo na cabeça, assinava um livro (que poderia ter sido assinado no dia anterior), era fotografado em não sei quantas poses, e voltava para o local em que estava sentado.

O clima medieval era quebrado, de vez em quando, por umas malditas buzinas de ar que se usam em campo de futebol hoje em dia, e que arrebentam com os tímpanos de quem está perto. Ou por umas cartolinas supostamente divertidas nas mãos de formandos, que diziam coisas assim: “Já está chorando, mãe?”, “Troco um fogão e uma cama por um equipo”, “Procuro emprego”, etc. Divertido?

A isso se acrescenta a brasilidade irresponsável da classe média brasileira. As dez primeira fileiras de cadeiras indicavam que eram para os pais dos formandos. Mas não havia cordinha nem ninguém fiscalizando. O que vocês imaginam certamente aconteceu. Quem quis se sentou ali. Na hora de começar, havia quase uma centena de pais sem lugar. Daí avisaram pelo som que não iriam começar a “festa” até que os que não eram pais saíssem das dez primeiras fileiras de cadeiras para dar lugar para os pais. Avisaram nada menos do que DEZ vezes. Alguém saiu? Ninguém. Daí vieram com seguranças e tiraram aqueles que tinham caras jovens demais para passar por pais. Os mais velhos, ficaram. Nem assim deu para sentar todos os pais. Eu, que estava inicialmente na primeira fila (chegamos 45 minutos antes para pegar o melhor lugar), e vários outros pais, vimos com assombro que iriam colocar algumas novas fileiras de cadeiras na nossa frente. Quase houve briga de socos. Finalmente, chegou-se a um compromisso. Colocaram umas poucas novas fileiras de cadeiras, mas todas as fileiras existentes, até a nona, mudaram algumas fileiras para frente, deixando as filas vazias, lá atrás. De vez em quando inteligência e justiça aparecem neste nosso mundo.

Mas não adiantou grande coisa. Avisaram que não era para levarmos câmera de qualquer espécie — fotografias e filmagens seriam apenas pela empresa contratada. Contei no mínimo umas duzentas câmeras, de vídeo ou fotográficas — e todo portador de câmera vinha filmar ou fotografar, você sabe, ali: exatamente na minha frente. Uma senhora, na casa dos seus 45 anos, pediu licença para se apoiar no meu joelho enquanto se acocorava para melhor tirar uma foto — e, depois, novamente, para se por de pé. Gritos de “sai da frente”, “abaixa” (razão para que a dita senhora tenha se acocorado) abundaram.

Na hora de chamar os formandos, houve um problema. Pelo que pareceu, um formando não foi chamado na ordem em que deveria. Bastou isso para que a senhora (?) sua mãe se mandasse para a frente do salão e começasse a discutir com o mestre de cerimônias, na frente dos microfones, que ele tentava tapar. Ele não podia parar de chamar o pessoal (afinal, eram 240), e a matrona continuava e lhe enfiar o indicador nas fuças, enquanto as dela fumavam. Foi lá umas cinco vezes. Depois sumiu. Ou chamaram o filho dela, ou ela descobriu que ele a havia enganado e não estava se formando coisa nenhuma. Imaginei o vexame do marido da referida senhora. Tivesse sido comigo e eu teria desaparecido do salão, ou fingido uma síncope cardíaca.

Os paraninfos, patronos, homenageados, etc. fizeram discursos que me fizeram corar de vergonha. Como podem professores universitários dizer tanta bobagem — e, por cima, dizer mal! A gente espera que no curso eles tenham tido desempenho melhor. Mas duvido. Afinal de contas, de dentistas se espera que eles saibam trabalhar na boca dos outros, não com a própria.

Formatura, gente, é isso.

Mas estou contente. Minha filha está formada, e empregada, tratando dos dentes do povo da periferia da cidade. Tratando canais — porque, para minha surpresa, ela fez o que chamaram de curso de especialização nessa área enquanto fazia o curso de graduação. Nunca soube que você pudesse se especializar antes de se formar – ou enquanto se forma. Mas ela, apesar de não ter sido uma estudante brilhante, não me causou dissabores durante o curso (exceto pelo excesso de despesas) e é esperta. Vou lhe dar, proximamente, o supremo voto de confiança de deixá-la tratar de um canal na minha boca.

Em Campinas, 2000

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4. Professores (de ?)

Uma coisa que tem me preocupado é a seguinte: teria John Keating, do filme Sociedade dos Poetas Mortos, sido um melhor professor se tivesse um computador a ajudá-lo? Sinceramente, acho que não. Procuro rebater o que parece estar por trás dessa pergunta (aqui retoricamente feita por mim mesmo) afirmando que nem todo professor, infelizmente, é um John Keating. Um John Keating não precisa de ajudas (ancillae) — a maioria de nós, sim.

Mas em seguida me lembro de uma linda passagem de John Steinbeck, em que ele observa quão penosa é a vida da escola, quão chatos os professores — e diz: apesar disso, se você teve sorte, você encontrou uns dois ou três professores que fizeram todo o resto valer a pena, pois eles ajudaram a transformar a sua vida, a fazer de você algo que você não teria sido, não fossem eles. Os meus três, disse Steinbeck, tinham algo em comum: uma paixão enorme pelo que faziam, um entusiasmo fabuloso pelas coisas que estudavam e ensinavam, um poder de contagiar e motivar os alunos de modo a fazer com eles também ficassem envolvidos por aquela paixão e por aquele entusiasmo. Eles não nos diziam o que fazer, o que estudar, o que aprender: eles abriam janelas de oportunidades, descortinavam horizontes, impregnavam a gente com uma vontade incrível de aprender, de saber cada vez mais, com um amor pelo conhecimento e pela verdade que tudo o mais parecia perder a importância; eles mostravam que, se a gente quer alcançar conhecimento, quer alcançar a verdade, sobre seja o que for, a gente tem de batalhar, lutar por ela, porque a verdade não é manifesta. Quando a gente encontra um mestre assim, a vida nunca mais é a mesma. O que esses mestres nos transmitem não são dados, não são informações. Talvez seja conhecimento, mas é mais provável que seja algo que jaz além do dos dados, das informações, dos conhecimentos: sabedoria, que é mais do que conhecimento —  é o amor ao conhecimento; que é mais do que a verdade — é o amor pela verdade. Sim: se for sabedoria, está muito perto dela…

Um mestre assim, com toda a probabilidade, não precisa de computador.

Michael Hammer disse, no livro que escreveu depois de Reengineering: educação é aquilo que fica conosco depois que nos esquecemos de tudo aquilo que nos foi ensinado. Esquecemo-nos rápido do que nos foi ensinado — se o que nos foi ensinado foi apenas conteúdo curricular, matéria, conhecimento, informação, dado puro e simples. Se nós tivemos sorte, o que resta, depois de esquecermos os conteúdos que nos foram ensinados, é a curiosidade insaciável, é a vontade de aprender sempre, é o desejo de saber cada vez mais, é o inconformismo com respostas prontas, pré-fabricadas, com o dogmatismo daquele que se acha o orgulhoso possuidor da verdade em vez de se achar, como devia, seu humilde perseguidor.

Como é que a gente consegue ser um professor à imagem e semelhança de John Keating, ser um professor como um dos três que mudou a vida de John Steinbeck? Precisa computador pra isso? Mais: se a gente souber ser um John Keating, e tiver acesso a um computador, será que o computador ajuda ou atrapalha?

Tive mais sorte do que John Steinbeck. Eu tive mais do que três, tive o dobro, meia dúzia: Mercedes da Silveira Lopes (depois Lopes Ferraz), Maria Elza Fiuza Teles, Ernst Manuel Zink, Dietrich Ritschl, Ford Lewis Battles e William Warren Bartley III. A primeira dessas foi minha professora do quarto ano do Grupo Escolar, Dona Mercedes. Ela, por alguma razão, gostava de mim, e me convenceu de que eu poderia ser o que quisesse na vida. Dona Elza foi minha professora de Francês no curso Clássico. Só a conheci quando já tinha 18 anos completos. Ela me retirou da classe e me dava aulas particulares na casa dela, que mora com o restante dos professores e alunos no colégio, que era interno. O Professor Zink foi meu professor de Alemão, no Goethe Institut, durante seis estágios – que eu, com sua ajuda, consegui atravessar um dois semestres, enquanto fazia o terceiro ano do Seminário Presbiteriano de Campinas. Os Professores Ritschl e Battles, cada um à sua moda, não davam aula como os demais professores dava aula. Eles conversavam, batiam papo, tornavam a História da Igreja e do Pensamento Cristão Ocidental uma coisa fascinante… Eu fazia o Mestrado e o Doutorado quando estudei com eles. O último, Bill Bartley, foi meu orientador de Doutorado: convivi com ele quando eu tinha 27-28 anos – ele tinha dez anos mais do que eu – e já está morto desde 1990. Os meus seis professores, os meus mestres de vida, apareceram tarde em minha vida, em sua maioria. Mas apareceram, e, em parte, fizeram de mim o que sou hoje. A outra parte, quero crer, fui eu que contribuí. Meu terreno estava fértil e a época do plantio era certa.

Além desses seis, tive pelo menos mais quatro, virtuais, que me ensinaram por livros: Aristóteles, David Hume, Karl Popper e Ayn Rand. Sou um indivíduo realmente de sorte.

Sem falsa modéstia, grandes questões são estas que levanto. Como todo bom filósofo, sou melhor para levantar questões do que para respondê-las. Sou melhor como agente provocador do que como quem aplaca provocações.

Em Campinas.

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5. A Linguagem e as Línguas (de ?)

[Crônica à guisa de uma mensagem dirigida a Luciana Salgado, em resposta a uma mensagem sua, transcrita abaixo, na lista de discussão do Programa “Sua Escola a 2000 por Hora” do Instituto Ayrton Senna]

Uma participante de um Grupo de Discussão sobre Educação me enviou uma mensagem com a seguinte Linha de Assunto: “Terceira Língua”, a propósito de uma reportagem do Estadão que dizia, no ano 2000, que saber apenas uma língua além da própria não seria suficiente no Século 21: seria necessário, afirmava o repórter, que falássemos pelo menos três línguas no Terceiro Milênio da Era Cristã. Disse ela:

“Oi, Eduardo

Fiquei preocupada com essa reportagem. Estou lutando para conseguir ter o domínio de pelo menos mais uma língua e, quando vejo, já está sendo falado que o ideal é ter o domínio de uma terceira!

O que tenho sentido, é que sem o Inglês realmente não dá para ficar. Muitas bibliografias interessantes na área educacional encontram-se somente nessa língua. Ou seja, se você quer se aprofundar nos seus estudos, você tem de dominá-la.

Agora o que mais me preocupa, é a maioria da população brasileira, que mal se comunica em Português, quanto mais em Inglês e muito menos ainda em uma terceira língua!!!”

Respondi a ela nestes termos…

A linguagem, minha cara, é uma das principais ferramentas com que descrevemos a realidade e, mais importante ainda, com que pensamos, nos comunicamos, e argumentamos uns com os outros. Na realidade, subjazendo às linguagens naturais há a lógica, mas a lógica se apresenta originalmente através das roupagens de nossas linguagens naturais — primeiro da língua materna, depois de outras línguas estrangeiras que aprendemos.

Todo mundo tem uma língua materna. E em vários momentos da história da humanidade, uma segunda língua se tornou obrigatória para quem desejou se tornar cidadão do mundo. O Grego exerceu esse papel durante um tempo, o Latim durante muito mais tempo ainda. Hoje é o Inglês. Aqueles que aprendem uma língua materna diferente do Inglês precisam aprender o Inglês tão cedo quanto possível, se querem sobreviver neste mundo globalizado. Você percebeu isso.

O problema é que muitos outros também perceberam, e bem antes de você. Por isso, no mundo verdadeiramente globalizado, o Inglês está deixando de ser um diferencial – porque quase todos o falam… O fator diferenciador, nessa área, começa a ser uma terceira língua — que, para nós, aqui, provavelmente será o Espanhol. Na Europa deve ser o Francês, o Alemão, ou, menos provável, talvez Italiano… Em todo o mundo o Inglês é a segunda língua — a terceira, depende da geopolítica. Para os países satélites da ex-União Soviética, o Russo provavelmente seria a terceira língua natural… Para os canadenses de fala inglesa, o Inglês é a primeira, o Francês a segunda, e o Espanhol, provavelmente, a terceira. E assim vai.

Já defendi a tese, por escrito, numa das listas que coordeno na Internet [a Edutec], de que se a Educação Fundamental não fizesse outra coisa, durante seus nove anos, além de tornar as crianças realmente competentes no domínio das várias habilidades requeridas para entender e se expressar, oralmente e por escrito, na língua materna, nos vários contextos (descritivos, comunicacionais, argumentativos, expressivos [poesia, por exemplo]), etc. em que ela é usada, já faria muito por elas — mais que nosso atual sistema faz. Se, nos três anos da Educação de Nível Médio, as crianças (já adolescentes) aprendessem competentemente mais duas línguas estrangeiras, estariam, ao terminar a Educação Básica, prontas para aprender o que quer que fosse. Já estariam equipadas com o ferramental básico. De certo modo tenho inveja das crianças e adolescentes que crescem na Suíça: crescem falando Alemão, Francês, Italiano (todas línguas oficiais do país) e, naturalmente, o Inglês (que não é língua oficial da Suíça mas talvez seja a língua mais falada no país). E comovente ver uma criança se comunicando fluentemente em tantas línguas antes de entrar na Universidade.

Cometemos um crime contra nossas crianças e contra as gerações futuras quando deixamos crianças crescer sem dominar competentemente a língua materna, oral e escrita. Aqui na nossa lista dos alunos [lista paralela à dos professores, para a qual escrevi esta mensagem] vemos que desastre é a expressão escrita da maior parte dos nossos alunos. As crianças que não aprendem de forma realmente competente a língua materna terão dificuldade em aprender outras coisas. Não construímos os alicerces e depois esperamos que as paredes sejam sólidas. Não são e nunca o serão.

A linguagem é a ferramenta por excelência de nosso trabalho como educadores — e muitos de nós exibimos falhas gritantes no nosso domínio dessa ferramenta. Temos dificuldade para ler textos mais complexos, expressamo-nos mal, de maneira vaga, imprecisa, ambígua, cometemos erros gritantes de sintaxe e ortografia quando escrevemos. Não sabemos falar em público, embora seja falando em público que ganhamos nossa vida — e depois nos surpreendemos de que nos remunerem mal…

A Carla Peres não ganha a vida dela usando a voz — ela usa outras ferramentas. Mas assim que descobriu qual ferramenta era essencial para o seu trabalho, procurou cultivá-la, aperfeiçoá-la (como se fosse necessário…) — colocou-a até no seguro: segurou a bunda… Quisera eu que nós educadores fôssemos tão preocupados com nossa principal ferramenta de trabalho: nossa linguagem, tanto falada como escrita.

Como disse em uma outra mensagem, sobre o computador, o uso competente do computador pressupõe o domínio de uma tecnologia mais básica ainda, a linguagem verbal, especialmente a escrita. Muitos vão fazer do computador um mero audiovisual, uma outra televisão, porque não se sentem à vontade com o texto, a linguagem escrita.

Há dias transcrevi aqui uma crônica de Mario Prata [que transcrevo a seguir] — deleitando-se com o fato de que as pessoas estão voltando a se apaixonar umas pelas outras, não em função da aparência física ou da condição social, mas em função dos textos que cada uma é capaz de produzir… Quem se apaixonaria por nós com base em nossa produção escrita?

Acabei de ver no TeleCine 5 um lindo filme — de 1945, com Jennifer Jones e Joseph Cotten, chamado Love Letters (Cartas de Amor) que aborda um tema até desgastado, tão comum se tornou.  O enredo é de minha “ídola”, Ayn Rand. Durante a guerra, duas pessoas que haviam rapidamente se conhecido antes da guerra começam a trocar cartas. O rapaz, Roger Morland, porém, não sabe escrever direito, e, por isso, pede ao seu amigo, Alan Quinton, que escreva para ele. Quinton sabe escrever, e escreve cartas que deixam Victoria Singleton verdadeiramente apaixonada — ele, também, se apaixonando por ela por causa das suas cartas… Terminada a guerra, Victoria e Roger se casam, ela se torna Victoria Morland… Mas logo percebe que o homem com quem casou não poderia ter escrito as cartas que ela tanto ama… Passa a viver lendo as cartas, na esperança de que elas consigam transformar o marido que tem ao lado na pessoa que as cartas revelavam. Não dá certo. A história assume tonalidades dramáticas, porque Roger morre esfaqueado e Victoria perde a memória…

O fascinante do filme, porém, como de tantos outros, como 84 Charing Cross Road (Nunca Te Vi, Sempre Te Amei), é que as pessoas mais sensíveis se apaixonam, não pela aparência dos outros, ou por sua riqueza, ou por seu poder político, mas por suas palavras, por seus textos – por aquilo que elas têm dentro de si e as palavras conseguem colocar para fora. É pelas palavras, ou seja, pela linguagem, que revelamos o nosso ser mais íntimo — e que descobrimos o do outro.

Quem não domina, no maior nível de competência possível, pelo menos a língua materna, é um verdadeiro excluído das experiências mais profundas e significativas que um ser humano pode ter. Quando o mundo se torna a nossa casa, a língua que o mundo fala passa a ser nossa segunda língua materna. Este o estatuto que o Inglês alcançou hoje. Em nossos contatos mais significativos, a linguagem é essencial. Por isso, os brasileiros, que somos uma ilha lusófona em meio a um mar de hispano-falantes, precisamos também aprender espanhol.

Se alguém, aqui, tiver um relacionamento significativo com alguém que fala, como língua materna, o Francês, ou Italiano, ou o Alemão, ou o Japonês, ou o Árabe, ou o Coreano, ou o Chinês, terá de aprender essa língua se tem interesse em explorar as profundezas maiores que um relacionamento pessoal pode propiciar. Uma transa, ainda que diária, dura 30 minutos, se tanto… E nas outras 23 horas e trinta minutos, se não soubermos dizer o que sentimos, na língua materna da pessoa que amamos, com a mesma naturalidade que dizemos na nossa, estaremos deixando de explorar o significado maior de um relacionamento…

É isso. Quando alguém me pergunta o que eu acho, eu digo. Às vezes me repito um pouco, mas nunca me repito igual, do mesmo jeito…

Deslanchei na língua inglesa quando, aos 19 anos, no inicio de 1963, arrumei uma namorada, que, embora nascida em Peking, era filha de americanos e havia sido criada no Brasil, falando, portanto, o Português com perfeição. Queria poder, como ela, conversar e escrever naturalmente em duas línguas… O namoro durou menos de um ano. Mas o interesse pelo multi-linguismo permanece até hoje.

Hoje tenho uma filha que tem no Inglês a sua língua materna. Não seria um pai pleno para ela se não conseguisse conversar com ela, com naturalidade, na língua dela, nos momentos de maior relaxamento e intimidade. E ela tem feito grande esforço para aprender o Português, não porque pretenda vir a viver ou trabalhar aqui — mas para poder conversar com naturalidade com seus parentes para quem o Inglês não é língua materna. Eu já sabia Inglês quando ela nasceu. Para ela, porem, é um esforço maior — que eu procuro plenamente reconhecer e apreciar. Quando ela tiver filhos, provavelmente não terei outra alternativa senão conversar exclusivamente em Inglês com eles… — a menos que eles, com sensibilidade e sensatez, percebam que eles sairão ganhando se aprenderem o Português, como segunda, ou mesmo como terceira, língua.

Ninguém aprende apenas uma nova língua. Aprende, ao mesmo tempo, uma cultura, com seus valores, com sua estética, com sua sensibilidade. Aprende um novo mundo e um novo jeito de ver o seu próprio mundo.

Eis a crônica do Maria Prata.

O Estado de São Paulo
Quarta-feira, 20 de setembro de 2000

Amor só de Letras

Mário Prata

Conta a história que dom Pedro II casou-se sem conhecer a sua noiva. Tinha visto um quadro com a cara da princesa. Casamento de interesses políticos lá dos portugueses, fazer o quê? E quando a moça chegou no porto do Rio de Janeiro – consta – que ele fez uma cara emocionada. Pela feiura da imperial donzela. Mas casou, era o destino, era a desdita.

Tenho um avô que foi pedir mão da moça e o pai dela disse:

– Essa tá muito novinha. Leva aquela.

E ele levou aquela que viria a ser a minha avó. Ah, a outra morreu solteirona.

Quando aconteceu o grande boom da imigração japonesa, alguns anos depois, familiares que lá ficaram mandavam noivas para os que cá aportaram. Tudo no escuro. E de olhinhos fechados, ainda por cima. De uns tempo para cá, o conceito da escolha foi mudando. Até ir para a cama antes, valia. Ficava-se antes.

Só que agora, finzinho do finzinho do século, surgiu um outro tipo de casamento. O casamento de letras. Letras de textos. O texto – finalmente, digo eu, escritor – virou casamenteiro. Apaixona-se, hoje em dia, pelo texto. Via Internet. Via cabo, literalmente.

Conheço quatro casos bem próximos. Gente que desmanchou o casamento de carne e osso por uma aventura no mundo das letras.

Claro que estou me referindo aos encontros via Internet. Começa no chat, com o texto. Gostou do texto, leva para o reservado. E lá, rola. Eu mesmo já me envolvi perdidamente por dois textos belíssimos. Moças de vírgulas acentuadas, exclamações sensuais e risos de entortar qualquer coração letrado ou iletrado.

Sim, pela primeira vez nesta nossa humanidade já tão velhinha, as pessoas estão se conhecendo primeiramente pela palavra escrita. E lida, é claro.

Já disse, isso envaidece qualquer escritor. Agora, o texto pode levar ao amor. Uma espécie de amor-de-texto, amor-de-perdição.

A relação, o namoro, começa ali no monitor. Você pode passar algumas horas, dias e até semanas sem saber nada da outra pessoa. Só conhece o texto dela. E é com o texto que vai se fazendo o charme. Você ainda não sabe se a pessoa é bonita ou feia, gorda ou magra, jovem ou velha.

E, se não for esperto, nem se é homem ou mulher. Mas vai crescendo uma Coisa dentro de você. Algo parecidíssimo com amor. Pelo texto.

Pouco a pouco, você vai conhecendo os detalhes da pessoa. Idade, uma foto, a profissão, a cor. Inclusive onde mora. Sim, porque às vezes você está levando o maior lero com o texto amado e descobre que ele vem lá da Venezuela. Ou do Arroio Chuí. Mas se o texto for bom mesmo, se ele te encanta de fato e impressiona, você vai em frente. Mesmo olhando para aquela fotografia – que deve ser a melhor que ela tinha para te escanear (ou seria sacanear, me perdoando o trocadilho fácil) você vai em frente.

“Uma pessoa com um texto desses…”

A tudo isso o bom texto supera.

Quando eu ouvia um pai ou mãe dizendo “meu filho fica horas na Internet”, todo preocupado, eu também ficava. Até que, por força do meu atual trabalho, comecei a navegar pela dita cuja. E descobri, muito feliz da vida, que nunca uma geração de jovens brasileiros leu e escreveu tanto na vida. Se ele fica seis horas por dia ali, ou ele está lendo ou escrevendo. E mais: conhecendo pessoas. E amando essas pessoas.

Jamais, em tempo algum, o brasileiro escreveu tanto. E se comunicou tanto. E leu tanto. E amou tanto.

No caso do amor ali nascido, a feitura, o peso, a cor, a idade ou a nacionalidade não importam. O que é mais importante é o texto. O texto é a causa do amor.

Quando comecei a escrever um livro pela Internet, muitos colegas jornalistas me entrevistavam (sempre a mim e ao João Ubaldo) perguntando qual era o futuro da literatura pela Internet.

Há quatro meses atrás eu não sabia responder a essa pergunta. Hoje eu sei e tenho certeza do que penso:

– Essa geração vai dar muitos e muitos escritores para o Brasil. E muita gente vai se apaixonar pelo texto e no texto.

Existe coisa melhor para um escritor do que concluir uma crônica com isso?

[Fim da transcrição da crônica de Mário Prata.]

Em Campinas.

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6. Free Flow of Consciousness (de 15.4.2008)

São 20h, horário de Tóquio — 8h, horário do Brasil. O dia é 15/4, terça-feira, o ano é 2008, em ambos os lugares. Estou no vôo UA 884 da United, que me leva de Tóquio para Chicago.

Desde criança me fascino com o fato de que o Brasil (Leste – São Paulo, Rio) e o Japão estão exatamente doze fusos horários a parte. São Paulo fica três horas atrás do horário do meridiano de Greenwich — ou GMT -03, GMT querendo dizer Greenwich Meridian Time. Tóquio fica nove horas na frente do horário do meridiano de Greenwich — ou GMT +09. Ao todo, doze fusos horários separam as duas cidades. Sempre achei curioso que, quando era meio-dia em São Paulo, já fosse meia-noite em Tóquio — ou seja, que quando estivéssemos almoçando em Santo André (cidade em que cresci, na Grande São Paulo) os toquianos já estivessem entrando num novo dia, provavelmente em pleno sono. No meu imaginário infantil a idéia se alimentava de que os japoneses eram o oposto de nós — idéia que, em seu extremo, resultava na imagem de que, se a gente cavasse um buraco suficientemente fundo na superfície da Terra na região de São Paulo, iria acabar saindo, no lado oposto, na região de Tóquio — imagem que não levava em conta o fato de que nós estávamos no Hemisfério Sul, Tóquio no Hemisfério Norte. Para o experimento dar certo o buraco teria de ser furado meio na diagonal…

Saí de Tóquio, em direção a Chicago, às 18h de hoje, 15/4 Vamos estar no ar por aproximadamente doze horas, e vou chegar a Chicago por volta das 16h do mesmo dia — duas horas antes do horário em que saí de Tóquio, porque Chicago está 14 horas atrás de Tóquio… Esse é o tipo de coisa que me fascina. Ou seja, vamos estar no ar durante doze horas, apenas para tirar parte da diferença, em fusos horários, que separa Chicago de Tóquio. Se estivéssemos indo de Tóquio para São Paulo, direto, e a viagem levasse as mesmas doze horas, chegaríamos exatamente no mesmo horário em que havíamos saído… Fascinante. Para onde teria ido o tempo que evaporou?

Saí de Hanói — que fica duas horas atrás de Tóquio — às 23h30 de ontem, 14/4, segunda-feira, em direção a Seoul, que está no mesmo fuso horário de Tóquio. O vôo era da Asiana, empresa aérea coreana que faz parte do sistema Star Alliance, liderado pela United. O embarque em Hanói  foi tranqüilo, porque com os cartões especiais de Frequent Flyer da United fomos direto para a frente da fila, o Les Foltos e eu. Depois de fazermos o check-in, ficamos na Sala VIP da Asiana em Hanói, até o horário de embarque. Pobrinha a sala VIP deles — mas tinha computadores e Internet de graça para quem quisesse usar.

A propósito, li na Newsweek desta semana (Edição Internacional com data de 14/4) que, enquanto os governos de alguns países (como a Arábia Saudita) censuram sites pornográficos da Internet, impedindo os seus cidadãos de visualizarem material com conteúdo sexual, digamos, explícito, o governo comunista do Vietnam censura sites cujo conteúdo político possa interferir com os seus propósitos. Aliás, vale a pena ler o artigo inteiro, que tem o curioso título de “Repression 2.0”. A tese principal é de que, nos tempos da Internet tradicional (a Internet 1.0), a repressão era menos sofisticada: sites eram simplesmente bloqueados. Às vezes extensões “top level” inteiras eram bloqueadas. Lembro-me de que, uma vez, quando estive em Perth, na Austrália, dando uma série de palestras a convite da Associação Australiana de Escolas Particulares, fiquei hospedado na Saint Hilda’s Anglican School for Girls, uma escola chiquérrima que tem um excelente apartamento para (professores) visitantes. Descobri, muito a contragosto, que, de dentro da escola, a extensão “top level” .br inteira era censurada para as alunas (não para os professores, descobri depois). Qualquer site que eu digitasse que terminasse em .br, como o site do UOL, por exemplo, me trazia uma mensagem na tela de que o acesso àquele site estava proibido. Só no dia seguinte, depois que eu reclamei, me deram uma senha de professor, que não tinha a restrição. Ou seja, professor podia até ver as meninas seminuas do Paparazzi — mas as aluninhas da escola, mulheres como as outras, não… Mas, voltando ao assunto do artigo da Newsweek. Na Internet 2.0 (a Internet dos webmails, dos sites de relacionamento, como o Orkut, é mais difícil fazer esse tipo de censura “no atacado”. O problema é sintonizar o filtro: restrinja-se demais o filtro e se impede o usuário de ver coisas perfeitamente inócuas até do ponto de vista do censor (como ler a Folha de S. Paulo de dentro de Saint Hulda’s); flexibilize-se demais o filtro e ele vai permitir que conteúdos considerados impróprios sejam exibidos. Censurar o Orkut inteiro porque há algum material impróprio lá dentro? Isso pode impedir os usuários de fazer bom uso do Orkut. Não censurar o Orkut? Os usuários, neste caso, poderão a aceder a materiais — de natureza sexual ou política — que o censor considera profundamente inconvenientes. A solução que os novos censores acharam, segundo o artigo da Newsweek, foi agir de forma mais sutil, não “no atacado”. Os censores hoje dão a impressão (nos países que praticam esse tipo de censura) de que eles lêem, ou pelo menos gravam, tudo o que se passa na Internet, de modo que se você entrar num site considerado impróprio, mais cedo ou mais tarde eles vão descobrir. Se os usuários acharem que os censores de fato fazem isso, eles nem precisam fazê-lo: os próprios usuários se censuram!!! Terrível, não? É COMO SE os censores governamentais — ou, o que seria equivalente, os pais, ou o cônjuge, ou os próprios filhos — estivessem sempre atrás da gente, observando, por cima do nosso ombro, o que a gente faz, escreve, lê na Internet… Quando a gente está absolutamente seguro de que ninguém está olhando, a gente faz coisas que nunca faria quando sabe — ou suspeita — que alguém está nos observando… É esse o princípio da “Repression 2.0”: dar a impressão de que os censores do governo, os censores da empresa, os censores do lar estão por todo lado e que tudo o que você faz é devidamente observado, classificado, registrado e arquivado para uso futuro. Um dia, quando você tiver algum problema com o governo (ou com seu chefe) ele pode lembrá-lo de que, você, sessentão, pai e avô, respeitado na comunidade, etc., andou bisbilhotando umas fotinhos inocentes da Britney Spears sem calcinha… Ou andou demonstrando interesse num vídeo do Alexandre Frota (antes da conversão) ou da Rita Cadillac. O princípio básico é o de que não é nem necessário montar toda uma estrutura para fazer esse tipo de censura: basta convencer os “súditos” de que você a possui — e eles próprios se encarregam de se censurar. O seu próprio superego faz o trabalho sujo dos censores.

Nessa época de debate sobre a China, o Tibet, os Jogos Olímpicos, consta que a governo chinês, com a colaboração das companhias de telefonia celular, de vez em quando envia uma mensagem sem remetente, totalmente anônima, a todos os usuários dos telefones, dizendo coisas como “Obedeça a lei”, “Siga as regras”… Está feito o serviço. O pobre usuário, que provavelmente aqui ou ali desobedeceu uma leizinha idiota, ou quebrou uma regrinha imbecil, fica matutando: os fdps sabem que eu fiz isso, por isso estão me mandando esse recado. E, assim, da vez seguinte em que a oportunidade se apresentar, ele não faz: seu superego o censura…

Mas voltemos à minha viagem de volta para o Brasil. O bom filho à casa torna.

O vôo de Hanói a Seoul levou apenas três horas e meia (na ida foram quase cinco horas) — e chegamos a Seoul às 5h (não se esqueçam de que Seoul está duas horas na frente de Hanói). Em Seoul, fomos direto para a Sala VIP da Asiana,  A sala estava quase vazia quando ali chegamos, Les Foltos e eu. Eu belisquei alguma coisinha, para servir de acompanhamento para um café do tipo Latte. Mas o Les, que, na minha opinião, está totalmente orientalizado, tomou chá com sopa de macarrão e verduras cozidas — isso antes das seis da manhã, pode? Entre as verduras cozidas havia repolho, couve-flor e outras coisas que só os orientais conseguem comer a essas horas da manhã. Ficamos na Sala VIP perto de seis horas, trabalhando nos nossos computadores. A sala tem uma rede wireless razoável — e gratuita. Um pouco antes das 11h rumamos para o portão 45 do interminável aeroporto de Incheon (Incheon está para Seoul como Guarulhos para São Paulo, em termos de localização dos respectivos aeroportos), de onde sairia o vôo da United para Tóquio, porque em Hanói só nos deram o cartão de embarque até Seoul: os demais cartões, disseram-nos, deveríamos obtê-los em Seoul (e de fato os obtivemos).

Como isso aqui é “free flow of consciousness”, é esquisito que o principal aeroporto de São Paulo tenha, como código internacional de identificação, GRU. Essas três letrinhas vêm, naturalmente, de Guarulhos (como CGH vem de Congonhas e VCP de Viracopos). Minha bagagem está etiquetada para GRU. Na verdade, a etiqueta indica que saí de HAN (Hanói), passei por ICN (Incheon / Seoul), passei por NRT (Narita / Tóquio) e vou passar por ORD (Ohare / Chicago, que tem como código ORD porque o aeroporto, quando era um mero campinho de aviação, no meio de uma plantação de hortaliças, se chamada Orchard…), antes de chegar a GRU.

De Seoul a Tóquio o vôo foi de mais ou menos duas horas e meia. Dormi a maior parte do tempo (só tirando um tempinho para comer uma salada).

Em Tóquio, onde chegamos por volta das 14h30, mais espera. Ficamos no Red Carpet Club da United. O Les saiu para Seattle às 16h e eu para Chicago às 18h.

O meu vôo de Tóquio para Chicago saiu duas horas depois de um outro vôo da United com o mesmo destino. Resultado: o meu vôo está totalmente vazio. Na classe Executiva deste Boeing 777 há 45 lugares, e apenas dez passageiros — cada um dono de um pequeno feudo. Pude deixar minha maleta de mão em cima da poltrona do lado, posso pegar o computador quando quiser, uma beleza.

Tomei duas taças de vinho e comi uma salada. Dispensei o filé mignon que seria o prato principal: fui direto para a sobremesa, um bolo gelado de chocolate delicioso, acompanhado de Vinho do Porto.

E agora estou aqui, batendo papo — ou, como diz o caipira do interior de São Paulo, jogando prosa fora… Como disse, ninguém está sentado do meu lado, de modo que posso esparramar minha tralha por duas poltronas enormes. Ali estão, além da maleta do computador, a Newsweek e o Time (com o Papa na capa), fones de ouvido, kit com escova de dentes, etc.

Com todo o vinho tomado, estou com sono. Vou guardar o computador e depois volto.

Pronto, estou de volta. Dentro de duas horas chegaremos a Chicago. Dormi bastante e bem, ouvindo dois CDs de hinos religiosos que povoaram a minha infância. O nome da coleção de dois CDs é “Thomas Kincade’s 32 Country Gospel Classics”. Uma beleza, para quem gosta do gênero, como eu. O cognitivo (a cabeça) faz a gente deixar de ser religioso, mas o emocional (o coração) mantém, escondidinho em algum lugar recôndito, resquícios do tempo em que a gente foi religioso, e a gente continua a gostar de hinos cujas letras são simplesmente horrorosas. Ou seja, o coração tem seus cantinhos que a própria razão desconhece — ou simplesmente ignora, por considerá-los inofensivos.

A aeromoça já veio trazer aquelas toalhinhas quentes que servem para a gente fingir que lava a cara quando acorda num vôo longo… Dispensei o café da manhã (só aceitei um suco de tomate gelado) — não estou com fome. Além disso, ficarei na Sala VIP da United, onde há comida boa, e, depois, pegarei o vôo para o Brasil, em que haverá um bom jantar. Isto significa que devemos chegar mais cedo do que previsto em Chicago.

No momento ouço “Near the Cross” (“Junto à Cruz”, em Português), cantado por Eddie Arnold. É curioso como quase todo cantor americano mais convencional (isto é, excluídos os roqueiros da pesada) que se preza mais cedo ou mais tarde grava um disco de hinos — ou, no mínimo, de músicas de Natal. Elvis Presley, Frank Sinatra, Perri Como, George Whitakker, Doris Day, Barbara Streisand, Anne Murray (que é canadense), you name it, todos gravaram. Os do Presley são maravilhosos: creio que os tenha todos.

Estou cansado. Por mais confortável que seja a classe Executiva da United, uma viagem que mantém você no ar por cerca de 32 horas, ainda que em quatro segmentos, especialmente para quem vai fazer 65 anos esse ano.

Por falar nisso, vou comentar rapidamente o sistema que tenho (em Excel) para me lembrar de tomar todos os meus remédios na hora certa. Tomo cinco remédios de manhã, dois na hora do almoço, e cinco de novo na hora do jantar. Doze comprimidos, ao todo. Quando viajo e atravesso vários fusos horários, tenho de fazer uma tabelinha que me diz quando devo tomar cada conjunto de remédios. Há várias soluções para o problema, mas optei por manter o horário do Brasil. Como a maioria dos países da Ásia está cerca de 12 horas, mais ou menos duas, do Brasil, simplesmente inverto a hora de tomar os remédios: os que tomaria na hora do café da manhã tomo no jantar; os que tomaria na hora do almoço, tomo antes de ir dormir; e os que tomaria na hora do jantar, tomo ao me levantar. Funciona bem. O problema maior é a hora de tomar os remédios em trânsito, quando estou indo de um lugar para outro. Tomei há pouco os remédios da hora do almoço — porque já estou operando no fuso horário de Chicago, que, no momento, está só duas horas atrás do de São Paulo. Um coisinha dessas dá trabalho, quando você sai da rotina.

Antes de terminar, lembrei-me de uma notícia curiosa que li no International Herald Tribune, Edição Ásia, enquanto estava em Seoul. Em algum lugar do mundo em que mudanças de sexo são legalmente permitidas, uma mulher, que nunca havia se sentido confortável no seu corpo de mulher, conseguiu permissão para mudar legalmente de sexo e sofrer os procedimentos médicos, cirúrgicos e medicamentosos, necessários para adequar seu corpo à sua nova identidade legal. Ou seja, legalmente virou homem, mudando de nome e de sexo (que os politicamente corretos preferem chamar de gênero, porque não gostam de falar de sexo). Tomou hormônios, cresceu barba e bigode, removeu cirurgicamente os seios, etc. E, como de certo modo pareceria inevitável, se casou (legalmente — estamos falando de um país prafrentex) com uma mulher. Passado algum tempo, quiseram ter um filho. A lei e a medicina podem ir até certo ponto, mas não conseguem (hoje) fazer com que um homem construído de um corpo de mulher consiga engravidar a esposa (Dani: uso o termo aqui apenas por falta de maiores recursos lingüísticos, dado o contexto). Resultado, optaram por comprar esperma de um banco de esperma para que a esposa pudesse ser impregnada artificialmente. Na hora de fazer isso, descobriram que ela tinha um problema e não poderia ficar grávida. Solução? Foram verificar se o corpo do marido, a despeito da barba e do bigode, e da falta dos seios, ainda teria condições de ser impregnado artificialmente — e tinha, pois o útero não havia sido removido e, aparentemente, estava em pleno funcionamento. Resultado: hoje quem passar pela cidadezinha onde mora o casal pode ser que veja um distinto senhor, de terno, barba e bigode, tremendamente grávido, ao lado de sua mulher magrinha e esbelta. Ironias do mundo moderno.

Estamos chegando.

ET: Chego aos Estados Unidos ao mesmo tempo que o Papa.

No ar, entre Tóquio e Chicago, 15 de Abril de 2008

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7. Arremetidas (de 24.8.2007)

O último acidente da TAM — infelizmente eles têm se tornado tão frequentes que a gente precisa se referir a eles qualificando-os — trouxe à baila a discussão de alguns termos da aviação que poucos de nós conhecíamos: primeiro foi “grooving“, depois reverso, manete, “idle“, etc. Entre os termos discutidos estava o verbo arremeter. Houve um momento, logo depois do acidente, em que se acreditou que os pilotos do avião que explodiu tentaram arremeter — isto é, inverter o processo de aterrisagem e levantar voo novamente. Isso pode se dar antes ou depois de o avião tocar o solo e, pelo que diziam os especialistas em aviação, é tão frequente que um pouso nada mais é do que uma arremetida que não aconteceu… Ou seja, pousar é como se fosse fracassar no arremeter…

Que seja. Mas quando acontece, assusta!

Aconteceu comigo hoje (ou ontem — dia 23/8/2007). Quando você voa e passa a “International Date Line”, fica complicado saber que dia é. Esqueci de dizer que estou escrevendo em voo, o voo UA 837, da United, de San Francisco para Tóquio (Narita). Saí do Brasil ontem (dia 22/8/2007), no vôo UA 842, da mesma United, para San Francisco, via Chicago (O’Hare). Chegamos a Chicago na hora, sem problemas e saímos de Chicago para San Francisco também sem problemas. Quando estávamos aterrisando em San Francisco — já estávamos baixinhos, baixinhos, quase esperando o toque das rodas do avião na pista — passa um outro avião na nossa frente (eu estava olhando a linda paisagem da baía de San Francisco e o vi sem acreditar no que estava vendo), assim como um carro passa na nossa frente num cruzamento em T. Carros só andam no nível do chão, mas aviões podem andar mais alto ou mais baixo. Esse, que passou na nossa frente estava no mesmo nível que o nosso, só que estava levantando vôo. É claro que levei aquele susto, mas o que me assustou ainda mais foi que nosso piloto também parece ter se assustado porque… é isso mesmo: arremeteu!!!

Todo mundo dentro do avião olhou para o companheiro do lado e disse (ainda que não verbalizado): “Epa!”. Como já voávamos muito baixo e o nosso avião estava como que planando, o processo foi fácil de sentir: o bico do avião levantou, como num “take-off“, e os motores foram acelerados, como acontece quando a gente subitamente passa a marcha do carro de quinta para quarta e depois para terceira para fazer uma ultrapassagem crucial numa subida. A gente sentiu a inversão da direção (de para baixo para para cima) no próprio corpo e ouviu a aceleração das turbinas — e, pela janelinha, viu a bela paisagem da baía ir ficando lá embaixo e as primeiras nuvens aparecerem… Foi um negócio rápido. Em poucos segundos estávamos novamente acima das nuvens, vendo, não mais a baía, mas as montanhas.

Depois de já estarmos bem no alto novamente, o comandante deu um aviso curto, que não dizia mais do que o necessário — e o óbvio (pelo menos para quem viu o outro avião passar na nossa frente): “Como vocês devem ter percebido, tivemos de interromper momentaneamente o procedimento de descida por causa de tráfego aéreo. Devemos aterrisar dentro de cerca de dez minutos”. Aterrisamos, desta vez sem susto. Ao sentir o avião tocar na pista de levinho, senti vontade de bater palmas — e me surpreendi quando o homem no assento ao lado, que não havia aberto a boca durante as quatro horas e quinze minutos de voo, disse: “Dá até vontade de bater palmas, não dá?” (“it feels like clapping, doesn’t it?”)

Para mim, a observação do colega de voo é prova insofismável de que a natureza humana de fato existe. Temos reações muito semelhantes diante das coisas. É isso que faz a literatura, o teatro, o cinema possível. O autor do livro ou o diretor da peça ou do filme sabe quando vamos rir, quando vamos ficar penalizados, quando vamos chorar… O autor de um quadro ou de uma escultura sabe quando vamos achar a obra linda ou quando vamos ficar chocados diante dela. (Não vou à Bienal, como regra, para não ficar chocado diante de boa parte do que lá se exibe).

Mas voltemos ao nosso vôo UA 842. Com os quase 15 minutos adicionais, requeridos para o nosso arremetimento (é esse o substantivo?) e novo procedimento de descida, tive apenas meia hora para trocar de avião em San Francisco — com mudança de terminal e tudo. Tive de andar rápido, por uns 500 m, pegar um ônibus na pista, e ser levado para o outro terminal, novo, o Terminal Internacional. Chegamos ao portão de embarque, os que estávamos fazendo a conexão, poucos minutos antes de fecharem as portas do avião. Por pouco. Entrei no avião, meio esbaforido. O esforço para não perder a conexão, porém, me fez me esquecer um pouco o susto do arremetimento. Recebi uma taça de champanhe gelado da aeromoça e me recompus.

Por falar em aeromoça, na parte do vôo UA 842 entre São Paulo e Chicago sentei-me ao lado de duas pessoas interessantes (apesar de ser uma fileira de apenas dois assentos e eu ocupar um…). Explico. Raramente converso muito com meus companheiros de voo: prefiro ler, assistir aos filmes, ou simplesmente dormir. Mas neste caso, conversei bastante. Quando já estava achando que o assento do lado iria ficar vazio, apareceu seu ocupante, o lado masculino de um casal cuja mulher teve de se assentar na fileira de trás, na janelinha. Antes mesmo de levantarmos voo o cidadão já havia conseguido que o rapaz que estava ao lado da mulher dele trocasse de assento com ele — e foi assim que ganhei meu primeiro real companheiro de assento no voo, um rapaz de mais ou menos trinta e cinco / quarenta anos, cordial, sorridente. Cumprimentamo-nos e começamos a conversar as frivolidades de costume, em Inglês. Perguntei a ele se era americano (só ousei perguntar porque ele me pareceu extremamente jovial — normalmente nunca faço uma pergunta direta dessas a alguém que presumo ser americano), e ele me disse que não: havia nascido no Brasil, de pais americanos, missionários, tinha cidadania brasileira, mas também passaporte americano. Disse-lhe que então podíamos falar em Português, mesmo, e foi isso que fizemos dali para a frente. Ele me disse seu nome: James David Meadows — explicando que já foi chamado de tudo: Jeimes, James, Deivid, Daví, e até mesmo Meadows. Eu disse o meu nome — e comentei que meu pai havia sido pastor por cerca de cinquenta anos. Isso nos deu uma certa cumplicidade, imagino, porque a conversa decolou a partir dali.

Ele me explicou que, assim que jantássemos, iria trocar de lugar com a mulher, funcionária da United (área de vendas, grande clientes, em São Paulo), que estava na Classe Econômica, com o filho de dois anos e meio, por causa de uma política da companhia. Havendo lugar, os funcionários viajam em Executiva ou até mesmo em Primeira, mas não podem fazê-lo com crianças pequenas… Pelo que me explicou, deve ser porque crianças pequenas podem incomodar os outros passageiros, e se eles descobrirem que a criança pequena está ali voando de graça, porque é filha de funcionários, podem se indispor com a empresa… (Cuidados com a imagem. É bom que isso aconteça. As companhias brasileiras podiam aprender alguma coisa com essas regras pouco conhecidas do público em geral). Mas, enfim. A mulher dele estava ocupando o lugar dele, na Econômica, ao lado do menino, e, como estava grávida (para Novembro), iria trocar de lugar com ele, depois do jantar, para que pudesse dormir um pouco de forma mais confortável na Executiva.

O jantar demorou um pouco, foi precedido de drinks e canapés (ele, notei, só bebeu suco de maçã, como bom crente e filho de missionário). Conversamos bastante sobre o Brasil, os Estados Unidos, o Lulla, o Bush… Sintonizamo-nos bem, politicamente. Ele é um ser meio hermafrodita, mais ainda do que eu, sendo capaz de genuinamente sentir como brasileiro e como americano. Ele tem os pais americanos, eu tenho a filha e as netas, ambos nascemos no Brasil mas moramos também lá e estamos constantemente lá, ambos nos mantemos informado sobre os eventos dos dois países, ambos temos enorme simpatia para com o país, etc.

Depois do jantar, dormi logo e, assim, não vi a “troca da guarda”. Acordei durante a noite e vi que a companhia do assento ao lado havia mudado. Durante os noventa minutos finais do voo, quando reacendem as luzes e servem café da manhã, conversei bastante com a simpática mulher dele, Juciária Tavares Meadows. Perguntei sobre o Nicholas (nome do menino), se ele dormia bem no avião e ela me disse que sim — só ficou frustrado porque não havia arrumado assento numa janelinha… Mas disse-me que se alguém chamá-lo para uma janelinha, ele vai sem pestanejar. Fiquei sabendo que o novo nenê é uma menina, mas não me lembro de ela ter me dito se já haviam escolhido o nome da menina. Conversamos um bocado sobre a United. Ela começou a trabalhar na companhia quando esta chegou ao Brasil, em 1992, na sequência do fechamento da PanAm: a United comprou suas rotas para a América Latina e para a Ásia. Eu comecei a voar sistematicamente pela United na mesma época, porque era “Frequent Flyer” da PanAm e herdei o status de Premier Executive.

Gostei muito do Davi e da Juciária — que moram em Guarulhos (ele tem uma companhia que aluga máquinas de refrigerantes e é ativo na Igreja de Cristo / Church of Christ).

Enfim, esta foi a única vez que tive dois companheiros de assento num mesmo voo e uma das raras vezes que conversei bastante com os companheiros de assento. (Uma outra vez que conversei bastante foi quando tive a sorte de sentar-me ao lado do Vice-Presidente Industrial da General Motors do Brasil, José Eugênio Pinheiro, num vôo, também da United, de Chicago a São Paulo.

Mas introduzi esse assunto, lá atrás, dizendo “por falar em aeromoça…” e acabei não falando delas. Quando conversávamos, vivamente, o Davi e eu, enquanto a aeromoça explicava os procedimentos a seguir no caso de acidentes, levamos um olhar feio da que estava ao nosso lado — provavelmente porque não estávamos prestando atenção (algum viajante que não esteja em sua primeira viagem de avião presta?). Comentei com ele que a aeromoça havia ficado brava e, com isso, iniciamos uma conversa interessante sobre aeromoças — que, no caso da United, são invariavelmente “aerovelhas”, como ele bem observou… Velhas e, infelizmente, muito feias. Provavelmente por causa da cultura e da legislação americana, que pune severamente uma empresa que deixar de contratar alguém por causa da aparência (“lookismo” – aparencismo). O exigência de que seja “moça jovem e de boa aparência” é estritamente verboten nos Estados Unidos como requisito para emprego. Comentamos como as aeromoças brasileiras são em geral jovens e bonitas — e como as asiáticas em geral são lindas, nos aviões das companhias asiáticas e mesmo nos vôos da United para a Ásia em que, fatalmente, há várias aeromoças (essas, moças, mesmo) asiáticas. Mas a companhia e o aeroporto em que essa característica mais me chamou a atenção foi a Thai Air e o aeroporto de Bangkok (especialmente na sala VIP da Thai Air). Os aviões da Thai Air parecem ter participantes em um concurso de beleza como comissárias de bordo (vou ser politicamente correto aqui e deixar de falar de aeromoças e aerovelhas). A Sala VIP da Thai Air (Star Alliance) no aeroporto de Bangkok, além de ser a maior que eu já vi em toda a minha vida, é a que tem as mais lindas e gentis atendentes de todas as salas VIP em que já tive a oportunidade de ficar. No caso de companhias brasileiras, ou mesmo do pessoal de aeroporto da United, as moças são bonitas, mas não são de parar o tráfego, como as asiáticas da Thai Air.

Conversa de avião de vez em quando rende, como se vê. Comecei falando de um susto e agora estou aqui comendo uns chocolatinhos Ghiraldelli (marca de San Francisco) que a comissária de bordo gentilmente me trouxe, com um copo de água gelada. Minha colega de assento neste vôo é asiática e, pelo que dá pra notar, totalmente muda — não fala nem sequer uma palavra, nem mesmo com as comissárias de bordo. Agora dorme tranquila. Apesar de ter viajado bastante pela Ásia, várias vezes, não consigo distinguir direito chinesa de japonesa — e às vezes nem de coreana e tailandesa. Digo isso para mostrar que, afinal de contas, nem presto tanta atenção assim nelas. Se o fizesse, saberia distinguir a nacionalidade delas — algo que os nativos fazem com incrível facilidade.

A seleção de músicas clássicas nos voos da United está cada vez melhor. E a seleção de filmes, também. Na parte do voo entre Chicago e San Francisco assisti a “Fractured” (não sei o título em Português), com Anthony Hopkins. Gostei muito — especialmente porque era Anthony Hopkins, para mim o maior ator da atualidade.

 (A propósito, na terça-feira estive em Campos do Jordão e ouvi o Ricardo Semler dizer que a única vez que ficou sem saber o que dizer foi um dia, num avião, em que o Anthony Hopkins se sentou ao lado dele no avião. O Anthony Hopkins é um tal monstro sagrado, e sua presença tão assustadoramente “imposing“, que até o Ricardo Semler admite que não teve coragem de lhe dirigir a palavra durante um voo de mais de quatro horas… Choses de la vie. Interessante.)

Dentro de mais ou menos três horas devemos aterrisar em Narita — sem arremetidas e sem outros sustos, espero. Já foi caso de avião mais do que suficiente para crônica de blog (em que felizmente não há limite para o tamanho).

Acima do Pacífico em 24 de Agosto de 2007 (hora de Tóquio — no Brasil é 21h52 do dia 23 ainda).

TEM COMENTÁRIO

Juciaria Meadows escreveu:

18/01/2014 às 00:12

Que interessante chegarmos ao seu blog! Minha irmã estava pesquisando artigos sobre o meu pai, que faleceu em outubro de 2007, e cujo nome era James David Meadows. Impressionante a sua memória e sua riqueza de detalhes. Gostamos muito do artigo. Mudamos para Houston em 2012, minha esposa continua na United e continuamos voando os céus amigos da United, agora com Nicolas de 8 anos e Laura de 6 anos. Seria muito bom reencontra-lo um dia!

David (escrevendo com a conta da Juciária).

Eduardo Chaves disse:

18/01/2014 às 20:15 Editar

Caro David:

Que bom receber seu comentário. Confesso que, ao lê-lo, tive dificuldade para entendê-lo. Só depois de reler o meu post consegui fazer sentido dele. Lamento que seu pai tenha morrido logo depois de nosso contato. E fico contente ao saber que Laura, que ainda estava na barriga da Juciária em Agosto de 2007, está agora com seis anos.

Desde nosso contato “aviônico”, eu me separei, casei de novo, passei a morar em São Paulo, tenho uma cunhada em Guarulhos…

Espero que consigamos nos reencontrar uma hora dessas. Minha filha mais velha mora perto de Cleveland. Estou voando bem menos agora. Já cheguei aos 70 anos. Mas, se estiver por São Paulo, por favor me contate através do e-mail eduardo@chaves.pro. Meu telefone é (11) 99321-8440 [Atualização: (11) 97984-0000]. Um grande abraço.

Eduardo Chaves

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8. Lost in Translation (de 6-7.5.2006)

Acho muito interessante o filme “Lost in Translation” de Sofia Coppola (ela dirigiu e escreveu o roteiro), com Bill Murray e Scarlett Johansson. Acho que o nome do filme em Português é “Encontros e Desencontros” — que não indica que o filme em gira em torno de problemas lingüísticos que, por sua vez, se traduzem em problemas culturais.

(Quem não assistiu ao filme pode ver um resumo em http://imdb.com e um trailler em http://mymovies.net)

O filme descreve com muita propriedade as dificuldades que ocidentais têm para entender orientais — especialmente para entender orientais em contextos envolvendo comunicação lingüística.

Nos últimos dois anos vim várias vezes à Asia: Taiwan, três vezes, Hong Kong, duas vezes, Macau, uma vez, Coréia do Sul, uma vez, Cingapura, uma vez — quase sempre passando por Tóquio, cidade cujo aeroporto (Narita) possui todo um setor da United — onde apenas ela controla cerca de 30 portões de embarque.

A maior parte do tempo, quando estou aqui, e quero sair, alguém me acompanha: ou alguém local, que fala a língua local (chinês [mandarin], chinês [cantonês], coreano), ou, então, um grupo de estrangeiros que, embora não falando a língua local, compartilham a ignorância da língua e, assim, socializam qualquer passo em falso…

Ontem, porém, Sábado, dia 6, saí sozinho aqui em Taipei. Não é uma experiência fácil. Estou no Grand Hotel, uma construção de estilo chinês, enorme e magnífica, que fica no alto de um morro, cercada por um bosque que, por sua vez, é cercado por pistas de alta velocidade. Sair do hotel andando, como eu normalmente gosto, é complicado. Logo, saí de taxi.

Problema número um: quase nenhum motorista de taxi aqui em Taiwan fala Inglês (ou qualquer outra língua além do chinês de pronúncia cantonesa]). Exigência número um, portanto: sair do hotel munido de descrições em chinês acerca dos locais aos quais você deseja ir, bem como com um cartão de visitas do hotel, que tenha, em chinês, o nome, o endereço e o telefone do hotel. Na saída do hotel os bell-boys lêem o seu papelzinho, falam com o motorista, anotam em um outro papel o número e a placa do taxi, bem como o nome do motorista e lhe dão. Perguntei a eles para que servia aquilo. Disseram, sorrindo como sempre: para sua segurança. Fiquei na mesma. Na mesma, bem, não: fiquei mais preocupado do que estava. Mas não deixei isso transparecer. Procurei demonstrar segurança. Ao chegar ao destino, o motorista apenas apontou para o taxímetro (na ida foi 125 Taiwan dollars, na volta 140, não sei exatamente por que, pois saí de volta exatamente do mesmo local a que cheguei, apesar de ter rodado pelo centro da cidade). Você paga e ele lha dá o troco. Como você não conhece as notas nem as moedas, coloca tudo no bolso, porque conferir levaria tempo demais.

Problema número dois: muito poucos vendedores nas lojas falam Inglês — e aqueles que falam em geral falam o mínimo indispensável para vender alguma coisa, e, em geral, com uma pronúncia que é muito difícil entender. Eu fui a um local conhecido aqui em Taipei, onde há “trocentas” lojinhas pequenas de eletrônica no espaço de mais ou menos um quarteirão, dispostas quase como estandes de 3×3 ou 2×3 ou até 1×3 numa exposição (como uma feira de informática). Têm de tudo. Mas muitas estavam fechadas. Quando encontrava um vendedor que parecia falar melhor o Inglês, perguntava: “Why so many stores closed?” — Por que tantas lojas fechadas? Recebia em resposta um daqueles olhares indicativos de que a pessoa não entendeu absolutamente nada. Fiquei sem saber se era porque era sábado, se era porque era antes do meio-dia, ou se havia alguma outra razão.

Problema número três: a Joyce Weng, que é a diretora da empresa que organizou a logística do Congresso do qual vim participar, me disse: não pague o que eles lhe pedirem, barganhe. Eu lhe disse: barganhar como??? Ela me disse: quando você achar algo que lhe interessa, aponte para a coisa e pergunte o preço — dizendo “How much?” (isso eles entendem) ou raspando o polegar no indicador ou no pai-de-todos, para indicar dinheiro (que parece ser um gesto com significado universal). Eles vão lhe responder pegando uma calculadora grande e digitando nela o preço. Você pega a calculadora das mãos deles, calcula, digamos, 80% do preço, e mostra pra eles. E por aí vai. Fiquei preocupado. Em geral não sou bom negociador — e barganhar desse jeito parece estar além da minha capacidade. E se eu não me lembrasse de como se calcula porcentagens na calculadora???

Mas encurtemos a história.

Na primeira lojinha que encontrei, logo na entrada no complexo (que tem cerca de 15 enormes barracões, todos com ar condicionado, banheiro, caixas eletrônicos, etc., direitinho), encontrei algo que estava procurando: discos rígidos de 2,5 polegadas. Eles em geral são vendidos pelados, sem o estojo. Você tem de comprar o disco pelado, o estojo do disco, pedir para eles instalarem o disco no estojo, formatar o disco e lhe mostrar que o disco está funcionando e tem a capacidade anunciada. Além disso, se você é como eu, você vai querer comprar uma capinha de couro (ainda que seja couro “genérico”) para guardar o seu minúsculo disco rígido (menor do que um Palm). Você tem de comprá-la em separado. (Sei disso por que anteriormente já comprei três desses, dois de 80 GB e um de 120 GB — mas comprei-os quando estava acompanhado de gente que falava a língua e barganhava por mim…).

Na lojinha em questão um jovem gordo e careca falava ao telefone exatamente no balcão onde estavam os discos. Tentei chamar a atenção de um outro vendedor, que estava sem fazer nada, mas ele fez sinal de não com a mão, apontando para o gorducho. Enquanto este terminava a ligação, olhei as caixinhas na vitrina. Havia caixinha de disco de 40 GB, de 60 GB e de 80 GB. Eu queria, naturalmente, o de 120 GB. Apontei para as  caixinhas e perguntei: One hundred and twenty gig? Ele me respondeu, Ya. Eu perguntei: How much? O desgraçado não seguiu o script. Ele pegou a calculadora, ligou, e a virou para mim, sem digitar nada. Olhei para ele assim com a minha melhor cara de perdidão. Não adiantou. Fiz um gesto de quem não havia entendido. Ele me respondeu: Make offer — faça oferta. Já disse que não sou bom em negociação. Mas quando alguém me dá um preço, em geral sou capaz de oferecer algo assim como cinco por cento abaixo. Mas eu começar dando preço à mercadoria do outro é algo que definitivamente não gosto de fazer. Fiz um sinal de esqueça e fui saindo… O gordão estava rindo, condescendentemente — e levemente sacudindo sua cabeça negativamente. Parecia estar dizendo que ocidentais não sabem negociar. É verdade. Orientais e árabes são muito melhor nisso do que a gente.

Fiquei umas quatro horas por lá. Desenvolvi uma dorzinha de cabeça chata. E não comprei quase nada. Razão: basicamente, insegurança — tanto para a compra como para a dorzinha de cabeça. Quando o preço era mais ou menos bom, eu perguntava: Brand? – Marca? E a marca era uma marca taiwanesa, totalmente desconhecida. Quando a marca era Sony, Fujitsu, Samsung, o preço me parecia alto demais — o que me obrigaria a barganhar bastante, coisa que, convenhamos, eu não estava muito disposto a fazer. O pior é você fazer uma pergunta simples e eles ficarem dois minutos conversando em chinês entre eles antes de lhe dar uma resposta — ou, ainda pior, cair na risada sem que você saiba por quê…

O filme de Sofia Coppola lida com essas realidades. Vivenciar meio-dia sozinho num mercado de tecnologia em Taiwan me ajudou a elevar mais a minha avaliação do filme. Não o percam, caso ainda não o tenham visto. Se não gostarem da história, os homens, pelo menos, vão adorar a Scarlett Johansson: a menina de 20 anos, por aí, que todo cinquentão, como Bill Murray, pediu a Deus — e o idiota do marido dela virtualmente a jogou nos braços dele. Mas já conto o final: exceto por um beijo, o caso incipiente dos dois não foi a lugar nenhum: terminou quando ele voltou de Tóquio para os Estados Unidos. Comme il faudrait, peut-être.

Eduardo Chaves, em Taipei, 7 de maio de 2006

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9. United Flight 881 (de 2.5. 2006)

Se Alvin Toffler está certo ao afirmar que riqueza é tudo aquilo que satisfaz uma necessidade ou um querer, sou uma pessoa muito rica, no momento – apesar de pequenos dramas pessoais e de frustrações profissionais.

Escrevo esta crônica a bordo de um Boeing 747, que se dirige para o Polo Norte, numa viagem de Chicago a Tóquio (voo United 881, do dia 2 de maio de 2006). O vôo saiu de Chicago ao meio-dia, hora local, e deve chegar em Tóquio às 15 horas do dia seguinte – também hora local. A duração do vôo é de treze horas. (Se alguém duvida, estude os fusos horários). De Tóquio saio às 17h30 com destino a Taipei, Taiwan, onde chego às 20h15 de amanhã — para dar uma palestra às 10h30 de depois de amanhã, abrindo um congresso sobre Jogos na Educação, do qual a Microsoft é co-patrocinadora.

Enquanto lia e ouvia música no meu iPod Nano na sala de espera do Portão C-18, no Terminal 1 do aeroporto O’Hare de Chicago, ouvi um ruído estranho no background. Era um senhor engravatado que, ao lado de alguém vestido como piloto, dizia alguma coisa amplificada pelo sistema de som. Tirei os meus fones de ouvido e prestei atenção. O engravatado dizia que aquele vôo (o vôo em que eu iria embarcar) seria o último vôo daquele comandante — que, completando 60 anos dois dias depois, era obrigado a se aposentar. Fez um breve discurso, dizendo que o comandante estava com a United há 32 anos — desde 1974. (Imediatamente me lembrei de que 1974 foi o ano em que comecei a trabalhar na UNICAMP). E que agora, em decorrência da legislação americana, era obrigado a se aposentar. (Eu também me aposento este ano da UNICAMP, depois de 32 anos de trabalho, embora não pela compulsória). E aquele era seu último vôo. “The Final Flight”. Todos aplaudimos o discurso e, naturalmente, o fiel comandante – que recebeu seu broche (“pin”) de aposentado como prêmio por tantos anos de dedicação. (Que eu saiba, a UNICAMP – i.e., seu corpo diretivo – nem está tomando conhecimento de que eu vou me aposentar no segundo semestre. Nem, muito menos, está planejando elaborar um pin que comemore a ocasião. E tem gente que acha que empresas privadas, que visam ao lucro, são entidades opressoras, desumanizadoras, e que a solução está em entidades estatais como a UNICAMP…)

O vôo estava surpreendentemente vazio. Estou no lugar, 12A, na parte de cima da classe executiva de um Boeing 747, sem ninguém no assento B, ao lado, e com pouca gente nos outros assentos (dos 30 lugares, só 13 estavam ocupados). Com duas comissárias de bordo e um estagiário, fui muito bem atendido – e o clima estava tão descontraído que tive a oportunidade de conversar um pouco com a tripulação. A comissária de bordo chefe, me chamando pelo nome (Mr. Chaves), veio perguntar o que eu queria comer. Havia escolha entre filé mignon, frango e massa. Preferi o filé mignon. Perguntei a ela por que o vôo estava tão vazio. Não sabia. Falou que em mais de 20 anos voando entre Chicago e Tóquio, nunca esteve em um vôo tão vazio. Sorte minha. Sorte dela também, creio – tem menos trabalho. Quanto a mim, ganhei mais espaço, mais sossego, e uma interlocutora…

Quando a Comissária veio me trazer bebidas (pedi Vodka Absolut, on the rocks, acompanhada de castanhas de caju torradas e bem salgadas), solicitei-lhe que me escrevesse numa folha de papel o nome do comandante – o piloto que estava fazendo sua viagem final. Disse a ela que pretendia escrever uma crônica sobre o episódio e queria o nome dele. Achei bonito a United reconhecer publicamente seus fiéis empregados – que certamente já viram melhores dias.

Vi que os olhos azuis dela brilharam quando lhe pedi o nome do piloto… “Claro”, disse ela, assentando-se meio de lado no assento vazio. “Terei enorme prazer. Sabe que ele e eu ficamos noivos há seis meses e vamos nos casar em Dezembro?” Fui pego de surpresa. Dei-lhe os parabéns. Ousei perguntar-lhe como o conheceu. Disse que foi num desses mesmos vôos entre Chicago e Tóquio. Não especulei mais. Tive enorme vontade de perguntar se os dois eram solteiros, quando se conheceram, ou se eram casados e… Mas até a indiscrição tem limites. Não sou repórter de coluna social.

Para resumir: escreveu o nome do comandante, o e-mail dele (no Yahoo! — sorry, Microsoft), e, naturalmente, o nome e o e-mail dela (mulher é um bicho difícil de entender). Ele é o comandante Wayne Walczak. Ela, a Comissária de Bordo Nani Lovell. Os e-mails são informação privilegiada, que não revelo, nem em juízo…

Depois veio o primeiro prato. Salada de folhas verdes da estação, com molho de queijo parmesão, seguido de um “boursin” recheado com núcleo de alcachofras, acompanhado de salmão defumado e camarões gigantes. O prato principal, filé mignon, com pimentas vermelhas “chipotie”, e molho demi-glacé de mostarda. Tudo “comme il faut”. O vinho, para acompanhar, Château Haut-Brisey 2001 Médoc. Havia outras escolhas, mas preferi esse.

[Lamento informar que entre o primeiro prato e prato principal tive de ir ao banheiro fazer xixi… A natureza parece não conhecer as normas de bom-tom e não respeitar o clima romântico desta crônica. Eu, cronista fiel à realidade, não posso deixar de registrar o fato].

De sobremesa, “Eli’s Caramel Apple Cobbler”, acompanhado de Sandeman Founders’ Reserve Porto. “Apple Cobbler” é nome sofisticado para a nossa torta de maçã – que no sul se chama “Apfel Strudel”. O vinho do Porto é coisa que só aos deuses deveria ser permitido. No entanto, cá estou eu, sorvendo-o…

Enfim… O que mais se pode desejar? Querem mais riqueza do que isso? Estou viajando lendo um livro interessantíssimo (Revolutionary Wealth, de Alvin Toffler), com comida de primeira, e tendo o privilégio de conviver com histórias pessoais tão interessantes… E, para culminar, tendo acesso ao meu computador Dell (Latitude X1) que me permite registrar tudo isso enquanto as coisas acontecem.

Desejo ao Comandante Wayne Walczak e à Comissária-Chefe de Bordo Nani Lovell uma vida feliz e longa. Eles certamente a merecem. Trabalharam na United num período difícil, em que a empresa passou de líder do mercado a concordatária – só se recuperando recentemente (quando saiu da concordata). Devem ganhar menos hoje do que ganhavam há 10 anos, em termos relativos.

Apesar de tudo, só lamento que a UNICAMP não seja a United – embora ambas as instituições tenham um nome que comece com “Uni” – e não reconheça aqueles que deram boa parte de sua vida a ela. Quando me aposentar da UNICAMP, terei de abrir mão do email chaves@unicamp.br, e, se quiser colaborar com a Universidade, sem ganhar um tostão a mais, terei de me sujeitar a todo um ridículo processo avaliatório, extremamente burocrático, que ignora o fato de que já trabalhei ali por 32 anos e meio. Se servi durante 32 anos e meio, por que não iria servir agora, principalmente levando-se em conta que iria trabalhar de graça??? Não vou querer colaborar. Quanto ao email, registrei o domínio unicamp.net nos Estados Unidos. Se quisesse, poderia usar o e-mail chaves@unicamp.net enquanto vivesse. Não faço questão. Prefiro continuar usando o meu eduardo@chaves.pro. Só registrei o domínio unicamp.net para encher o saco (se bem que não saiba bem de quem). [NOTA acrescentada posterior, creio que em 2015, por aí. A UNICAMP revogou o dispositivo normativo que impedia os aposentados de continuar a usar o email dela. Fui até a Faculdade de Educação e reivindiquei o meu, que, para minha surpresa, estava disponível. Agora tenho novamente o email chaves@unicamp.br.]

Se a gente estiver atento, há histórias, mesmo dramas e algumas tragédias, ocorrendo ao nosso lado o tempo todo. Eu posso nem saber agora – mas este Boeing 747 pode cair antes de aterrissar em Tóquio daqui umas dez horas. Ele já tem idade para se aposentar. E, em decorrência, haverá várias tragédias pessoais acontecendo. Haverá quem chore por mim – acredito que sim, mas reconheço que posso estar errado.

Mais ou menos em cima do Polo Norte, em 2 de maio de 2006.

(Meu neto Felipe completa hoje um dia inteiro de vida fora do Éden uterino. Nasceu ontem.)

Eduardo Chaves, em 2 de Maio de 2006

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10. Uma Modesta Contribuição à Estética da Aparência Feminina (de 15.9.2006)

[Crônica meio politicamente incorreta…]

No meu aniversário, no último dia 7, venceu minha carteira de motorista. Hoje fui renová-la. Antes, tive de fazer a bendita prova sobre Direção Defensiva e Primeiros Socorros. Para me preparar, li uns livretinhos publicados na Internet pelo DENATRAN. Quando me julguei suficientemente preparado, fui até o centro da cidade, a uma Auto-Escola que aplica a prova, quase em frente ao Correio. Lugar triste. Mas passei. Acho que até com algum louvor: acertei 28 de 30 perguntas. Depois fui ao Poupa Tempo, do outro lado da rua (ao lado do Correio) e em menos de 45 minutos tirei a nova Carteira. Tudo bem – exceto pelo médico, que devia ter levantado com o pé esquerdo. Mas não é sobre isso que quero falar.

Enquanto estava na Auto-Escola, esperando a minha vez de fazer a prova mencionada atrás, feita no computador, tudo como manda o figurino, fiquei, durante uma meia hora, na falta de algo melhor, observando as três moças que atendiam os clientes. E por falar em figurino, as três pareciam usar roupas desenhadas pelo mesmo coutourier. Mini blusa justa, terminando mais ou menos 10 ou 12 cm acima do umbigo, e calças jeans no estilo que antigamente a gente chamava de Saint Tropez: cintura bem baixa, quase uns outros 10 ou 12 cm agora abaixo do umbigo. À mostra, cerca de 20 a 24 cm de barriga.

Quero deixar registrado que nada tenho contra a exibição da barriga por parte das mulheres, nem mesmo no ambiente de trabalho. Em muitos casos até gosto de olhar disfarçadamente. Mas há um problema: não é toda barriga que se exibe bem… Vocês me entendem.

No caso em pauta, as três tinham uma barriguinha assim, como direi, um pouco protuberante. Não muito, mas o suficiente. Porque a cintura da calça era muito baixa, elas tinham de usar uma calça muito apertada – minha avaliação é que a calça era uns dois tamanhos abaixo do que deveriam ser – e, como se não bastasse isso, elas apertavam o cinto bastante. Resultado, de fazer doer a vista: cerca de 5 cm de barriga sobrando na frente, cerca de 5 cm de anca sobrando de cada lado, e um pouco de carne sobrando até atrás. Uma cena de fazer chorar. Triste, triste, triste.

Mas não era tudo. A agressão à estética não parava aí. O sutiã delas também era um ou dois números menor do que deveria ser. Resultado: na frente, os peitos parece que estavam sendo empurrados para cima e, não tendo muito pra onde ir, tentavam sair pra fora; atrás, o sutiã dava a impressão de estar quase partindo as costas delas ao meio, na horizontal. Tenho a impressão de que a marca do sutiã no corpo de cada uma delas nunca mais vai sair.

Fiquei pensando com os meus botões: será que elas não têm espelho? Como tenho três filhas, todas acima de 30, conheço todos os truques de subir em cima da privada e do bidê para se ver no espelho da pia de corpo todo, as entortadas de corpo que elas dão, tais quais contorcionistas, para se ver por trás, etc. Será que as meninas da Auto-Escola não conhecem essas técnicas? Será que uma, ao ver a outra, não pensa: será que eu também estou com uma aparência assim trágica como ela??? Pensei em propor a elas tirar fotos por trás… na esperança, talvez vã, de que, vendo-se do ângulo que eu as via, elas pudessem cuidar melhor da aparência, não agredir tanto a estética…

O problema é que a doença parece ser contagiosa. Hoje é raro ver uma mulher com menos de 40, usando calça comprida, bermuda, ou shorts, ou até mesmo saia, que não mostre a barriga – ainda que, em posição normal, seja apenas uma tirinha. Quando elas levantam os braços, porém, ou fazem algum movimento mais exagerado, a tirinha deixa de ser uma tirinha… De novo: nada contra, quando a barriguinha é bonita… E bonita não quer dizer sarada. Não gosto de mulher com barriga de tanquinho. Um pouquinho de gordura é bonito – constatei isso numa festa árabe (com dança do ventre e tudo) do Rotary Club de Santa Bárbara d’Oeste – Progresso a a que fui há duas semanas. Mas tudo tem seu ponto de equilíbrio. O que preocupa é que há barriguinhas que fazem a gente sentir um profundo sentimento de comiseração. E isso não é bom, especialmente se as próprias acham que estão abafando…

Quando as mulheres usavam calças compridas, bermudas, shorts, saias que chegavam até a cintura, e blusas que cobriam a cintura, o problema era disfarçado ou escondido. A calça, a bermuda, o short, ou a saia, chegando até a cintura, ficava firme no lugar – dispensando até mesmo o cinto – mesmo que fosse da numeração certa. Não havia necessidade de usar numeração menor, ou modelo “petite”… A estética agradecia.

Agora, do jeito que as coisas estão, a estética está sendo agredida pela moda – ou, melhor dizendo, por aquelas mulheres que não percebem que não têm condições (leia-se: corpo) para se vestir segundo dita a moda.

Preciso dar uns esclarecimentos, para não ser linchado virtualmente…

Primeiro. Sendo liberal, como sou, acho que todo mundo tem direito de se vestir como quer – mesmo que fique ridículo. Não se trata, pois, de sugerir ao governo medidas coercitivas que ditem como as mulheres devem se vestir, ou coisas desse tipo. Estética pública não funciona. Reconheço o direito ao ridículo. Mas as mulheres poderiam ter um pouco mais de respeito para com a estética… E, se não possuem, quem sabe a gente poderia começar oferecendo uns cursos de Educação Estética, começando na quinta série.

Segundo. Não tenho nada, absolutamente, nada contra as mais cheinhas – desde que se vistam com sensatez. Uma fofinha bem vestida é muito bom de contemplar. O problema não é a gordurinha, em si. Ele está na relação entre o corpo e a moda. Até mulher relativamente magra, se vestir roupa dois números menor, que aperta a barriga e as ancas, para não escorregar, fica parecendo uma salsichinha amarrada no meio – salsicha mais fininha, mas salsicha, nonetheless.

É isso. Pus pra fora a minha preocupação… Preocupação filosófica. Os antigos diziam que os três problemas centrais da filosofia eram o verum, o bonum e o pulchrum (o verdadeiro, o bom, o belo – belo não é bellum, que quer dizer guerra em Latim). É por isso que estou escrevendo: não basta combater a falsidade, a mentira, o erro, nem a maldade e a perversão moral – é preciso combater também o inestético.

Eduardo Chaves, em Campinas, 15 de setembro de 2006

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Transcrito en bloc aqui neste blog Chaves Space em 14 de Janeiro do Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de dois mil e vinte e dois.



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