Quando vim para a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em Junho de 1974, o entendimento era que eu viria para fazer parte do Departamento de Filosofia (DF) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). Com o apoio do Rubem Alves, que já trabalhava lá, e com o apoio logístico de meu primo Anello Sanvido Filho, que era aluno de Química na UNICAMP, as coisas andaram bem, quase sem nenhuma burocracia, e em 7 de Junho de 1974 (vai fazer cinquenta anos no ano que vem) eu estava de volta ao Brasil, depois de sete anos ininterruptos nos Estados Unidos (sem retornar ao Brasil sequer uma vez).
Ao chegar aqui começaram as surpresas. Fui pressionado a ficar lotado na Faculdade de Educação (FE), para ministrar as disciplinas da área de Filosofia da Educação, Teoria da Educação, etc., no Curso de Pedagogia que estava sendo criado naquele ano de 1974. (A Faculdade, em si, havia sido criada em 1972, para ministrar as disciplinas pedagógicas das Licenciaturas, que, até 1972, foram ministradas, mediante convênio, pela Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Tentei recusar, porque nunca havia estudado nada de Educação na vida. Absolutamente, nada. Tentaram me vencer pela lisonja. Disseram-que que eu não teria nenhum problema, com o estudo que tinha, para acrescentar mais uma área de especialização ao meu portfolio, por assim dizer. A Faculdade de Educação tinha, naquela ocasião, apenas dois outros doutores com doutorado feito no exterior. No fim, não tive como recusar. Quem está chegando, não raro tem de aguentar coisas assim. Eu já teria de ministrar a disciplina EP-130 – Filosofia da Educação I, em Agosto, dali um mês. E fui designado para iniciar meu trabalho oficialmente em 1º de Julho. Saí, comprei um monte de livros sobre Filosofia da Educação, Teoria da Educação, História da Educação e enfrentei uma classe de oitenta alunas (quase só mulheres), divididas em duas turmas de quarenta.
Logo em seguida, fui informado de que deveria também fazer um Plano de Pesquisa na área de Filosofia da Educação, porque minha designação havia sido no Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP) – 40 horas semanais de dedicação exclusiva, com total impossibilidade de ter outro emprego em paralelo.
Queimei as pestanas para decidir o que eu iria pesquisar. Acabei por mesclar dois problemas que haviam me interessado em minhas primeiras leituras:
- O que realmente se entende por educação, e como o conceito de educação se relaciona (em algo próximo de um mapa conceitual) com a seguinte família de conceitos: Socialização, Aculturação, Formação, Doutrinação, Escolarização, Treinamento, Condicionamento, Ensino, Instrução, Aprendizagem, Amadurecimento, Desenvolvimento, etc. Em outras palavras e mais especificamente: educar envolveria moldar, esculpir, dar jeito de gente aos miudinhos que nascem sem saber nada e sem saber fazer nada, para que eles oportunamente se tornem seres humanos como nós, OU educar seria assistir e apoiar aqueles pedacinhos de gente para que eles tivessem condições de sobreviver, crescer, amadurecer e desabrochar por si próprios como acontece com outros animais, com as plantas, em geral, e as flores, em particular? [A referência às flores é simplesmente para que não digam que não falei das flores.]
- A educação que acontece em áreas como as das diversas ciências (as da natureza, as dos grupos sociais, ou da sociedade, e as do ser humano, enquanto indivíduo) estarão, por sua própria natureza, isto é, por serem essas áreas supostamente científicas, isentas, ou sob menor risco, de sucumbir à doutrinação (e, no limite, à lavagem cerebral) do que as áreas em que é comum falar em doutrina, como a filosofia política e a religião? Em outras palavras: a doutrinação é uma questão que tem que ver com o tipo de conteúdo que é ensinado, ou com o método de ensino adotado, ou com a intenção daquele que ensina (em cujo caso, se for a intenção, até a física, a matemática e a lógica poderiam ser objeto de doutrinação – vide Thomas S. Kuhn)?
O meu plano de pesquisa envolveu todo esse complicado conjunto de questões. Em três anos apresentei um relatório, e me propus a continuar na investigação da questão – em especial com foco na chamada “Educação Moral e Cívica”, que, estando o Brasil ainda debaixo do Regime Militar, era um problema. Mas cheguei até a ministrar a disciplina de Filosofia da Educação em um curso de Especialização voltado para a Formação de Professores de Estudos de Problemas Brasileiros (a cara da Educação Moral e Cívica no Ensino Superior) na Universidade Presbiteriana Mackenzie (Mackenzie) – curso esse que estava sob o patrocínio (ou mesmo a coordenação geral) do General Carlos de Meira Mattos, e que era coordenado pelo Deputado Estadual e Professor José Alfredo do Amaral Gurgel [1].
Nessa época eu ainda estava longe de vir a questionar a existência da escola. Não estou falando da escola como uma instituição local, solitária, livremente criada por uma comunidade, que possa contar uma biblioteca comunitária, mais pessoas que possam ajudar, e se disponham voluntariamente a fazê-lo, quem está tendo alguma dificuldade para aprender alguma coisa que deseja aprender (uma habilidade, como tocar violão ou bordar, ou falar uma língua estrangeira), ou para resolver um problema complicado (qual a profundidade e largura de um pilar, ou a grossura de uma viga, para sustentar sem riscos um telhado de tal tamanho), ou entender o que é que uma passagem difícil de um livro complicado que está lendo quer dizer (talvez até uma passagem da própria Bíblia). Com esse tipo de escola não tenho implicância nenhuma. Só vai até ela quem quer, quando quer, pelo tempo que quer.
Estou falando da escola como um sistema escolar nacional, centralizado, sob gestão estatal, obrigatório para todas as pessoas em determinada faixa etária, totalmente padronizado no tocante a currículo, metodologia e formas de avaliação, e operado por pessoas especializadas, devidamente credenciadas pelo próprio Estado para ali trabalhar, todas elas sob contrato uniforme, ganhando a mesma coisa, tendo as mesmas obrigações, os mesmos deveres, os mesmos direitos e privilégios. Uma casta que acha que contém as únicas pessoas capazes de fazer o que ali se faz, estando as demais, os leigos e diletantes, proibidos de competir com elas. Com esta escola me implico.
Mas não abandonei o meu interesse pela questão da doutrinação. Pelo contrário, esse interesse agora aumentou diante da doutrinação generalizada existente no sistema escolar público brasileiro, agora dominado pela esquerda, que se tornou quase hegemônica entre o professorado e os demais profissionais da educação. Diante disso, o foco maior do meu interesse está, agora, na desescolarização da educação, não na tentativa de impedir, caso a caso, que a escola continue a doutrinar. [2] Meus autores favoritos agora, na área da educação, são Ivan Illich e John Holt.
Diante da luta renhida que a esquerda organizou para incluir na Constituição Federal de 1988 o monopólio estatal da educação, eu me dei conta de que a escola pública havia se tornado um instituição aparelhada pela esquerda, e que esta, não contente em dominar a escola pública, queria impedir que existissem escolas particulares, fossem elas pertencentes a empresas, e, portanto, lucrativas, fossem elas confessionais e pertencentes a igrejas, fossem elas pertencentes a organizações não empresariais, mas também não governamentais, como as chamadas ONGs. A esquerda não conseguiu emplacar esse objetivo na última Assembleia Constituinte, mas certamente o fará na próxima, se esta se realizar sob a atual ditadura de esquerda em que estamos vivendo, em que os três poderes, de forma legítima ou não, estão controlados por forças simpáticas à esquerda, ainda que por conveniência de momento apenas.
A luta atual dos que não estão do lado esquerdo do espectro político atual tem de ser, no tocante à educação, pela total desescolarização da sociedade e pela total liberdade dos meios de comunicação frente ao estado. Só assim teremos uma educação de qualidade, que prescinde da escola, e que baseie em todos os meios e tecnologias de divulgação de informação e de comunicação. A educação tem de estar, como a religião, totalmente separada do Estado, sendo responsabilidade basicamente dos pais, no que tange a crianças pequenas, e, assim que estas se emancipem, delas próprias, sem nenhuma interferência estatal.
Na verdade, a sociedade deve estar alerta para que nem mesmo os pais extrapolem o seu direito de controlar a educação de seus filhos pequenos (ainda não emancipados) e os submetam a uma microditadura educacional dentro do lar.
Meu amigo, recentemente falecido, Daniel Greenberg, gastou boa parte de suas energias para criar uma instituição que (apesar de se chamar de escola) fosse mais uma “Unschool” do que propriamente uma “School”, porque seu objetivo, como o de um estado liberalíssimo, era garantir os direitos e as liberdades das crianças frente às tentativas de controle e dominação não só dos professores, mas também dos pais. Na Sudbury Valley (Un)School os direitos e as liberdades das crianças são garantidos e protegidos até mesmo contra seus pais, até mesmo por meios legais, se preciso.
É esse liberalismo radicalíssimo (ou radicalismo liberalíssimo) que eu defendo hoje na educação.
Digo isso, apesar de eu, pessoalmente, ter paixão pelos clássicos e pelos Grandes Livros da Cultura Ocidental. Num próximo artigo, quem sabe, defenderei o aparente elitismo implícito no que afirmo neste parágrafo.
Notas
[1] O General Carlos de Meira Mattos (1913-2007), General de Divisão do Exército Brasileiro, fez, quando na reserva (para a qual passou em 1977), seu Doutorado em Ciência Política no Mackenzie, recebendo o grau em 1984. Seu envolvimento no Curso de Especialização em questão certamente se deu antes de receber seu diploma de Doutorado, provavelmente assim que entrou na reserva. Vide, na Wikipedia em Português, o verbete “Carlos de Meira Mattos”, no endereço https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_de_Meira_Mattos. Para os interessados, vide também “Quem foi Meira Matos”, no site da Revista de Ciências Militares, “Coleção Meira Mattos”, no endereço, http://ebrevistas.eb.mil.br/index.php/RMM/QFMM. A coordenação efetiva do curso era do Professor José Alfredo Amaral Gurgel (1929-2012), então Professor de Direito do Mackenzie, com o qual eu mantinha contato. Ele veio a ser professor da UNICAMP e da PUCCAMP posteriormente. O Professor Amaral Gurgel defendeu sua Tese de Doutoramento em 8.4.1974, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, que, posteriormente, foi incorporada à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). A tese dele teve como título “Contribuição ao Estudo da Doutrina de Segurança Nacional na Problemática Brasileira”. Procurei na Web, tanto através do Google como do Bing, mas não achei nenhuma referência a esse curso. Nem no site do Mackenzie encontrei referência a ele.
[2] Vide uma referência a essa transição de interesses, ou, talvez, devesse chamá-la de expansão de interesses, pode ser encontrada em meu “Epílogo: Olhando para o Futuro”, da segunda edição de meu livro Educação e Desenvilvimento Humano: Uma Nova Educação para uma Nova Era (2ª edição, Mindware Education Editora e Amazon Books, 2019, em formato de ebook, padrão Kindle), pp. 392-401.
Em Salto, 4 de Julho de 2023. Independence Day nos Estados Unidos, que precisam, mais do que nunca, na área da educação, pelo menos, de uma revolução guiada por estes princípios.
Categories: Liberalism
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