Cumprimentos aos pais e parabéns aos formandos de 2005 do Kenyon College [3].
Há esta história de dois peixinhos jovens nadando em um riacho, que de repente encontram um peixe mais velho nadando na direção oposta. Ao passar por eles o peixe mais velho lhes diz: “Bom dia, meus jovens: como está a água lá de onde vocês vêm?”. Os dois peixinhos sorriem, continuam nadando e um pouco mais à frente um olha para o outro e pergunta: “Que diabo será essa tal de água?”
É uma exigência padrão em festas de formatura americanas que o paraninfo comece seu discurso contando algum tipo de historinha didática, meio parabólica… Essa exigência de uma historinha acaba por ser um dos aspectos melhores, menos sacais, das convenções que cercam essas ocasiões. Não se preocupem comigo: se vocês ficaram preocupados que eu fosse assumir o papel de um sábio peixe mais velho explicando aos jovens peixinhos o que é a água, fiquem tranquilos: eu não sou um peixe velho, muito menos sábio. O sentido da historinha que contei é bastante óbvio: realidades importantes, nas quais estamos imersos o tempo todo, no dia-a-dia, frequentemente são muito difíceis de ver, reconhecer e discutir. Colocando a questão dessa forma, ela soa como uma platitude banal. Mas o fato é que nas trincheiras do dia-a-dia da existência dos adultos, platitudes banais como esta podem se tornar tão importantes que acabam sendo uma questão de vida ou morte. Pelo menos é isso que pretendo sugerir a vocês nesta manhã seca e encantadora.
Naturalmente, a principal exigência de discursos que como este que começo a fazer é que eu fale um pouco sobre o significado de uma educação humanística e liberal (isto é, sobre uma educação não-técnica e não-profissionalizante), que eu tente explicar por que o grau que vocês daqui a pouco irão receber tem um valor humano real para vida de vocês, além das recompensas materiais que todos esperam que ele deverá também lhes trazer.
Vamos, então, conversar sobre o cliché mais comum em discursos deste gênero, a saber, que uma educação humanística e liberal não tem por objetivo encher a cabeça de vocês de conhecimentos, mas, sim, “ensiná-los como pensar”. Se vocês são estudantes parecidos com o que eu um dia fui, vocês se irritam com clichés como esse, e talvez até se sintam um pouco insultados, diante da afirmação de que, já basicamente adultos, vocês ainda precisam de alguém que os ensine como pensar. O fato de vocês terem sido aceitos por um centro de ensino superior (college) tão bom como este já lhes parece evidência mais do que suficiente de que vocês certamente já sabem como pensar. Mas eu vou lhes propor a tese de que o cliché não contém nenhum insulto, porque a educação para o pensar que faz realmente sentido numa instituição como esta não consiste tanto em desenvolver a sua capacidade de pensar, mas em ajudá-los a escolher o tipo de coisa ao qual vocês vão aplicar a sua já inegável capacidade de pensar… Se vocês imaginam que a liberdade de escolha sobre que tipo de coisa exercer sua capacidade de pensar é uma questão tão óbvia a ponto de não merecer o tempo que vamos gastar a discuti-la, eu sugeriria que vocês pensassem, primeiro, nos dois peixinhos na água, e, segundo, guardando no armário por alguns minutos o seu ceticismo, pensassem sobre o valor de refletir sobre aquilo que parece totalmente óbvio.
Para facilitar, vou lhes contar uma outra historieta didática.
Dois caras estão em um bar num dos locais mais remotos do Alasca. Um dos caras é religioso, o outro é ateu. E os dois estão discutindo a questão da existência de Deus — e discutindo com aquela intensidade particular que só se revela depois da quarta cerveja. O ateu diz: “Não é que eu não tenha razões reais para não acreditar em Deus — eu tenho essas razões; também não é que eu nunca tenha tido nenhuma experiência com Deus, oração, etc. — eu tive. Para lhe dar uma ideia, no mês passado eu fui pego fora de casa, na estrada, pela mais terrível nevasca que eu já vi. Não se via nada, eu não sabia para onde ir, e a temperatura estava na casa dos 50 graus negativos. Numa situação assim, coloquei meus joelhos na neve e clamei: “Oh Deus, se o senhor existe mesmo, estou perdido aqui nesta nevasca, não sei para onde ir, e, se o senhor não me ajudar, eu vou morrer!” O cara religioso ficou olhando para o outro com uma cara de perplexidade. “Bem, mas então isto indica que você agora acredita em Deus, porque afinal de contas, você conseguiu sair de lá, tanto que está aqui, agora!”. O ateu rolou os olhos para cima como quem não acreditasse no que estava ouvindo, e completou: “Não, cara, não foi nada disso. O que aconteceu foi que dois esquimós passaram por lá, e, me vendo, me mostraram o caminho e me ajudaram a sair de lá! Apenas isso…”
É fácil submeter essa história ao crivo de análise típico de uma instituição que se propõe a oferecer uma educação humanística e liberal. Exatamente a mesma experiência pode significar coisas totalmente diferentes para duas pessoas que têm formas distintas de olhar e enxergar [“experienciar”] o mundo, e maneiras distintas de construir significados a partir dessas suas experiências do mundo. Porque numa instituição desse tipo há uma valoração positiva da diversidade de opinião e da tolerância por pontos de vista divergentes, nenhuma dessas instituições hoje ousa admitir que se afirme, em suas salas de aula, que a interpretação de uma das pessoas é verdadeira e correta, e a interpretação da outra é falsa e incorreta. Tudo bem comigo, exceto pelo fato de que nunca se discute de onde vêm essas maneiras distintas de experienciar o mundo, de formar crenças, e de dar sentido às coisas que se observam — de onde surgem os significados diferentes que se dão às coisas e aos acontecimentos observados ou vivenciados. Não se indaga se essas maneiras diferentes de observar e vivenciar as coisas e essa capacidade de dar significados às experiências vêm DE DENTRO DAS PESSOA, como características originais de fábrica, como a altura da pessoa e o tamanho de seu pé, ou se elas vêm DE FORA DA PESSOA, como características adicionadas à configuração original e absorvidas a partir da cultura, como a língua que as pessoas falam. Parece que essas são as únicas alternativas, como se a forma com que experienciamos o mundo e construímos significados não fosse uma característica individual de cada um, decorrente de escolhas pessoais e intencionais.
Além do mais, há a questão da arrogância. O ateu se sente total e absolutamente certo ao nem sequer considerar a possibilidade de que os dois esquimós que passaram perto dele na estrada nada tinham que ver com a oração que ele havia feito pedindo ajuda. Sim, é verdade que existem crentes que são igualmente arrogantes em relação à sua maneira de observar e interpretar os fatos. Eles até são, pelo menos para a maioria de nós, mais repulsivos. Mas o dogmatismo de algumas pessoas religiosas é exatamente o mesmo dogmatismo que o ateu exibiu lá no Alasca: ele envolve certeza cega, uma mente fechada que acaba se tornando uma prisão em que cada um se trancafia, sem sequer perceber que está encarcerado.
A lição a extrair dessa história é que parte daquilo que uma escola humanista e liberal deve fazer, ao ajudar seus alunos a lidar com questões relacionadas ao saber pensar, é fazer com que seus alunos tenham um pouco de consciência crítica sobre si mesmos e suas crenças — assim se tornando um pouco menos arrogantes. É fato que um percentual muito elevado das coisas sobre as quais eu automaticamente tenho certeza vão se mostrar, com a passagem do tempo, totalmente falsas, na verdade, ilusórias. Eu vim a aprender isso da maneira mais difícil, e posso prever que vocês, formandos, também vão aprender isso da mesma maneira que eu aprendi, a mais difícil.
Aqui vai um exemplo do caráter falso e ilusório de crenças sobre as quais automaticamente temos certeza. Tudo, em meu campo imediato de experiências, parece dar suporte à minha crença profunda de que eu sou o centro do universo; de que eu sou a pessoa mais viva, mais real, mais importante que existe no mundo. Raramente pensamos sobre esse tipo de auto centramento básico e natural, porque a pessoa centrada em si mesma é, em regra, considerada muito repulsiva. Mas é essa a nossa configuração “default” [4], original de fábrica, implantada em nosso “hardware” já quando nascemos. Pense um pouco sobre isso: não existe nenhuma experiência que você possa ter da qual você não esteja no centro absoluto. O mundo que você observa e experiencia está ali, na SUA FRENTE, ou ATRÁS DE VOCÊ, ou à SUA direita e à SUA esquerda, no SEU aparelho de TV ou na tela do SEU computador ou telefone. E assim vai. Os pensamentos e sentimentos de outras pessoas têm de ser de alguma forma comunicados a você — mas os seus pensamentos e sentimentos são SEUS, de maneira imediata, urgente e real, sem qualquer mediação.
Por favor, não se preocupem imaginando que estou me preparando para lhes dar uma aula sobre compaixão, foco no outro, altruísmo, e todas as demais condutas consideradas virtuosas. Não se trata de uma questão de virtude. É uma questão de eu chamar para mim a escolha de procurar alterar ou transcender, de alguma maneira, a minha configuração natural, vinda de fábrica, literalmente centrada em mim mesmo, e que me leva a ver e interpretar tudo através da lente do meu eu. Pessoas que conseguem ajustar sua configuração “default“, e mudar o seu foco, são frequentemente chamadas de “bem ajustadas”, expressão que, a meu ver, não foi criada de forma acidental.
Dado o triunfante contexto acadêmico existente nesta instituição, uma questão óbvia é descobrir quanto desse trabalho de ajustar a nossa configuração “default“, saída de fábrica, tem que ver com conhecimento real ou questões intelectuais. Essa questão é complicada e pode nos enganar. Provavelmente a coisa mais perigosa acerca de uma educação acadêmica — pelo menos no meu próprio caso — é que esse tipo de educação fortalece a tendência de intelectualizar as coisas de forma exagerada, de ficar perdido na consideração de argumentos abstratos que revolvem dentro da cabeça, isto é: em vez de simplesmente prestar atenção ao que está acontecendo na nossa frente, bem diante do nosso nariz, mas fora de nós, nós ficamos prestando atenção ao que está se passando dentro lá dentro de nós — dentro da nossa cabeça, na realidade.
Tenho certeza de que vocês, nesse ponto de sua vida, já sabem quão extremamente difícil é ficar alerta e prestar atenção ao que se passa fora de vocês, em vez de ficar hipnotizados pelo monólogo constante que se desenrola dentro de sua cabeça. (Talvez vocês estejam enfrentando essa dificuldade agora, neste exato momento, em relação ao que eu estou lhes dizendo). Vinte anos depois de minha graduação, eu comecei gradualmente a entender que o cliché das artes liberais acerca de ensinar você a pensar é, na realidade, uma forma abreviada de se referir a uma ideia mais profunda e muito séria: aprender a pensar realmente significa aprender a exercer algum controle sobre como você pensa e sobre o que você pensa. Essa fórmula estenográfica significa estar cônscio e consciente o suficiente para poder escolher no que você vai prestar atenção e para poder escolher como você vai construir o significado das experiências às quais você escolheu estar atento. Isso é importante, porque se você não conseguir exercer esse tipo de controle sobre suas escolhas em sua vida adulta, você estará totalmente perdido. Reflita sobre este outro cliché antigo: “A mente é um servo excelente, mas é um mestre terrível.”
Esse cliché, como tantos outros, que, na superfície, parece manquitolantes, fracos e sem interesse, na realidade expressa uma grande e terrível verdade. Não é nem um pouco uma coincidência que a maior parte das pessoas adultas que comete suicídio com uma arma de fogo quase sempre dirige o tiro à sua cabeça. Elas querem pôr fim ao terrível mestre que habita a sua cabeça. E a dura verdade é que esses suicidas, na maior parte dos casos, na realidade já estão mortos muito antes de puxar o gatilho.
E proponho a vocês a tese de que o valor real, sem frescuras, de sua educação humanística e liberal é o seguinte: ajudar vocês a evitar a triste sina de atravessar sua vida adulta, que certamente será confortável, próspera e respeitável, inconscientes, como verdadeiros escravos do que se passa dentro de sua cabeça, em obediência à sua configuração “default“, que lhe ordena ser, de maneira única, completa e imperial, entra dia e sai dia, o centro solitário do mundo, como se nada mais existisse ou tivesse importância.
Pode parecer que eu esteja a exagerar, a abusar de uma insensatez abstrata. Vamos enfrentar os fatos concretos, então. A maior parte de vocês, aqueles que se formam aqui hoje, não têm a menor ideia do que eu quero realmente dizer por “entra dia e sai dia”. Há partes enormes da vida de um americano adulto sobre as quais ninguém nunca fala em discursos de formatura. Uma dessas partes envolve a rotina, o tédio, a frustração das pequenas coisas que precisam ser feitas na vida. Os seus pais e as pessoas mais velhas que estão aqui presentes sabem, no entanto, perfeitamente, do que eu estou falando.
Vou dar um exemplo. Imagine, cada um de vocês, um dia comum, médio, na vida de um adulto típico neste país. Você se levanta de manhã, sai para o seu emprego desafiante de “colarinho branco”, a que você fez jus em decorrência de seu diploma de graduação. Você trabalha duro, durante oito ou dez horas. Ao final do dia, você está cansado e um pouco estressado, e tudo o que você quer é ir para casa, encontrar um jantarzinho gostoso, e, quem sabe, esticar o corpo para relaxar um pouco, durante uma hora, antes de cair na cama, porque, naturalmente, no dia seguinte, você vai ter de levantar-se cedo e fazer tudo de novo do mesmo jeito que fez hoje.
Mas daí você se lembra de que não há o que comer em casa. A semana tem sido tão complicada em seu trabalho desafiante que você não encontrou tempo para abastecer sua casa de alimentos. Por isso, agora, ao final de um dia cansativo de trabalho, você tem de entrar no carro e, em vez de ir direto para casa, passar no supermercado. É o final de um dia útil, em que todos trabalham, e o tráfego certamente será o que sempre é a esta hora: horrível. Assim sendo, passar pelo supermercado vai levar, por causa do trânsito, bem mais tempo do que levaria em outra hora do dia. E quando você chegar ao supermercado, você vai encontrar o local superlotado, porque, naturalmente, é a hora do dia em que todas as outras pessoas que trabalham, e o trabalho de todo mundo é sempre às mesmas horas, resolvem dar uma passadinha no supermercado para levar coisas de comer e beber para casa.
Dentro do supermercado, que tem uma iluminação odiosa, há um zum-zum irritante de uma multidão conversando, algo que deixa você ainda mais tenso. Pensando bem, o supermercado seria, naquela hora, o último lugar em que você gostaria de estar, e que, tendo de estar lá, você gostaria de poder entrar e sair tipo vapt-vupt. No entanto, você tem de perambular por um número enorme de corredores, com denominações pouco esclarecedoras, para encontrar as coisas que você quer, que nunca parecem estar no local em que deviam, e você tem de fazer isso manobrando um carrinho de mercadorias velho, entre uma quantidade enorme de pessoas, todas elas cansadas e apressadas, e cada um com seu carrinho… (et cetera, et cetera, vou deixar material de fora porque esta será um cerimônia longa!). Depois de um tempo muito maior do que o razoável, você consegue achar tudo o que quer e se dirige para a área de caixas. E daí você nota que, em um momento em que todos os caixas deveriam estar operando, porque é a hora do “rush” do fim do dia, vários estão fechados, o que faz com que as filas nos demais caixas seja interminável — algo estúpido e que deixa todo mundo furioso.
Mas você, um indivíduo com um diploma de curso superior, não pode dar vazão à sua irritação em cima da senhora que opera o caixa tão rápido quanto pode, e que provavelmente é uma pessoa que trabalha mais do que devia em uma função cujo tédio e ausência de significado ultrapassam a capacidade de imaginar de qualquer um de nós aqui nesta prestigiosa instituição. Você espera, bem comportado, que a fila ande e chegue a sua vez. Você passa a mercadoria, paga por ela, e ouve a senhora do caixa dizer “Tenha uma boa noite” com uma voz que parece o som mais absoluto da morte. Você ainda tem de pegar aqueles malditos saquinhos plásticos, colocar o que você comprou dentro deles, ajeitá-los dentro do seu carrinho e ir procurar o seu carro. Só que as rodinhas da frente do seu carrinho resolveram, uma ir para a direita, a outra para a esquerda, num balé enlouquecedor. A saída da loja tem degraus e o solo do estacionamento está esburacado e cheio de lixo. Chegando ao carro, o seu tormento está longe do fim: você ainda tem de ir para casa naquele trânsito indecente, cheio de veículos utilitários pesados e monstruosos, no auge do “rush“, et cetera, et cetera.
Todo mundo já passou por uma experiência semelhante, naturalmente. Mas, para alguém como vocês, que está se formando agora, essa experiência não é parte de sua rotina diária, entra dia e sai dia, semana depois de semana, mês depois de mês, ano depois de ano.
Mas vai ser. E vai haver muitas outras rotinas, ao lado dessa, todas elas irritantes, temíveis, aparentemente sem o menor sentido. Mas este não é o ponto que quero enfatizar. O que quero deixar claro é que essa merda miúda e frustrante de rotina é exatamente o contexto em que quero introduzir a questão da escolha — a questão de como escolhemos reagir a isso. Os engarrafamentos no trânsito, os corredores entupidos de gente nos supermercados, e as longas filas nos caixas, tudo isso me dá muito tempo para pensar… Se eu não tomar uma decisão consciente, nesses contextos, sobre aquilo que merece minha atenção e deve ocupar os meus pensamentos, e como eu vou pensar sobre isso tudo, eu vou ficar de saco cheio e me sentir miserável todas as vezes que eu tiver de fazer compras no meu caminho de retorno para casa depois do trabalho.
Não se esqueçam de que minha configuração “default” em situações como a que descrevi é ter certeza de que elas têm que ver comigo, porque, afinal de contas, eu sou o centro do meu mundo. Trata-se do MEU cansaço, da MINHA irritação, da MINHA fome, do MEU desejo de chegar rápido em casa — e, por isso, vai me parecer que o mundo inteiro resolveu aparecer no MEU caminho e ME atrapalhar de chegar em casa rápido, comer algo gostoso e descansar um pouco. Mas quem é esse mundo inteiro que resolveu ME impedir de fazer o que eu quero? Quem são essas pessoas? E observem vocês quão repulsiva a maioria delas é, quão estúpida! Elas parecem uma manada de gado tentando encontrar a abertura que leva ao caixa do supermercado! Quase todas elas rudes, falando alto, se não um com o outro, ali na fila, ao telefone. E concluam comigo quão profundamente injusto isso é para COMIGO!
Pode ser, porém, que, se a minha configuração “default” recebeu tinturas mais socialmente conscientes em uma instituição educacional humanística e liberal, que eu escolha gastar o meu tempo no trânsito, nos corredores do supermercado, nas filas do caixa, pensando em quão revoltante é uma sociedade em que as pessoas optam por comprar SUVs e caminhonetes enormes, que gastam incontáveis galões de gasolina, um desperdício, e produzem poluição, ao mesmo tempo em que entopem e bloqueiam todas as faixas de trânsito. Talvez eu também pense que os adesivos mais patrióticos e mais religiosos não raro estão nos para-choques e nos vidros traseiros dos veículos mais detestavelmente egoístas, dirigidos pelas pessoas mais feias, agressivas e sem a menor consideração. Posso pensar, também, como, no futuro, os nossos filhos vão nos desprezar por desperdiçar combustíveis oriundos de fontes não renováveis, e por arruinar o clima do planeta, concluindo que todos nós afinal somos detestáveis, e como a sociedade de consumo é uma maldição, e assim por diante e assim por diante.
Dá para vocês entenderem qual o problema, não dá?
Se eu escolho pensar dessa forma no trânsito e no supermercado, OK: muitos de nós pensamos assim. Exceto que pensar dessa forma acaba sendo algo tão fácil, tão automático, que nem parece exigir de mim uma escolha: é assim que eu sou configurado, esse é o meu “default“, essa é a forma automática que eu experiencio as partes tediosas, frustrantes, irritantes, apinhadas de gente da minha vida adulta. Mas isso APENAS QUANDO eu estou operando com base na crença inconsciente de que eu sou o centro do mundo, e que são as minhas necessidades e os meus sentimentos que devem determinar as prioridades desse mundo.
Mas o fato, naturalmente, é que há formas totalmente diferentes de pensar sobre esse tipo de situação. No trânsito, ao contemplar todos esses veículos parados e com o motor ligado, que ficam no meu caminho, não seria possível imaginar que algumas pessoas nesses SUVs enormes e pesados tiveram acidentes sérios de carro no passado, e ficaram tão traumatizadas, que seu terapeuta lhes sugeriu que adquirissem um carro enorme e pesado no qual pudessem se sentir suficientemente seguras para voltar a dirigir… E que essa Hummer monstruosa que acabou de me ultrapassar e cortou na minha frente possa estar sendo conduzida por um pai aflito, cujo filho pequeno está ferido ou doente no banco de trás, e que está tentando chegar ao hospital para salvar a vida da criança, e que ele tem uma pressa muito maior, e mais legítima, do que a minha? E que, na verdade, não é ele que está no meu caminho, mas sou eu que estou no DELE?
Será que eu não posso escolher pensar que, com toda probabilidade, todas as outras pessoas, no supermercado, estão tão entediadas e frustradas como eu estou, e que algumas dessas pessoas provavelmente têm empregos mais duros, mais tediosos, menos bem pagos, e vivem vidas mais sofridas, do que eu?
Mais uma vez, não pensem que eu lhes estou dando lições de moral, o que eu esteja sugerindo que vocês devem pensar dessa forma, ou que eu espere que vocês ajam dessa forma de modo automático. Porque é muito difícil pensar diferente do que dita o “default“. Pensar diferente, pensar “fora da caixa”, exige força de vontade e esforço, e, se você é como eu, haverá momentos ou dias em que você não será capaz de fazê-lo, ou que você simplesmente não terá nenhuma vontade de pensar e agir assim.
Mas, na maior parte dos dias e das vezes, se você está cônscio e consciente para enfrentar a escolha, você pode escolher olhar de maneira diferente para essa senhora gorda, de olhar morto, com maquiagem exagerada, que acabou de dar um grito selvagem para seu filho na fila do caixa. Talvez ela não seja sempre assim. Talvez ela tenha passado três noites acordadas segurando a mão do marido que está morrendo de câncer nos ossos. Ou talvez ela seja uma atendente, de salário baixo, no Departamento de Veículos Automotores, que no dia anterior ajudou a sua mãe ou mulher a resolver um problema sério, difícil e irritante problema administrativo através de uma ação pequena, mas significativa, de bondade burocrática… Naturalmente, nada disse pode ser verdade ou mesmo provável, mas não é impossível. Depende do que você escolhe considerar. Se você está automaticamente certo de que você sabe quais são os fatos da realidade, e você está a operar na sua configuração “default“, então você, como eu, provavelmente não irá pensar sobre possibilidades que podem tirar você de sua zona de conforto e fazer com que você fique incomodado ou se sentindo miserável.
Mas se você realmente aprender a prestar atenção, então você irá descobrir que há outras opções. Estará, então, dentro dos seus poderes experienciar uma situação apinhada de carros ou de gente, em um dia quente, em que as coisas parecem não andar, e tudo sugere que você está no meio de um inferno de consumidores, como uma situação não apenas cheia de sentido, com elementos até mesmo sagrados, que demandam de você a mesma energia e o mesmo poder que fez as estrelas: amor, companheirismo, unidade mística de todas as coisas em um plano mais profundo.
Não que esse negócio místico seja necessariamente verdadeiro. A única coisa que é escrita com o V maiúsculo de Verdade é que você pode decidir como você vai ver e entender o que está acontecendo, e que você pode escolher como reagir adequada e sensatamente a cada situação.
Esta, eu lhes proponho, é a verdade de uma educação real, de uma aprendizagem que faz de nós seres bem-ajustados. Você é que escolhe o que você vai adorar.
Porque há algo mais que é esquisito, mas verdadeiro. Nas trincheiras do dia-a-dia da vida adulta, na realidade não existe algo que possa ser chamado de ateísmo. Não existe uma condição em que alguém não adore algo. Todo mundo adora alguma coisa. A única escolha que temos é sobre o que nós vamos adorar, diante do que nós vamos nos curvar. E a razão mais forte para talvez escolher alguma espécie de deus ou coisa do tipo espiritual — seja JC [Jesus Cristo], ou Alá, ou YHWH [Jeová], ou a Deusa-Mãe da Terra, ou as Quatro Verdades Nobres, ou algum conjunto de princípios éticos invioláveis — é que, basicamente qualquer outra coisa que você venha a adorar, acabará por comer você vivo.
Se você adora o dinheiro e outros bens que você possui, se é neles que você tenta encontrar real significado na vida, você nunca terá o bastante, nunca vai sentir que você já tem o suficiente. Esta é a verdade.
Se você adora o seu corpo, ou a sua beleza, ou a atração sexual que você provoca, você acabará sempre se achando deficiente, achando falhas no seu corpo ou na sua beleza, ou não se considerando suficientemente atraente. E quando o tempo e a idade começarem a deixar suas marcas, você vai morrer um milhão de mortes antes de finalmente agonizar e morrer.
Em um certo nível, nós todos já sabemos disso. Essas verdades já nos foram apresentadas na forma de mitos, provérbios, clichés, epigramas, parábolas. O esqueleto de qualquer história que sobrevive o teste do tempo é o mesmo. O que é difícil e desafiante é manter essa verdade diante dos nossos olhos e de nossa consciência todos os dias.
Se você adora o poder que você tem, você terminará por se sentir fraco e amedrontado, e você vai precisar obter mais e mais poder sobre os outros para anestesiar sua fraqueza e seu medo.
Se você adora o seu intelecto, a sua inteligência, a sua esperteza, você terminará por se sentir estúpido — uma fraude, sempre correndo o risco de ser descoberta e revelada.
Mas a coisa mais insidiosa sobre todas essas formas de adoração não é que sejam erradas ou pecaminosas: é o fato de que elas se tornam o que são de modo inconsciente, porque servem à nossa configuração “default“.
Elas são o tipo de adoração que você adota de maneira natural e gradual, dia-após-dia, tornando-se mais e mais seletivo e rigoroso sobre o que você enxerga e como você afere o que tem valor e quanto valor tem — sem estar consciente de que é isso que você está fazendo.
E o assim-chamado mundo real não desencorajará você de operar usando sua configuração “default“, porque esse mundo de homens e dinheiro e poder cantarola alegremente em um ambiente de medo e raiva e frustração e ambição e adoração do eu. Nossa própria cultura atual tem feito uso dessas forças em maneiras que acabaram por produzir riqueza, e conforto, e liberdade pessoal, em níveis verdadeiramente extraordinários. A liberdade, no caso, é a de que todos sejamos senhores de nossos reinos pequeninos, cada um do tamanho da caveira de uma cabeça. Esse tipo de liberdade tem muito que a recomende. Mas, naturalmente, há diferentes tipos de liberdade. Do tipo de liberdade que é mais importante e precioso, porém, você infelizmente não irá ouvir muito no grande mundo externo de desejos e realizações… Esse tipo realmente importante de liberdade envolve atenção, e consciência, e disciplina, bem como ser capaz de verdadeiramente se preocupar com outras pessoas e ser capaz levar em conta os seus interesses e necessidades em uma miríade de formas miúdas, nada sexy, todos os dias.
Está é a liberdade real. Reconhecê-la e vivê-la está no centro do que significa ser educado e entender como pensar. A alternativa é inconsciência, uma corrida de ratos, e a sensação preocupante de ter tido, e perdido, algo de dimensão infinita.
Reconheço que este tipo de coisa provavelmente não soa leve e divertido nem é profundamente inspiracional como discursos de paraninfo supostamente devem ser. O que procurei compartilhar com vocês, tanto quanto eu possa ver, é Verdade com V maiúsculo, que é o que remanesce quando se remove um quantidade enorme de belezuras retóricas. Vocês são, naturalmente, livres para pensar o que quiser do que eu lhes disse aqui hoje. Mas não desconsiderem o que eu lhes disse como se fosse um sermão daqueles de colocar o dedo no seu nariz. Nada do que eu lhes disse é sobre moralidade, ou religião, ou dogma, ou as grandes questões acerca da vida depois da morte.
O V maiúsculo da Verdade é sobre a vida ANTES da morte. É sobre o valor real de uma educação real, que quase nada tem que ver com conhecimento, e que tem tudo que ver com simples tomada de consciência, ou conscientização daquilo que é tão real e essencial, tão oculto em plena vista de todos nós, o tempo todo, que nós temos de nos lembrar desse fato o tempo todo, repetidamente:
“Isto é água.”
“Isto é água”.
É difícil de imaginar quão difícil é fazer isso, permanecer consciente e vivo no mundo adulto, entra dia e sai dia. Isso prova que ainda um outro cliché se mostra verdadeiro: SUA EDUCAÇÃO realmente é tarefa para a VIDA INTEIRA. E ela começa AGORA.
Desejo-lhes muito mais do que simplesmente boa sorte.
Kenyon College, Maio de 2005.
[1] A razão de ser do título é explicada no texto, logo no início. O texto aqui traduzido foi lido pelo autor como um Discurso de Paraninfo (Commencement Speech) para a Classe de 2005 no Kenyon College. O discurso foi gravado (áudio e vídeo), e o texto foi extraído e digitado. Quem passou o discurso para a forma escrita revela algumas dúvidas, aqui e ali, sobre o que foi dito. A tradução do Inglês é de Eduardo Chaves, que, dado o tom coloquial do discurso, fez, em certos pontos, uma tradução livre, embora fiel, no espírito, mesmo que não na letra, ao original. O texto usado para a tradução é o da transcrição do discurso, que é encontrado em inúmeros sites na Internet. As notas foram todas introduzidas pelo tradutor.
[2] David Foster Wallace (21.2.1962 – 12.9.2008). Autor de vários livros de sucesso, Wallace foi professor universitário, terminando sua carreira como professor, e sua vida, em Pomona College, de Claremont, CA, onde eu trabalhei em 1973-1974. Ele se suicidou, em sua casa, em Claremont, depois de lutar por muito tempo, sem sucesso, contra a depressão.
[3] Um “College” não é equivalente a um “Colégio” brasileiro. Um College (expressão que é quase uma abreviação de “Liberal Arts College”) é uma instituição americana de ensino superior que oferece diversas modalidades de curso superior, com ênfase nas Humanidades, em especial na Filosofia, na História, nas Letras e nas Artes. Cursos introdutórios e genéricos na área das Ciências, em especial das chamadas Ciências Humanas, são oferecidos. Dá-se mais ênfase à Lógica do que a Matemática. Sua função é preparar os alunos para a vida, enfatizando mais a qualidade do ensino e da aprendizagem do que a pesquisa e os estudos avançados, embora, hoje em dia, seja usado como um degrau preparatório para quem quer fazer cursos, em nível posterior ao da Graduação, em Direito, Medicina, Teologia, e nas diferentes áreas das Ciências Naturais, Ciências Humanas e da Lógica e Matemática. O Kenyon College, fundado em 1824 em Gambier, Ohio, é uma das prestigiosas e muito bem avaliadas instituições desse tipo nessa região do país (Ohio e Pensilvânia). Seu ensino de Graduação é considerado como do mesmo nível do das melhores universidades do pais, como as da Ivy League (Harvard, Yale, Dartmouth, Brown, Cornell, Columbia, Pennsylvania, Princeton — e eu acrescento Virginia, fundada por Thomas Jefferson, que não é incluída em algumas listas por ser considerada parte de um estado confederado na Guerra Civil). Um ano de estudo em Kenyon College custa por volta de 75 mil dólares [chegando perto de meio milhão de reais, ao câmbio que está ameaçando chegar — por um único ano de estudos: quase dois milhões de reais por quatro anos de educação de nível superior]. Cp. https://en.wikipedia.org/wiki/Kenyon_College e https://en.wikipedia.org/wiki/Ivy_League.
[4] O termo francês “default” é de uso corrente no Inglês, em especial no americano, para designar a configuração básica que um equipamento traz originalmente de fábrica — que, contudo, pode ser alterada pelo usuário. Não se refere, portanto, a algo imutável. Uma vez alterada a configuração original, em geral há como voltar a ela, apertando um botão ou clicando em alguma opção de um conjunto de menus.
Categories: Liberalism
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