Gesto Heróico (de Mário Barreto França)

Sempre gostei de ler poesias — e de declamá-las. Quando adolescente e jovem, costumava decorar poesias que, por alguma razão, e de alguma forma, me tocavam a alma. Uma delas me marcou especialmente. Talvez por ter sido a poesia mais longa que eu decorei e declamei. Eu deveria ter uns dezessete anos. Faz, portanto, sessenta anos, pois estou com setenta e sete. Nunca a esqueci. Quando estou dirigindo, numa viagem mais demorada, e o sono chega numa estrada longa e reta, e, portanto, monótona, eu me desperto me desafiando a declamar a poesia. Houve vezes em que engasguei em alguns pedaços, pulei uma palavra ou mesmo uma linha ou outra, mas sempre cheguei ao fim. Dependendo do meu entusiasmo, leva de sete a oito minutos a declamação. O título da poesia é “Gesto Heróico”, e seu autor o poeta protestante (batista, se não me engano), Mário Barreto França.

Hoje, 21.11.2020, estou sozinho aqui no meu apartamento velho, no Morumbi, em São Paulo. As minhas filhas já estão morando no apartamento novo, ao lado da futura Estação Vila Sonia do metrô. A Paloma ficou no sítio. Resolvemos nos distanciar por uns três ou quatro dias, porque esta semana ela ficou uns quatro dias em entra-e-sai em hospitais, e dentro deles, em salas de espera e em locais de atendimento. Embora ele estivesse sempre com máscara, e algumas vezes até com um escudo facial, é sempre arriscado. Por isso, e pela minha idade e por se enfartado, resolvemos que hoje, quando ela voltou para o sítio, em casa, eu viria para ficar solitário no apartamento vazio, que ainda tem quase todos os móveis, porque os móveis da cozinha foram feitos especialmente para o apartamento, e os principais utensílios domésticos, comprados novos: geladeira e freezer, máquina de lavar e secar roupas, cooktop. Só mantivemos a velha máquina de lavar louças e os dois fornos, o elétrico e o de microondas, por estarem em bom estado e terem a cor e o design que se encaixava quase perfeitamente, no ambiente. Os móveis das meninas também foram feitos para se ajustar ao tamanho do novo quarto, bem menor. Assim, em termos de móveis, tenho fogão, geladeira e freezer aqui, bem como cama, poltronas, etc.

Também ainda estão aqui alguns livros meus (uns mil) que ainda não consegui levar para o sítio, por faltar-me espaço lá. Hoje, fuçando neles, achei o livro O Louvor dos Humildes, de Mário Barreto França, que contém o poema que mencionei no início. Resolvi transcrevê-lo para postar no Facebook. Mas inovei. Resolvi transcrever o poema de memória — e, depois, conferir se a transcrição fora fiel. Foi quase perfeita — um ou outro detalhe apenas saiu um pouquinho diferente, o que corrigi na cópia que segue. É um poema religioso, escrito por um crente que realmente crê (se isso não é pleonasmo), e que faz, do seu poema, um sermão. Logo, não estranhem o fervor. É do Mário Barreto França, não meu. Aproveitei e gravei o poema em áudio, tentando dar à minha declamação o que teria sido a ênfase e a eloquência do autor – imagino e espero. Como o Facebook não deixa a gente publicar áudios e músicas, segue apenas o texto. A quebra do poema em versos e estrofes não fica muito claro na edição de O Louvor dos Humildes que eu tenho. Então eu procurei quebrar os versos onde a rima indica e dividir em estrofes, irregulares, segundo o conteúdo.

         Gesto Heróico

         (Mário Barreto França)

[A-12 versos]

A sineta bateu, convocando o colégio.
A sala estava cheia. O diretor, egrégio
e antigo mestre, entrou. Ninguém o reparara…
Falavam de uma falta enorme! Alguém roubara
da bolsa de um aluno a clássica merenda.
E o castigo era grande, uma surra tremenda:
vinte varadas! Qual seria o desgraçado
que iria suportar o braço desalmado
do velho diretor aplicando o castigo?
Talvez fosse um colega, ou um bedel antigo…
Havia tanta gente ali humilde e pobre,
e aparência, afinal, muita miséria encobre…

[B-12 versos]

Enorme burburinho enchia toda a sala…
“Silêncio!” (brada o mestre). “Aqui ninguém mais fala.
Houve uma falta grave – um roubo! E é oportuno
Que eu fale claramente: esse tão mau aluno,
que cometeu tal erro, há de pagar bem caro,
bem caro, estão ouvindo? E o que mais eu reparo
é ver que foi debalde o esforço de ensinar-vos
o caminho do bem, da retidão… Mostrar-vos
que se deve vencer por força da vontade,
e que se acima de qualquer febril necessidade
se coloca o dever! E eu vejo que as virtudes
não orientam mais as vossas atitudes!”

[C-4 versos]

O murmúrio aumentou. Todos se entreolharam,
e numa singular atitude calaram,
como para mostrar a força que os fazia
solidários na dor, na culpa ou rebeldia.

[D-12 versos]

Mas num canto da sala, humilde, magro e pálido
levantou-se um menino. O seu aspecto esquálido
bem claro demonstrava a miséria sem nome
que lhe vidrava o olhar nas convulsões da fome.
E num gesto de quem se vota a um sacrifício,
como um santo a sorrir no instante do suplício,
confessa: “Diretor, tinha uma fome cega,
e por isso roubei o lanche do colega.
Fiz mal, ninguém tem culpa, é verdade o que digo,
Estou pronto, portanto, a sofrer o castigo.”
E seguiu cabisbaixo em direção ao estrado
em que todo faltoso era sentenciado.

[E-12 versos]

E o rude Diretor lê o código interno:
“O aluno que roubar um lanche ou um caderno
nas costas levará vinte fortes varadas.”
E isto dizendo despe as costas maceradas
do pequenino réu. Vibra o primeiro açoite!
Um gemido se ouviu como um grito na noite.
Outra pancada estala. As pernas do garoto
começam a tremer dentro do calção roto.
E o seu olhar, voltado ao azul da imensidade,
parecia implorar um pouco de piedade.
Uma onda de horror, de revolta e protesto
brilhava em cada olhar, vibrava em cada gesto.

[F-8 versos]

Nisto um jovem robusto, e com porte de rico,
levantou-se resoluto e disse: “Eu vos suplico
que permitais, senhor, que eu sofra o seu castigo!
A merenda era minha, e ele sempre foi amigo.
Mas se é lei, que se cumpra a lei.” E, sobranceiro,
seguiu para o lugar do pobre companheiro,
tirou o paletó, curvou-se resignado,
e deixou que o castigo em si fosse aplicado.

[G-6 versos]

Quando, soturnamente, a última vergastada
estalou como um ai na costa ensanguenta
do inesperado herói, o pequeno poupado,
soluçando, abraçou seu protetor amado…
Beijou-o humildemente e disse-lhe baixinho,
num gesto fraternal e cheio de carinho:

[H-12 versos]

“Foste meu salvador, meu nobre e bom amigo,
pois sofreste por mim as dores do castigo,
que mereci, bem sei, mas nunca o aguentaria,
dada a minha profunda e crítica anemia.
Fui culpado de tudo, e nunca o desejara,
suplico-te: perdoa a minha ação ignara.
Eu saberei ser grato ao bem que me fizeste
implorando ao Senhor a proteção celeste
sobre ti e o teu lar, na certeza que o mundo
será em tua vida um roseiral fecundo,
pois onde eu estiver exaltarei, estóico,
o sublime esplendor deste teu gesto heróico!”

[I-6 versos]

Nós somos neste mundo uns míseros culpados,
criminosos infiéis e cheios de pecados.
Roubamos nosso irmão, o próximo enganamos,
perseguimos o justo, o trânsfuga exaltamos,
E tudo que é de mal, fazemos sem piedade,
Para satisfazer a nossa perversidade.

[J-14 versos]

E quando a mão de Deus aplica certo dia
a justa punição à nossa rebeldia,
Jesus volta de novo ao cimo do Calvário,
para por seu amor divino, extraordinário,
receber em seu corpo os látegos e os cravos,
destinados a nós, miseráveis escravos,
do pecado e do mal. “Por isso, ó Mestre amigo,
que sofreste perdoando a dor do meu castigo,
recebe o meu afeto humilde, mas sincero,
e a minha gratidão profunda, pois te quero,
exaltar em meu ser e em toda a minha vida,
nessa consagração de uma alma agradecida,
que vê no teu amor, e em teu suplício estóico,
a glorificação de um sacrifício heróico!’

[O poema foi composto em Santos, em 9 de Fevereiro de 1949, quase 72 anos atrás.]

Se alguém encontrar algum erro ou tiver sugestões para uma melhor definição das estrofes, eu agradeço se me enviar um email apresentando-os.

Em São Paulo, 21 de Novembro de 2020



Categories: Poema Religioso

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