C S Lewis e a Educação: 80 Anos Depois – Parte 3

Conteúdo

Nota Preliminar. 2

8. A Metafísica e a Epistemologia da Filosofia Moderna. 3

9. A Filosofia de René Descartes. 4

a. Relação com a Filosofia Tradicional 4

b. Paixão pela Clareza e Certeza da Matemática. 5

c. O Método Cartesiano. 5

d. O Projeto Cartesiano. 6

e. Esclarecimento de Alguns Termos. 7

f. Primeiro Argumento Cético. 8

g. Segundo Argumento Cético. 8

h. Terceiro Argumento Cético. 10

i. O Certo e Indubitável: O “Cogito“. 11

j. A Natureza do Eu. 12

k. As Marcas da Verdade Certa e Indubitável 12

l. Intuição e Dedução. 13

m. O Terceiro Argumento Recolocado. 14

n. A Existência de Deus. 14

o. A Metafísica Cartesiana: O Dualismo Mente-Corpo. 17

p. O Ceticismo de Descartes. 19

10. Os Demais Pensadores da Filosofia Moderna. 19

Notas da Parte 3. 19

o O o

Nota Preliminar

Este artigo contém quatro partes. Esta é a terceira. Ela foca, basicamente, a segunda de três partes auxiliares do tema: C S Lewis e a Educação [1]. Essas três partes são:

A primeira parte do artigo, publicada ante-ontem (24.2.2023), tem, como ponto de partida e foco o livro de C S Lewis, The Abolition of Man, publicado em 1943 ou em Janeiro de 1944, e que se baseou em três conferências que ele pronunciou em uma universidade inglesa nos dias 24 a 26 de Fevereiro de 1943. A primeira conferência foi pronunciada, portanto, exatamente oitenta anos atrás, no dia em que foi publicada a primeira parte deste artigo. Daí o subtítulo deste artigo, que é minha modesta homenagem a Lewis, a esse seu livro, e à sua obra, em geral, que é uma crítica formidável à Modernidade e ao Cientificismo (ou Cientismo, como preferem alguns). Suas propostas na área da Educação se aninham nesse contexto.

Para a Educação, no entender de Lewis, a Literatura, em especial, e a Arte (as Artes), em geral, são muito mais importantes do que a Ciência (as Ciências). Em retrospectiva, olhando pelo retrovisor, creio que foi por isso que eu, em 1961, depois de experimentar um ano do Curso Colegial Científico, optei por fazer o Curso Colegial Clássico, perdendo um ano mas fazendo uma escolha que norteou todo o restante da minha vida.

O meu estilo de escrever sobre um autor ou um livro é livre e razoavelmente dispersivo, com vários parênteses que fogem do assunto, com recortes autobiográficos aparentemente irrelevantes (exceto para mim), com notas de fim de texto quilométricas sobre questões ou detalhes que muitos acham que não caberiam em um artigo como este.

Depois de escrever minha Tese de Doutoramento, de 1970 a 1970, sobre David Hume, que foi um “catatau” de 620 páginas que consistiu basicamente de uma exegese stricto sensu da obra de Hume no que tem de relevante para a Metafísica e a Teologia (exceto no primeiro e no último capítulos da tese, que fizeram, o primeiro, uma introdução histórica à problemática que Hume enfrentou sobre o tema, e, o último, uma conclusão que discutiu o impacto que suas ideias sobre o tema tiveram sobre o pensamento filosófico posterior), abandonei esse estilo exegético caracteristicamente acadêmico. Hoje em dia, meus escritos são livres e dispersivos, cheios de parênteses, digressões e notas, como os descrevi. Mas isso veio a acontecer de forma lenta e gradual – que custou para se tornar geral e irrestrita.

Tomei a decisão de consistentemente adotar esse estilo quando li o Prefácio que Rubem Alves escreveu para um livro meu, publicado pela primeira vez em 2003. Disse ele no primeiro parágrafo desse Prefácio:

“Quero, preliminarmente, esclarecer o leitor sobre a minha maneira de ler, pois é ela que determina minha maneira de escrever. Eu leio antropofagicamente: devoro os livros que amo. Depois de devorá-los eles entram no meu sangue. Circulando no meu sangue deixam de pertencer ao autor: passam a ser parte de mim. Assim, ao escrever sobre um livro, escrevo sobre ele tal como foi por mim digerido amorosamente. Tolo seria um homem apaixonado que, ao escrever sobre o jantar que sua amada lhe preparou, transcrevesse as receitas dos pratos que foram servidos… Assim, não vou transcrever e nem resumir. Vou falar sobre aquilo que esse livro fez comigo depois de digerido…” [2]

Desde que tomei consciência desse estilo de ler e de escrever, tão bem descrito por Rubem Alves, resolvi adotá-lo, também, com a devida vênia do meu querido amigo. Esta é apenas mais uma das muitas coisas que aprendi com ele. Este artigo, em suas três partes, é escrito nesse estilo.

Venho aprendendo muito com C S Lewis, também, em especial em seus comentários e “tiradas” sobre como ler – e escrever – um livro: mergulhando nele, deixando de lado as ideias próprias, inclusive os preconceitos, e dedicando-me inteiro, e com cem por cento de atenção, ao ato de ler – ou de escrever.

Esta Terceira Parte discute a Cultura Filosófica Moderna, que Lewis criticou e rejeitou até o final de sua vida. Lewis não era simplesmente um professor de Literatura Medieval e Renascentista. Ele era verdadeiramente um homem dessa era. Ele se considerava um dinossauro numa era em que dinossauros estavam extintos, sendo meras peças de Museus de História Natural. Por isso ele criticou e rejeitou a Cultura Filosófica Moderna, que foi iniciada e firmada por René Descartes.

A Quarte Parte irá discutir a Cultura Filosófica Contemporânea (contemporânea a Lewis), que Lewis também rejeitou e sistematicamente criticou até mais do que fez em relação à Filosofia Moderna.

C S Lewis renunciou sua cidadania neste Mundo Moderno (e tambémno Mundo Contemporâneo), e optou por viver na – e a — Cultura Clássica.

O texto, nesta terceira parte, é relevante para entender o que Lewis rejeita e critica. O texto desta terceira parte, e também o da quarta, tem vida própria e reflete ideias que venho ruminando e digerindo há cerca de 25 anos (desde 1998, ano que, como 1961, representa um marco importante no meu desenvolvimento intelectual). Foi nesse ano que eu, entre outras coisas, resolvi concentrar na Internet todo a minha atividade e produção intelectual, livrando-me das peias e amarras que o mundo acadêmico procura impor.

Vou repetir algo semelhante a esta Nota Preliminar na publicação de todas as partes, porque haverá leitores que irão encontrar apenas uma parte do artigo.

Eduardo Chaves, 26 de Fevereiro de 2023 (Domingo depois do Carnaval de 2023. Em 1943, 26 de Fevereiro foi uma Sexta-feira. O Domingo depois do Carnaval em 1943 caiu no dia 14 de Março.)

8. A Metafísica e a Epistemologia da Filosofia Moderna

Neste capítulo deixarei C S Lewis um pouco de lado para discutir algumas características selecionadas da Filosofia Moderna. Mas nem de longe farei um tratamento exaustivo da questão. A educação que é objeto de crítica de C S Lewis é a Educação Moderna (que, para ele, inclui a Educação Contemporânea).

Para entender o “bloco filosófico” composto pela Filosofia Moderna e pela Filosofia Contemporânea (bloco ao qual frequentemente me refiro apenas como “Filosofia Moderna” ou “Cultura Moderna”, ou “Modernismo”, para simplificar, salvo se for necessário fazer referência a apenas uma das duas partes), é necessário entender o “bloco filosófico” que o precedeu, composto pela Filosofia Antiga e pela Filosofia Medieval, discutido na Parte 2 (ao qual venho me referindo apenas como “Filosofia Clássica” ou “Cultura Clássica”, também para simplificar, novamente, salvo se for necessário fazer referência a apenas uma das partes).

Embora haja consideráveis diferenças entre a Filosofia Moderna e a Filosofia Contemporânea, que (seguindo Lewis) aqui normalmente chamo de Filosofia Moderna, resolvi dividir a discussão em duas partes: esta Terceira Parte, que discute a Filosofia Moderna, propriamente dita, e a próxima, a Quarta Parte, que discutirá a Filosofia Contemporânea, propriamente dita.

Uma observação final antes de entrar nos “propriamente ditos”… Meu primeiro curso no Doutorado na University of Pittsburgh foi um Seminário, ministrado pelo filósofo mais respeitado no Departamento de Filosofia, Wilfrid Sellars, sobre o tema “Classical Issues in Metaphysics and Epistemology”. Foi um seminário no qual Sellars, a estrela que todos queriam ouvir, falou pouquíssimo, mas orientou o seminário de tal maneira que todos os participantes aprenderam muito… Vou tentar seguir nos passos dele e abstrair, do conjunto das ideias que configuram a filosofia de uma era ou de um período, aquelas que me parecem essenciais – e elas quase sempre fazem parte da Metafísica e da Epistemologia.

9. A Filosofia de René Descartes

A Filosofia Moderna começa com René Descartes, corretamente considerado “o Pai da Filosofia Moderna”. No essencial, o ponto de vista de Descartes, considerado um racionalista, é adotado também pelos empiristas (representados por Hume) e por Kant, que pretendeu suplantar tanto o Racionalismo como o Empirismo.

Apesar de a filosofia de René Descartes (1596-1650) se basear no que ele chama de “dúvida radical”, Descartes não é considerado um cético: ele é, regularmente, considerado um racionalista – embora o termo “mentalista” seja mais apropriado. Vou procurar mostrar, porém, que sua filosofia, apesar de ser apresentada por ele como a (sic; não “uma”) resposta ao Ceticismo, é, no essencial, fundamentalmente cética.

Descartes começa por refletir sobre as perguntas inquietantes do cético: Será que nossos sentidos não nos enganam sempre? Será que existe um mundo exterior à nossa mente? O que garante que não estamos sempre alucinando ou sonhando?

a. Relação com a Filosofia Tradicional

Apesar de ter estudado em colégio jesuíta (La Flèche, de 1604 a 1612), Descartes veio a se tornar altamente cético em relação à Filosofia Clássica que havia aprendido no colégio jesuíta. Em relação a ela ele afirma:

“Philosophy teaches us to speak with an appearance of truth on all things, and causes us to be admired by the less learned. (…)  Seeing that it has been cultivated by many centuries by the best minds that have ever lived, [it is surprising] that, nevertheless, no single thing is to be found in it which is not subject of dispute, and in consequence which is not dubious.”

[Tradução EC:]

“A filosofia nos ensina falar com aparência de verdade sobre todas as coisas, e nos leva a ser admirados pelos menos eruditos. . . . [Contudo, apesar de] a filosofia ter sido cultivada por muitos séculos pelas melhores inteligências que jamais viveram, . . . não há, nela, uma só questão que não seja objeto de disputa, e, em consequência, que não seja dúbia” [3].

É o fato de que ele consegue duvidar da veracidade de tudo o que passa por filosofia que faz com que ele se torne cético em relação a ela, e que tenha certo desprezo pela filosofia tradicional – a Filosofia Clássica. Se a filosofia vai ter lugar no universo de Descartes, ela terá que ser drasticamente revista.

b. Paixão pela Clareza e Certeza da Matemática

Em seus primeiros anos em La Flèche, Descartes se dedicou também à filosofia, à lógica e à matemática [4], que sobremaneira o impressionou, “por causa da sua clareza e certeza” e por ser “o mais claro exemplo disponível do uso ordenado de intuição e dedução”. Diante dessas características da matemática, Descartes acha estranho que a matemática tenha sido utilizada apenas nas artes mecânicas, e que nenhum edifício mais nobre tenha sido construído sobre suas bases firmes e sólidas, aproveitando a sua clareza e certeza [5].

Por isso, ele tomou a si a tarefa de construir esse edifício mais nobre. Para ele, a filosofia somente seria capaz de escapar dos ataques do cético se tivesse, como base de sustentação, um ponto de apoio que fosse claro, certo e indubitável. É a busca desse ponto de apoio que caracteriza sua filosofia.

c. O Método Cartesiano

O método de Descartes foi proceder de forma matemática, primeiro estabelecendo os princípios fundamentais, para a seguir derivar deles suas consequências, da mesma forma que teoremas são derivados de axiomas. Dessa forma, utilizando o método rigoroso do raciocínio matemático, ele esperava construir, sobre bases firmes e sólidas, um edifício filosófico que ficasse imune à controvérsia fútil que havia caracterizado a filosofia que aprendera na escola e que ele via em seus contemporâneos [6].

A primeira etapa na construção desse edifício é a descoberta de princípios básicos ou axiomas, que funcionem como base e alicerce do edifício. A estratégia que ele utiliza para chegar a esses princípios foi a da dúvida sistemática: nada que pode ser duvidado é aceitável como fundamento de seu sistema.

Assim sendo, na busca desse ponto de apoio, Descartes resolve duvidar, sistematicamente, de tudo. Ele se propõe submeter todas as suas crenças a uma revisão sistemática para tentar encontrar aquela(s) de que ele não consegue, realmente, duvidar. Essas crenças indubitáveis lhe forneceriam a base para seu edifício, visto que seriam consideradas como absolutamente certas [7].

d. O Projeto Cartesiano

Na verdade, o projeto de Descartes é maior do que simplesmente reconstruir a filosofia. Ele quer fornecer um fundamento racional para as crenças das pessoas comuns bem como para a ciência que começava naquela época, da qual foi um defensor e para a qual fez contribuições importantes.

Um indivíduo (seja ele uma pessoa comum ou um cientista) desenvolve muitas de suas crenças antes de chegar à idade da razão. Mesmo depois da idade da razão, ele frequentemente adquire crenças através do exercício não-crítico de sua atividade sensorial, de testemunhos não confiáveis de outros, de apelo a autoridades indignas de crédito. Quem pretende ser racional em suas convicções, tem, mais cedo ou mais tarde, de limpar a sua mente de todas as suas crenças, duvidando de tudo aquilo que é incerto e passível de dúvida, e reconstruindo suas crenças sobre um novo fundamento, certo e indubitável [8].

Descartes resume seu projeto:

“It is now some years since I detected how many were the false beliefs that I had from my earliest youth admitted as true, and how doubtful was everything I had since constructed on this basis; and from that time I was convinced that I must once and for all seriously undertake to rid myself of all the opinions which I had formerly accepted, and commence to build anew from the foundation, if I wanted to establish any firm and permanent structure in the sciences. (…) Now for this object it is not necessary that I should show that all of these are false – I shall perhaps never arrive at this end. But inasmuch as reason already already persuades me that I ought no less carefully to withhold my assent from matters which are not entirely certain and indubitable than from those which appear to me manifestly to be false, if I am able to find in each some reason to doubt, this will suffice to justify my rejecting the whole. And for that end it will not be requisite that I should examine each in particular, which would be an endless undertaking; for owing to the fact that the destruction of the foundations of necessity brings with it the downfall of the rest of the edifice.” [9]

[Tradução: EC]

“Muitos anos atrás percebi quantas opiniões falsas vinha aceitando como verdadeiras desde minha infância, e quão dúbio tudo o que eu nelas baseava deveria ser. Decidi, então, que, se realmente quisesse estabelecer algo de sólido e duradouro nas ciências, teria de, deliberadamente, me livrar de todas as opiniões que até então aceitara e começar a construir tudo de novo, a partir do zero. (…) Não seria necessário, para os meus propósitos, mostrar que todas minhas convicções eram falsas — tarefa que poderia nunca vir a concluir. Como a razão já me havia persuadido de que deveria deixar de acreditar tanto nas coisas que parecem ser manifestamente falsas como naquelas que não são inteiramente certas e indubitáveis, o menor fundamento para uma dúvida seria suficiente para me fazer rejeitar qualquer de minhas opiniões. Por isso, não precisei examinar cada uma de minhas convicções, individualmente, o que seria um trabalho interminável, mas apenas os fundamentos em que se baseavam, pois a destruição da fundação faz com que todo o edifício venha a ruir”.

O objetivo de Descartes era, portanto, examinar o fundamento que existe para as várias categorias de crença que possuía. Se o fundamento de toda uma categoria de crenças pode ser questionado, as crenças baseadas nesse fundamento não podem ser tidas como inteiramente certas. Pode até ser que as crenças sejam verdadeiras, mas é também possível que sejam falsas, e, se é possível que sejam falsas, elas não podem ser consideradas certas e indubitáveis. Talvez, subsequentemente, quando ele encontrar fundamentos certos e indubitáveis para suas crenças, Descartes possa voltar a aceitar algumas das crenças abandonadas e mostrar que são verdadeiras. Por enquanto, porém, ele as colocará de lado como suspeitas e indignas de credibilidade [10].

e. Esclarecimento de Alguns Termos

É oportuno esclarecer alguns termos básicos do discurso cartesiano. Para Descartes, “certeza” e “indubitabilidade” são termos, se não sinônimos, pelo menos correlacionados. Se um enunciado é certo, ele também é indubitável. Um enunciado é certo, para Descartes, quando ele é necessariamente verdadeiro. Um enunciado é indubitável, para Descartes, quando não é possível que ele seja falso, quando não se pode encontrar nenhuma razão para questioná-lo (porque ele é absolutamente certo).

Note-se que, para Descartes, a “necessidade” que ele atribui a um enunciado certo não é a necessidade inerente às tautologias (àquilo que subsequentemente se veio chamar de “enunciados analíticos”), visto que ele considera possível, pelo menos no primeiro estágio de suas dúvidas, como veremos, que enunciados matemáticos sejam falsos, e, portanto, dubitáveis.

Quando Descartes fala em dúvida, ele tem em mente uma dúvida racional, ou intelectual, metodológica, não uma dúvida existencial, ou prática. Duvidar racionalmente de uma crença é encontrar razões para duvidar de sua veracidade, é identificar razões para pensar que a crença em questão pode, possivelmente, ser falsa [11]. Eis o que diz Descartes:

“For a long time I had remarked that it is sometimes requisite in common life to follow opinions which one knows to be most uncertain, exactly as though they were indisputable. (…) But because in this case I wished to give myself entirely to the search after Truth, I thought that it was necessary for me to take an apparently opposite course, and to reject as absolutely false everything as to which I could imagine the least ground of doubt, in order to see if afterwards there remained anything in my belief that was entirely certain” [12].

[Tradução: EC]

“Há muito tempo que venho observando que, no que diz respeito à vida prática, é algumas vezes necessário seguir opiniões, que se sabe serem muito incertas, como se elas fossem indubitáveis. (…) Mas porque eu desejava me dedicar exclusivamente à busca da verdade, pensei ser necessário fazer exatamente o oposto e rejeitar, como se fosse absolutamente falso, tudo aquilo acerca do que pudesse ter a menor dúvida, para ver se, ao final, restaria alguma coisa que fosse indubitável”.

f. Primeiro Argumento Cético

Esclarecidas essas questões preliminares, vejamos como Descartes procede. O que mais nos interessa aqui é como Descartes pode duvidar das crenças que adquiriu através de sua percepção. Ele esclarece:

“All that up to the present time I have accepted as most true and certain I have learned either from the senses or through the senses; but it is sometimes proved to me that these senses are deceptive, and it is wiser not to trust entirely to any thing by which we have once been deceived.” [13]  

“Because our senses sometimes deceive us, I wished to suppose that nothing is just as they cause us to imagine it to be”. [14]

[Tradução: EC]

“Tudo o que, até o presente, aceitei como mais verdadeiro e certo, fiquei sabendo pelos sentidos ou através deles. Mas posso provar que algumas vezes os sentidos me enganam, e que é sábio não confiar inteiramente em algo que já alguma vez nos enganou”.

“Visto que os sentidos nos enganam algumas vezes, decidi supor que nada fosse como eles nos fazem imaginar”.

Com esse primeiro argumento, Descartes vem a duvidar de seus sentidos e a considerar dúbio e suspeito tudo o que ficou sabendo através deles. Os sentidos, portanto, não são o fundamento absolutamente certo e indubitável que estava procurando. Parece não haver critério que nos permita distinguir uma percepção errônea de uma correta.

Descartes considera a objeção de que, embora algumas vezes nos enganemos acerca de coisas que percebemos há muito tempo, ou que percebemos de muita distância (ou seja, acerca de coisas distantes, no tempo ou no espaço), não poderíamos nos enganar acerca de impressões sensoriais, que estamos tendo no momento, de coisas próximas de nós. Parece impossível duvidar de que, ao olhar para minha mesa, ali estejam minhas mãos escrevendo em um papel — somente uma pessoa insana teria dúvidas disso!

g. Segundo Argumento Cético

A resposta de Descartes a essa objeção introduz um segundo argumento: o do sonhoent. Sua resposta é a seguinte:

“(…)  I must remember that I am a man, and that, consequently, I am in the habit of sleeping, and in my dreams representing to myself the same things, or sometimes even less probable things, than do those who are insane in their waking moments. How often has it happened to me that in the night I dreamt that I found myself in this particular place, that I was dressed and seated near the fire, whilst, in reality, I was lying undressed in bed!  At this moment it does indeed seem to me that it is with eyes awake that I am looking at this paper; that this head which I move is not asleep, that it is deliberately and of set purpose that I extend my hand and perceive it;  what happens in sleep does not appear so clear nor so distinct as does all this. But in thinking over this I remind myself that, on many occasions, I have in sleep been deceived by similar illusions, and in dwelling carefully on this reflection I see so manifestly that there are no certain indications by which we may clearly distinguish wakefulness from sleep that I am lost in astonishment.  And my astonishment is such that it is almost [NB] capable of persuading me that I now dream” [15].

[Tradução: EC]

“(…) Devo lembrar que sou um homem, e, como tal, tenho o hábito de dormir. Durante meu sono, frequentemente sonho, e no sonho tenho impressões semelhantes, ou até mesmo menos prováveis, que aquelas que pessoas insanas têm quanto estão acordadas. Quantas vezes já não me ocorreu, em sonhos, que eu estivesse em determinado lugar, vestido de tal maneira, sentado próximo à lareira, quando, na realidade, estava na cama, dormindo. No momento presente, realmente me parece que é com olhos despertos que vejo este papel, que a cabeça que movimento não está adormecida, que é deliberada e intencionalmente que estico meu braço e vejo minha mão. O que acontece durante o sono parece não ser tão claro e distinto como as impressões que estou tendo agora. Mas ao pensar sobre tudo isso eu me relembro de que, em muitas outras ocasiões, tive ilusões semelhantes, enquanto dormia. Examinando cuidadosamente essas lembranças, concluo que, manifestamente, não existem indicações certas pelas quais possa claramente distinguir as impressões que tenho, quando acordado, das que pareço ter, enquanto durmo, e fico confuso. E minha confusão é tal que sou quase [NB] capaz de me persuadir que no momento estou sonhando”.

Na ausência de indicadores claros que lhe permitam distinguir as impressões que ele tem quando acordado das que lhe acontecem quando dorme, Descartes considera possível que todas as suas percepções sejam totalmente ilusórias e que as coisas ao seu redor, incluindo o seu próprio corpo, podem, não só ser totalmente diferentes do que lhe parecem ser, mas realmente não existir, na realidade. Parece não haver critério que nos permita distinguir percepções verídicas de inverídicas [16].

O primeiro argumento — o de que nossos sentidos às vezes nos enganam, produzindo percepções equivocadas, e que, portanto, as coisas podem não ser como parecem — leva Descartes a concluir que o mundo exterior pode não ser como parece.

O segundo argumento — o de que nos sonhos tenho percepções inverídicas, que não correspondem a nenhuma realidade externa — leva Descartes a concluir que o mundo exterior pode nem mesmo existir.

A diferença básica entre o primeiro e o segundo argumento é a seguinte. Quando somos enganados pelos nossos sentidos, são os próprios sentidos que, retrospectivamente, nos mostram que estávamos enganados. O erro, no caso de engano dos sentidos, não se generaliza ao presente caso: ele se situa sempre num caso anterior, já passado. Somente se constata um engano dos sentidos em contraposição a casos de percepção não-enganosa  [17]. No caso do sonho, porém, a dúvida se estende ao caso presente: pode ser que esteja sonhando agora. O fato de que estou totalmente convencido de que não estou sonhando agora em nada contribui para a certeza genuína de que não esteja sonhando. O argumento do sonho é, portanto, mais radical.

Os argumentos, até agora, parecem nos mostrar que os sentidos não são confiáveis. Como a ciência depende de observações sensoriais, a ciência, como um todo estaria sob suspeita, em virtude desses argumentos — exceto, talvez, a matemática. Estaria a matemática acima de qualquer suspeita, e residiriam nela os enunciados certos e indubitáveis que Descartes procura?

h. Terceiro Argumento Cético

Deixando de lado, por um momento, as convicções baseadas nos sentidos, examinemos um terceiro argumento de Descartes, apresentado quando ele passa a examinar algumas idéias matemáticas simples. Os enunciados “dois mais três perfazem cinco”, ou “um quadrado tem quadro lados”, não parecem ser enunciados cuja veracidade dependam dos sentidos. Acordado ou sonhando, parece impossível que alguém seja enganado acerca de coisas tão óbvias. Elas parecem ser certas e, portanto, indubitáveis.

“For whether I am awake or asleep, two and three together always form five, and the square can never have more than four sides, and it does not seem possible that truths so clear and apparent can be suspected of any falsity” [18].

[Tradução: EC]

“Acordado ou dormindo, dois e três perfazem cinco, e um quadrado tem apenas quatro lados; e parece impossível que verdades assim tão claras e aparentes fiquem sob suspeita de falsidade”.

Mas nem nesses exemplos matemáticos Descartes acredita encontrar o fundamento que está procurando. Por um lado, as pessoas muitas vezes erram, considerando como auto evidente algo que não o é. Por outro lado, Deus, ou um ser extremamente poderoso, inteligente e maligno, poderia enganá-lo em tudo o que pensa, e poderia ter disposto as coisas de tal forma que ele fosse enganado até em relação a esses enunciados cuja verdade parece tão evidente.

“One reason is that those who have fallen into error in reasoning on such matters, have held as perfectly certainly and self-evident what we see to be false. But a yet more important reason is that we have been told that God who created us can do all that He desires. For we are still ignorant of whether He may not have desired to create us in such a way that we shall always be deceived, even in the things that we believe ourselves to know best” [19].

[Tradução: EC]

“Uma razão é que as pessoas fazem erros em raciocínios desse tipo e consideram como certo e auto evidente o que vemos ser falso. Outra razão, mais importante, é que Deus, que nos criou, e que pode fazer tudo o que Ele deseja, pode ter desejado nos criar — não sabemos ainda o que Ele desejou — de tal modo que sempre nos enganemos, mesmo em relação àquelas coisas que pensamos melhor conhecer”.

Para acrescentar rigor ao seu método, portanto, Descartes, que tem algum escrúpulo em imaginar que Deus pudesse ser malévolo [20], supõe que exista esse ser extremamente poderoso e inteligente, mas maligno, que ele chama de um “gênio maligno”, que faz com que nos enganemos “mesmo em relação àquelas coisas que pensamos melhor conhecer” [21]. Em decorrência dessa suposição, Descartes passa a duvidar da veracidade até dos enunciados matemáticos mais simples e acrescenta rigor à sua dúvida da realidade externa, inclusive de seu próprio corpo [22].

i. O Certo e Indubitável: O “Cogito

Mas se nem os sentidos nem a matemática, nem as ciências empíricas nem as formais, estão acima de dúvida, “o que é, então, que pode ser considerado verdadeiro?” [23]

A primeira resposta que se sugere é que a única coisa certa e indubitável é que nada é certo – uma breve alusão ao dito de Sócrates de que tudo que ele sabia era que nada sabia… Mas mesmo essa afirmação não é e certa e indubitável: é bem possível que haja várias outras coisas que sejam certas e indubitáveis, e, se houver, a afirmação não seria verdadeira. Até mesmo dessa afirmação, portanto, Descartes conclui que deve duvidar.

Entretanto, Descartes percebe que, se ele duvida de tudo, há algo que não lhe é possível duvidar, a saber, do fato de que está duvidando. Se ele duvida disso, pelo mesmo ato está duvidando. Desse fato Descartes conclui que ele não pode duvidar se não existir, e que, portanto, sua existência, como um duvidador, é absolutamente certa e indubitável. Nem mesmo o gênio maligno pode enganá-lo acerca disso, porque, para ser enganado, ele, Descartes, tem que existir: ele não pode ser enganado se não existir.

Como duvidar, ser enganado, etc., são formas de atividade mental, que podem ser chamadas de pensamento, Descartes conclui que, se ele está pensando, num dado momento, então sua existência é, naquele momento, absolutamente certa e indubitável. “Cogito, ergo sum[24]. Ele não pode estar errado, portanto, acerca do fato de que o enunciado “Penso, logo existo” é necessariamente verdadeiro todas as vezes que ele o concebe ou declara [25].

Com esse enunciado Descartes acredita ter descoberto sua primeira verdade certa e indubitável. Ele existe todas as vezes que pensa, que duvida, que é enganado.

“(…) Remarking that this truth, ´I think, therefore I am´ was so certain and so assured that all the most extravagant suppositions brought forward by the sceptics were incapable of shaking it, I came to the conclusion that that I could receive it without scruple as the first principle of the Philosophy for which I was seeking” [26].

[Tradução: EC]

“(…) Observando que essa verdade, ‘Eu penso, logo existo’, é tão sólida e firme que nem as mais extravagantes suposições dos céticos podem derrubá-la, julguei que não precisava ter escrúpulos de aceitá-la como o primeiro princípio da filosofia, que eu buscava”.

Mas esse conhecimento é extremamente limitado em escopo. Ele tem certeza de que existe quando pensa, mas não sabe, por exemplo, qual a sua natureza — ele sabe que ele é, não o que ele é — nem se continua a existir quando para de pensar. É preciso, portanto, continuar a busca.

j. A Natureza do Eu

Descartes passa, portanto, a investigar a natureza daquilo que, ao pensar, ele tem certeza de que existe.

Como se viu, Descartes encontrou razões para duvidar de tudo o que depende dos sentidos. O fato de ele ter certeza de que existe, portanto, não implica que ele tenha certeza de que tem um corpo, que ele tenha impressões sensoriais, sensações. A única coisa de que Descartes pode ter certeza é de que ele existe enquanto ser pensante, enquanto “res cogitans” (coisa que pensa, coisa pensante).

“I find here that thought is an attribute that belongs to me. (…) I am, I exist, that is certain. But how often? Just when I think; for it might possibly be the case if I ceased entirely to think, that I should likewise cease to exist. I do not now admit anything which is not necessarily true: to speak accurately, I am not more than a thing which thinks, that is to say a mind or a soul, or an understanding, or a reason, which are terms whose significance was formerly unknown to me. I am, however, a real thing and really exist; but what thing? I have already answered: a thing which thinks” [27].

[Tradução: EC]

“Aqui descubro que o pensamento é um atributo que me pertence. (…) Eu sou, eu existo — isto é certo. Mas com que frequência? Apenas enquanto eu continuo a pensar, porque é possível que, se eu deixar inteiramente de pensar, eu deixe igualmente de existir. Não estou admitindo nada que não seja necessariamente verdadeiro. Para falar com precisão, eu me considero não mais do que uma coisa que pensa, isto é, uma mente, ou uma alma, ou um entendimento, ou uma razão, termos cujo sentido eu até agora desconhecia. Eu sou, contudo, uma coisa real, uma coisa que realmente existe. Mas que tipo de coisa? Eu já disse anteriormente: uma coisa que pensa”.

Se alguém lhe perguntar se seus pensamentos têm alguma causa externa, Descartes responde que seus pensamentos podem ter sido causados por algo externo a ele, como podem ter sido produzidos em sua mente por Deus, pelo gênio maligno, ou até mesmo por ele próprio. Tudo isso é possível, e, portanto, nenhuma dessas causas possíveis pode ser considerada certa.

k. As Marcas da Verdade Certa e Indubitável

O caminho que Descartes decide seguir, a partir desse ponto, é, tendo encontrado pelo menos uma coisa absolutamente certa, examiná-la, para ver se consegue descobrir nela as marcas identificadoras de algo indubitável, para ver se consegue definir o que é que a torna indubitável.

Sua conclusão é que nada existe no enunciado “penso, logo existo” além de uma “apreensão clara e distinta” do que é afirmado. Apreensão clara e distinta deve, portanto, ser marca da verdade certa e indubitável [28].

“I am certain that I am a thing which thinks; but do I not then likewise know what is requisite to render me certain of a truth? Certainly in this first knowledge there is nothing that assures me of its truth, excepting the clear and distinct perception of that which I state, which would not indeed suffice to assure me that what I say is true, if it could ever happen that a thing which I conceived so clearly and distinctly could be false; and accordingly it seems to me that already I can establish as a general rule that all things which I perceive very clearly and very distinctly are true.” [29]

[Tradução: EC]

“Estou certo de que sou uma coisa que pensa: mas não saberei eu, igualmente, o que é necessário para que eu tenha certeza de uma verdade? Certamente, nesse primeiro conhecimento, nada há que me assegure sua verdade, exceto a percepção clara e distinta daquilo que afirmo, que não seria suficiente para me garantir que aquilo que afirmo é verdadeiro se fosse possível que algo que concebo clara e distintamente viesse a ser falso. Dessa forma, parece-me que posso já estabelecer, como regra geral, que todas as coisas que percebo muito claramente e muito distintamente são verdadeiras.”

l. Intuição e Dedução

Mas não são apenas os enunciados claros e distintos que podem ser considerados certos e indubitáveis. Qualquer enunciado que possa ser validamente deduzido deles também terá as mesmas caraterísticas.

Em Regras para a Direção da Mente, escrito por volta de 1630, Descartes afirma que nosso conhecimento depende de três operações da mente: intuição e dedução. Eis a passagem lapidar em que ele discute isso:

“By intuition I understand, not the fluctuating testimony of the senses, nor the misleading judgment that proceeds from the floundering constructions of imagination, but the conception which an unclouded and attentive mind gives us so readily and distinctly that we are wholly freed from doubt about that which we understand. Or, what comes to the same thing, intuition is the undoubting conception of an unclouded (purae) and attentive mind, and springs from the light of reason alone; it is more certain than deduction itself, in that it is simpler. (…) Thus each individual can mentally have intuition of the fact that he exists, and that he thinks; that the triangle is bounded by three lines only, the sphere by a single superficies, and so on.” [30]

[Tradução: EC]

“Intuição é a concepção que uma mente não anuviada e atenta nos dá tão pronta e claramente que deixamos de ter qualquer dúvida acerca daquilo que compreendemos”.

Seu conhecimento de que, se ele pensa, ele existe enquanto coisa pensante, é intuitivo, nesse sentido do termo: Ele afirma:

“When we become aware that we are thinking beings, this is a primitive act of knowledge derived from no syllogistic reasoning. He who says, ‘I think, hence I am, or exist’, does not deduce existence from thought by a syllogism, by a simple act of mental vision, recognizes it as if it were a thing that is known per se.” [31]

[Tradução: EC]

“Quando nos tornamos conscientes de que somos seres pensantes, esse reconhecimento é um ato primitivo do conhecimento que não é derivado de nenhum silogismo. Quando alguém diz: ‘Estou pensando, logo eu sou, ou eu existo’, ele não está deduzindo sua existência de seu pensamento através de um silogismo, mas está apenas reconhecendo este fato [que ao pensar ele é] como algo evidente, através de um ato simples de visão mental, que é conhecido por si só (per se)”.

Dedução, por outro lado, é inferência necessária, a partir de coisas que são conhecidas com certeza, para outras coisas que passam a ser conhecidas com certeza. Para Descartes, embora a dedução seja diferente da intuição, ela é baseada nesta, pois cada passo em uma cadeia dedutiva corresponde a uma intuição: é preciso apreender clara e distintamente cada passo na dedução [32].

Tendo estabelecido um enunciado absolutamente certo e indubitável, Descarte prossegue em sua investigação para ver o que pode ser dele deduzido. Tendo colocado no lugar o alicerce, ele pretende agora construir o prédio.

m. O Terceiro Argumento Recolocado

Voltemos à questão dos enunciados matemáticos. Depois de ter estabelecido um enunciado certo e indubitável, Descartes volta a considerar a afirmação de que 2 mais 3 perfazem 5. Segundo ele, quando ele contempla essa afirmação, levando em conta apenas o enunciado, ele tem uma apreensão clara e distinta de sua verdade. Ele só considera a afirmação dúbia por causa da hipótese do gênio maligno, que pode enganá-lo mesmo acerca de coisas que lhe parecem evidentes. Ele reconhece, agora, que este fundamento para sua dúvida é frágil, porque não nenhuma razão para acreditar que esse gênio maligno exista. Mas mesmo um fundamento frágil precisa ser levado em conta.

Para eliminar a hipótese da existência do gênio maligno, Descartes se sente obrigado a provar que um ser todo-poderoso existe, mas não é enganador. Essa prova é equivalente a uma prova da existência de Deus, e vai permitir que ele passe a aceitar como verdadeiros enunciados que ele parece apreender como claros e distintos mas que, por causa da hipótese do gênio maligno, havia rejeitado.

n. A Existência de Deus

Vejamos, agora, que argumentos Descartes usa para “provar” [33] a existência de Deus. É possível detectar várias provas em seus escritos.

No Discurso, Descartes desenvolve uma prova baseado na ideia de perfeição.

Antes de prosseguir, porém, é oportuno esclarecer uma questão controvertida: é discutível se Descartes considerou clareza e distinção como marcas apenas de certeza e indubitabilidade ou também de verdade.

Caso seja apenas a primeira hipótese (marca apenas de certeza), estaria o “cogito” incluído entre as verdades que são certas e indubitáveis mas não necessariamente verdadeiras, como as matemáticas? A mim me parece que o certo e indubitável é equivalente ao verdadeiro para Descartes.

O que ele distingue (mal) é entre verdades que são certas e indubitáveis, mesmo com a hipótese de um gênio maligno (como o “cogito“, e, talvez algumas outras verdades) e enunciados que parecem certos e indubitáveis, mas, com a hipótese do gênio maligno (i.e., sem a prova da existência de Deus) não podem ser tidos como verdadeiros.

Em vários locais Descartes afirma, explicitamente, que mesmo a hipótese de um Deus enganador ou de um gênio maligno não pode fazê-lo duvidar do “cogito“, isto é, de que ele pensa, e, em pensando, existe.

Mas é apenas depois de provar que Deus existe, e, que, sendo benevolente, além de todo-poderoso, não permitiria que um gênio maligno nos enganasse de maneira tão desavergonhada, que Descartes se considera justificado em considerar os enunciados matemáticos (e outros, como veremos) como verdades certas e indubitáveis. Na verdade, após ter provado que Deus existe, Descartes abre as porteiras e reintroduz basicamente tudo de que antes havia duvidado.

Parece claro, portanto, que, para Descartes, há uma diferença qualitativa entre o “cogito” (de que ele acha impossível duvidar) e as outras verdades que parecem ser claras e distintas (mas que ele acha possível duvidar). Essa interpretação tem ainda o mérito de não imputar a Descartes um argumento circular: o de que ele usa o “cogito” para definir que clareza e distinção são critérios de verdade, em seguida usa esses critérios para provar a existência de Deus, e, por fim, usa a existência de Deus para provar que os enunciados que apreendo de forma clara e distinta são verdadeiros [34].

No Discurso, por exemplo, ele diz (a primeira passagem já foi citada):

“(…) Remarking that this truth, ´I think, therefore I am´ was so certain and so assured that all the most extravagant suppositions brought forward by the sceptics were incapable of shaking it, I came to the conclusion that that I could receive it without scruple as the first principle of the Philosophy for which I was seeking” [35].

[Tradução: EC]

“(…) Observando que essa verdade, ‘Eu penso, logo existo’, é tão sólida e firme que nem as mais extravagantes suposições dos céticos podem derrubá-la, julguei que não precisava ter escrúpulos de aceitá-la como o primeiro princípio da filosofia, que eu buscava”.

“After this I considered generally what in a proposition is requisite in order to be true and certain; for since I had just discovered one which I knew to be such, I thought that I ought also to know in what this certainty consisted. And having remarked that there was nothing at all in the statement ‘I think, therefore I am’, which assures me of having thereby made a true assertion, excepting that I see very clearly that to think it is necessary to be, I came to the conclusion that I might assume, as general rule, that the things which we conceive very clearly and distinctly are all true – remembering, however, that there is some difficulty in ascertaining which are those that we distinctly conceive” [36].

[Tradução: EC]

“Depois disso eu considerei o que, numa proposição, é necessário para que seja verdadeira e certa, pois, desde que acabara de descobrir uma que sabia ser tal, pensei que devesse saber no que consistia essa certeza. E tendo notado que não havia absolutamente nada no enunciado ‘Eu penso, logo eu existo’ que me garante ter com ele feito uma afirmação verdadeira, exceto o fato de que vejo muito claramente que, para pensar essa afirmação, ela tem que necessariamente ser verdadeira, concluí que eu poderia pressupor, como regra geral, que as coisas que concebo muito clara e distintamente são todas verdadeiras — lembrando-me, entretanto, de que há alguma dificuldade para determinar quais são as coisas que distintamente concebemos”.

Especialmente a última frase é sugestiva: Descartes afirma que tudo o que ele clara e distintamente percebe é verdadeiro, mas reconhece que existem dificuldades para determinar se o que estamos apreendendo está sendo apreendido de forma clara e distinta. Considero que essa última frase corrobora, de maneira especial, minha interpretação.

Em passagem das Meditações, já citada, e muito parecida com as passagens do Discurso que acabo de citar (a “regra geral”, por exemplo, é mencionada em ambas), Descartes afirma:

“I am certain that I am a thing which thinks; but do I not then likewise know what is requisite to render me certain of a truth? Certainly in this first knowledge there is nothing that assures me of its truth, excepting the clear and distinct perception of that which I state, which would not indeed suffice to assure me that what I say is true, if it could ever happen that a thing which I conceived so clearly and distinctly could be false; and accordingly it seems to me that I already can establish a general rule that all things which I perceive very clearly and very distinctly are true.” [37]

[Tradução: EC]

“Estou certo de que sou uma coisa que pensa: mas não saberei eu, igualmente, o que é necessário para que eu tenha certeza de uma verdade? Certamente, nesse primeiro conhecimento, nada há que me assegure sua verdade, exceto a percepção clara e distinta daquilo que afirmo, que não seria suficiente para me garantir que aquilo que afirmo é verdadeiro se fosse possível que algo que concebo clara e distintamente viesse a ser falso. Dessa forma, parece-me que posso já estabelecer, como regra geral, que todas as coisas que percebo muito claramente e muito distintamente são verdadeiras”.

Contudo, é forçoso reconhecer que em várias outras passagens Descartes textualmente afirma que sem o conhecimento da existência de Deus não poderia saber nada. Eis algumas delas:

“In order to be able altogether to remove it [the possibility of doubt based on the hypothesis that God is a deceiver], I must inquire whether there is a God as soon as the occasion presents itself; and if I find that there is a God, I must also inquire whether He may be a deceiver; for without a knowledge of these two truths I do no see that I can ever be certain of anything.” [38]

[Tradução: EC]

“Para remover inteiramente [a possibilidade de dúvida baseada na hipótese de que Deus é enganador] devo investigar se há um Deus assim que a ocasião se apresentar, e, se concluir que Deus existe, devo investigar se Ele pode ser um enganador. Sem conhecimento dessas duas verdades, não vejo como jamais possa ter certeza de qualquer coisa”.

“But after I have recognized that there is a God – because at the same time I have also recognized that all things depend upon Him, and that He is not a deceiver, and from that have inferred that what I perceive clearly and distinctly cannot fail to be true – although I no longer pay attention to the reasons for which I have judged this to be true, provided that I recollect having clearly and distinctly perceived it no contrary reason can be brought forward which could ever cause me doubt of its truth; and thus I have a true and certain knowledge of it” [39].

[Tradução: EC]

“Depois que reconheci que há um Deus — porque ao mesmo tempo também reconheci que todas as coisas dependem dEle, e que ele não é um enganador, e disso inferi que o que percebo clara e distintamente não pode deixar de ser verdade — nenhuma razão contrária pode ser apresentada que me faça duvidar da verdade de algo que clara e distintamente percebi, desde que me lembre tê-lo clara e . distintamente percebido (mesmo que no momento não tenha em mente as razões que levaram a julgá-lo verdadeiro), e, assim, posso dizer que tenho conhecimento verdadeiro e certo dessa coisa”.

“And so I very clearly recognize that the certainty and truth of all knowledge depends on the knowledge of the true God, in so much that, before I knew Him, I could not have a perfect knowledge of any other thing” [40].

[Tradução: EC]

“E assim eu claramente reconheço que a certeza e a verdade de todo conhecimento depende apenas do conhecimento do verdadeiro Deus, à medida que, antes de conhecê-lO, não poderia ter um conhecimento perfeito de nenhuma outra coisa” (Meditações III, HR, 185) (NB: conhecimento perfeito).

o. A Metafísica Cartesiana: O Dualismo Mente-Corpo

Antes de prosseguir, é interessante registrar como Descartes consegue duvidar de que realmente exista um mundo exterior. Aparentemente, esse mundo nos é dado pela percepção: através de nossos órgãos dos sentidos, percebemos o mundo exterior. Pelo menos esse é o ponto de vista tradicional, conhecido como realismo (às vezes qualificado de “ingênuo”).

Descartes não concorda com esse ponto de vista tradicional. Para ele, a nossa mente (ou consciência) e a realidade externa são dois reinos separados e autônomos, nenhum sendo dependente do outro. Embora ele não negue que a mente seja capaz de compreender objetos externos a ela, aquilo de que estamos imediatamente conscientes, para Descartes, não são os objetos externos, mas apenas representações mentais, ou idéias, produzidas pela nossa própria mente. A mente, portanto, tem contato com o mundo externo apenas através de idéias, que são representações mentais dos objetos externos.

O objeto de nossa percepção, portanto, não são os objetos externos, como acreditam os realistas ingênuos, mas representações mentais desses objetos. Aquilo que nos é direta ou imediatamente dado na percepção são idéias que existem apenas na mente (embora possam representar objetos externos). Vou chamar essa teoria da percepção de “representacionalismo” ou, mais recentemente, “fenomenalismo” (só temos acesso aos “phenomena”, isto é, às representações mentais das coisas, não aos “noumena”, às coisas em si mesmas [41].

Essa teoria da percepção é baseada na metafísica cartesiana, i.e., na teoria da mente e da realidade externa que Descartes advoga. Para ele, a mente é uma substância ou entidade, caracterizada fundamentalmente pelo fato de ter consciência, de ser uma coisa que pensa, que percebe, que sente (“res cogitans”). A realidade externa é material, e a matéria tem como característica básica o fato de ser extensa (“res extensa”). Consciência e extensão são coisas claramente distintas, podendo cada uma delas ser clara e distintamente concebida sem referência à outra. Os vários estados de consciência (pensamento, sensação, sentimento) são totalmente distintos dos vários modos de determinação da matéria. Por isso, nenhum estado de consciência pode ser essencialmente dependente de qualquer coisa física. A mente, e tudo que ela possui, pode existir sem qualquer substância material [42].

Essa metafísica radicalmente dualista tem sérias implicações epistemológicas. Afirmar que a consciência é um atributo intrínseco de uma substância é negar que a consciência seja relacional, isto é, é negar que a consciência se constitua através da relação com algo que é diferente dela própria, a saber, a realidade externa. Por causa disso, é inteiramente possível, para Descartes, que tenhamos exatamente as mesmas experiências que temos e que não exista nada, fora de nossa própria mente, que seja responsável pelos nossos estados de consciência. Os estados de consciência da mente dependem apenas da própria mente, de nada mais [43].

É por isso que Descartes consegue duvidar da existência de um mundo exterior sem duvidar da existência de seus estados de consciência — porque consciência, para ele, não é consciência de algo diferente dela mesma.

Note-se que a consciência, para Descartes, tem objetos, é consciência de alguma coisa, mas os objetos da consciência são mentais, e, no fundo, não se distinguem dela mesma. Uma idéia é, para Descartes, um objeto da consciência mas também, ao mesmo tempo, um estado da consciência [44].

Se essa teoria parece difícil de entender, usemos, para entendê-la, a analogia proposta por David Kelly. Imaginemos que a mente seja como um projetor de cinema. O feixe de luz que ele projeta é um atributo essencial do projetor: sem ele não haveria projetor (o feixe de luz é análogo à consciência). Os objetos na tela são os objetos da consciência. Contudo, o projetor não é uma lanterna que ilumina objetos independentes da lanterna. O projetor contém um faixo de luz (a consciência) que cria e constitui as imagens que ele ilumina: os objetos na tela existem apenas “na” luz — se ela se apagar eles deixam de existir [45].

p. O Ceticismo de Descartes

Do que foi dito fica claro que Descartes é um cético — mas por razões outras do que as que ele invocou para a sua dúvida. Ele é cético porque sua epistemologia, em especial sua teoria da percepção, o leva a negar que tenhamos conhecimento do mundo exterior — a menos que se invoquem hipóteses auxiliares de fundamentação muito duvidosa, como a da existência de Deus. Para Descartes, a única forma de garantir que a nossas idéias correspondem a um mundo exterior, lá fora, é o suposto fato de que Deus existe e que, sendo perfeitamente bom, não permitiria que nos enganássemos sobre algo tão fundamental como a existência do mundo exterior. Elimine-se a hipótese de Deus e Descartes se torna um dos céticos mais radicais na História da Filosofia em relação ao conhecimento empírico.

10. Os Demais Pensadores da Filosofia Moderna

A grande tragédia da Filosofia Moderna está no fato de que os demais pensadores que constituem o núcleo central e principal dessa filosofia (os empiristas britânicos – Locke, Berkeley e Hume – e até mesmo Kant e seus seguidores) não colocaram em xeque essa premissa cética adotada por Descartes acerca de nosso conhecimento do mundo exterior. Com isso, toda a Filosofia Moderna se tornou cética em relação a esse item fundamental do conhecimento.

Notas da Parte 3


[1]    Prefiro escrever C S Lewis, sem os pontos, exceto em citações.

[2]    “Prefácio de Rubem Alves”, in Eduardo Chaves, Educação e Desenvolvimento Humano: Uma Nova Educação para uma Nova Era (Mindware Education Editora, São Paulo, 2003, 1a edição; 2019, 2021, 2a edição; ambas as edições, hoje, no formato de ebook Kindle).

[3]    Discourse on the Method (Discurso sobre o Método), in The Philosophical Works of Descartes, Translated by Elizabeth S. Haldane and G. R. T. Ross (Cambridge University Press, Cambridge, 1969), vol. I, pp. 84,86; cp. p. 90.

[4]    Cp. Frederick Copleston, S.J., A History of Philosophy, Volume IV, Modern Philosophy: Descartes to Leibniz (Doubleday & Company, Garden City, 1960, 1963), p. 74.

[5]    Copleston, op.cit., p. 75, 85, 89.

[6]    Cp. Bruce Aune, Rationalism, Empiricism, and Pragmatism: An Introduction (Random House, New York, 1970), p. 8.  Cp. também Norman Kemp Smith, Studies in Cartesian Philosophy (Macmillan Press, London, 1902), p. 27.

[7]    Cp. Aune, op.cit., pp. 7-8.

[8]    Cp. Anthony Kenny, Descartes: A Study of His Philosophy (Random House, New York, 1968), p. 14.

[9]    Meditations (Meditações), in The Philosophical Works of Descartes, Translated by Elizabeth S. Haldane and G. R. T. Ross (Cambridge University Press, Cambridge, 1969), vol. I, Meditation I, pp. 144-45. Cp também, Aune, op.cit., pp. 8-9.

[10]   Cp. Aune, op.cit., p. 10.

[11]   Idem, Ibid.

[12]   Discurso sobre o Método, IV, op.cit., pp. 100-101. Cp. também, acerca dessa passagem, Bernard Williams, Descartes: The Project of Pure Inquiry (Penguin Books, London, 1978), pp.34-35.

[13]    Meditações I, op.cit., p.145.

[14]   Discurso sobre o Método, op.cit., VI, pp. 100-101. Cp. também Williams, op.cit., p. 35. Nenhum exemplo de enganos dos sentidos é fornecido na primeira Meditação. No Discurso e na sexta Meditação, porém, Descartes menciona uma série de exemplos bastante conhecidos e sempre invocados na literatura cética: uma torre quadrada parece redonda à distância, estátuas altas parecem pequenas à distância, estrelas distantes parecem muito menores do que são, pessoas que tiverem membros amputados ainda sentem dor no lugar em que os membros não mais se encontram. Registre-se que os exemplos dados por Descartes envolvem o que geralmente veio a ser chamado (a partir de Locke) qualidades secundárias, e não as qualidades primárias, que também Descartes acreditava existir apenas na mente. Cp. Kenny, op.cit., pp. 25-28.

[15]   Meditações, op.cit. I, pp. 145-146; cp. Aune, op.cit., pp. 9-10.

[16]   Cp. Kenny, op.cit., pp. 29ff.

[17]   Na verdade, Descartes nega que é uma experiência sensorial que corrige a outra: ele afcitirma que é o intelecto, com base em outras impressões sensoriais, que faz a correção. Ao enfiar um pauzinho na água, percebo, pelo meu sentido de visão, que o pauzinho fica torto. Meu sentido de tato, contudo, mostra que o pauzinho não está torto. Só os sentidos não me permitem adjudicar entre essas impressões sensoriais conflitantes. É o intelecto que me leva, em um caso como este, a optar pela impressão que foi produzida pelo tato. Cp. Kenny, op.cit., pp. 25-26.

[18]   Meditações, op.cit., Vol. I, Meditation I, p. 147. Cp. Kenny, op.cit., p. 16.

[19]   Principles of Philosophy, in The Philosophical Works of Descartes, translated by Elizabeth S. Haldane and G. R. T. Ross (Cambridge University Press, Cambridge, 1969), vol. I, Principle V, p. 220. Cp. Kenny, op.cit., p. 17.

[20]    Cp. Kenny, op.cit., p. 35.

[21]   Alguns críticos de Descartes têm apontado que Descartes não precisaria da hipótese do gênio maligno para colocar em dúvida enunciados matemáticos. Bastaria que ele invocasse a possibilidade de que, em sonho, tenhamos uma apreensão clara e distinta de que (por exemplo) dois e três são seis. Descartes procurou rebater esse argumento afirmando que, num caso como esse, o sonhador apenas pensaria estar tendo uma apreensão clara e distinta, mas que na verdade não a estaria tendo. Mas essa resposta é inadequada, no contexto, porque ela poderia ser aplicada também a percepções sensoriais. Por que não afirmar, em relação à pessoa que em sonho percebe estar ao lado da lareira, etc., que ela apenas pensa estar percebendo, mas na realidade não está? O argumento do sonho, como bem aponta Kenny (op.cit., pp. 33-34), ou é insuficiente para questionar percepções presentes, ou então é suficiente para questionar também a matemática (dispensando a hipótese do gênio maligno).

[22]   Meditações, op.cit., Vol. I, Meditation I, pp. 148-149, 101; Cp. Aune, op.cit., pp. 10-11; cp. Kenny, op.cit., p. 18).  Erro em relação a enunciados matemáticos e à percepção parece ser tão difícil que nada menos do que um ser onipotente precisa ser necessário para perpetrá-lo. Cp. Kenny, op.cit., p. 34.

[23]   Muitos autores têm apontado que a dúvida de Descartes não foi tão radical quanto ele pretende. Se ele acreditava que os sentidos o haviam enganado algumas vezes, ou que os matemáticos às vezes erram em seus raciocínios, então ele deve estar confiando em sua memória, ou na experiência subsequente de constatar os erros. Talvez, para sair dessa constatação, ele pudesse dizer que está apenas invocando relatos contraditórios acerca de experiências sensoriais ou de cálculos matemáticos. Mas mesmo assim, ele continuaria não colocando em dúvida o princípio da não-contradição, que afirma que contraditórios não podem ser ambos verdadeiros. Esse princípio Descartes não questiona nem mesmo com a hipótese do gênio maligno, e Descartes parece ter acreditado que era impossível duvidar dele. Descartes também não duvida de que ele conhece o sentido das palavras que ele usa, que ele sabe o que é pensamento, certeza, dúvida, verdade, existência (Cp. Principles of Philosophy, op.cit., I, Principle X, p. 222; cp. também Kenny, op.cit., pp. 20-21, 26-27, 50). Leibniz reclama que Descartes deveria ter fornecido critérios de clareza e distinção se realmente pretendia que esses conceitos servissem como marcas da verdade. Cp. também Alan Gewirth, “Clearness and Distincness in Descartes”, in Descartes: A Collection of Critical Essays, edited by Willis Doney (Doubleday & Co., Garden City, 1967), pp.  251 e seguintes; Cp. também Popkin, op.cit., p. 205.

[24]   Quando me refiro ao “Cogito“, entre aspas, como no título da presente seção, refiro-me a todo o argumento que culmina na expressão “Cogito, ergo sum“.

[25]   É questionável, como se verá adiante, que o que aqui se apresenta seja um argumento dedutivo (o que Descartes chama de um “silogismo”), no sentido estrito da expressão. Se fosse, estaria faltando a premissa maior, a saber: “Se penso, existo” — que exprime a idéia de que, para pensar, é preciso existir. Descartes reconhece isso e considera essa premissa tão óbvia a ponto de dispensar explicitação. Cf Kenny, 50ff.

[26]   Discurso sobre o Método, op.cit., p. 101. Cp. also Kenny, op.cit., p. 40.

[27]   Meditações, op.cit., Meditação II, pp.151-152. Cp. também Aune, op.cit., p. 12. Cp. também o artigo “Descartes’ Proof that his Essence is Thinking”, in Doney, op.cit., pp. 312-337.

[28]   Cp. Aune, op.cit., pp. 12-13. Cp. também Alan Gewirth,”Clearness and Distinctness in Descartes”, in Doney, op.cit., pp. 250 e seguintes. Para que clareza e distinção fossem critérios de verdade certa seria necessário que tivéssemos critérios claros e distintos de clareza e distinção, algo que não temos.

[29]   Meditações, op.cit. Meditation III, p. 158.

[30]   Rules for the Direction of the Mind (Regras para a Direção da Mente), in The Philosophical Works of Descartes, translated by Elizabeth S. Haldane and G. R. T. Ross (Cambridge University Press, Cambridge, 1969), vol. I, Rule III, p.7.

[31]   Reply to Objections (Resposta a Objeções), in The Philosophical Works of Descartes, translated by Elizabeth S. Haldane and G. R. T. Ross (Cambridge University Press, Cambridge, 1969), vol. II, Reply II, p. 38. Cp. Kenny, op.cit., p. 41, pp. 51 e seguintes. O “ato de visão mental”, no caso, não é do fato de que ele existe, mas do fato de que, em pensando (ao pensar), ele sabe que existe. Nem é legítimo afirmar que Descartes reivindica ser possível intuir sua existência. O objeto da intuição é a inferência de que ele existe a partir do dado de que ele pensa, embora nas Regulae Descartes afirme que é possível intuir a existência, sem referência ao pensamento. Mas as Regulae foram escritas antes das formulações mais cuidadosas do “Cogito” ( Cp. Kenny, op.cit., pp. 51-55).

[32]    Cp. Aune, op.cit., p. 16, e Kenny, op.cit., p. 55.

[33]   Obviamente, ao usar o termo “prova”, mesmo sem aspas, não estou pré-julgando a validade dos argumentos de Descartes. O uso do termo com aspas, ou qualificado por “suposta”, “pretensa”, etc., tornaria o texto por demais pesado. Por isso prefiro usar a terminologia que Descartes, que sem dúvida estava convencido da validade de seus argumentos, utilizou.

[34]   Cp. Doney, op.cit., pp. 213 e seguintes.

[35]   Discurso sobre o Método, op.cit., Part IV, p. 101. Cp. Kenny, op.cit., p. 40.

[36]   Discurso sobre o Método, op.cit., Part IV, pp. 101-102.

[37]   Meditações, op.cit., Meditation III, pp.157-158.

[38]   Meditações, op.cit., Meditation III, p.159.

[39]   Meditations, op.cit., Meditation V, p.184.

[40]   Meditations, op.cit., Meditation V, p.185.

[41]   Cp. David Kelly, The Evidence of the Senses: A Realist Theory of Perception (Louisiana State University Press, Baton Rouge, 1986), p. 10.

[42]   Cp. David Kelly, op.cit., p. 11.

[43]   Cp. David Kelly, op.cit., p. 11.

[44]   Cp. David Kelly, op.cit., p. 11.

[45]   Cp. David Kelly, op.cit., p. 12.



Categories: Liberalism

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