Novamente o Conceito de Parentesco: Quem é “Mãe” ou “Pai” no Mundo de Hoje?

Sempre foi possível ter vários irmãos, tios, primos, avós em stricto sensu.  Para os chamados progressistas esclareço desde já que continuo a usar esses conceitos, quando os termos que se referem a eles estão no plural, em seu sentido inclusivo, que abrange tanto o sexo masculino como o feminino. Tradicionalmente, quando as famílias eram relativamente grandes, os casais (ou, pelo menos alguns deles) tinham muitos filhos, não raro mais de dez. Assim, uma pessoa qualquer poderia ter uma dúzia de irmãos, um número maior do que esse de tios, e algumas pencas repletas de primos.

Mas as pessoas tinham apenas quatro avós, dois paternos (avô e avó) e dois maternos (novamente, avô e avó) e somente era possível ter um casal de pais – isto é, dois pais, um do sexo masculino, o pai, propriamente dito, e outro do sexo feminino, a mãe (em relação à qual não era preciso dizer-se “propriamente dita”). Fora disso, só era possível ter pais adotivos (pai adotivo e/ou mãe adotiva).

[NOTA 1: Os filhos (homem ou mulher) dos pais que os adotaram eram também chamados de adotivos (filhos adotivos) – sendo também usada a expressão filhos de criação (para filhos de ambos os sexos que não eram filhos biológicos, ou filhos de sangue” — seja de um casal, seja apenas de um pai ou de uma mãe. A adoção, no caso, se feita em juízo, era legal, podendo envolver até a assunção, pelos filhos adotados, dos sobrenomes paternos. Se a adoção fosse oficiosa, às vezes se usava ainda o termo adoção, mas era mais comum usar a expressão filho de criação.

[NOTA 2: Com a aprovação do divórcio no Brasil em 1977 (não faz 50 anos ainda), e a permissão, primeiro, de UM novo casamento, depois de quantos novos casamentos fossem desejados) surgiu a figura formal do padrasto (o novo marido da mãe) e da madrasta (a nova mulher do pai), bem como apareceram com certa frequência o enteado e a enteada (os filhos do novo marido da mulher ou os filhos da nova mulher do marido.]

[NOTA 3: Embora quem tenha o mesmo pai ou a mesma mãe que outra pessoa, mas não filho do outro cônjuge, usa-se a expressão meio-irmão. Mas não se inventou ainda um termo que descreva a relação de parentesco dos filhos de casamentos anteriores dos cônjuges entre si. Por exemplo, qual é o parentesco entre os filhos de casamento anterior de um cônjuge com os filhos de casamento anterior de outro cônjuge. Na prática, eles se chamam de irmãos (se o relacionamento entre eles é bom), mas, biologicamente eles não têm relação alguma. Mas, hoje em dia, parentesco é algo muito mais sociocultural do que biológico.]

Na verdade, hoje em dia, tudo está mudado. As mudanças começaram a aparecer com a fertilização in vitro, que produziu bebês de proveta. Nesse caso, retirava-se do ovário de uma mulher um óvulo (gameta feminino) pronto para ser fertilizado por meios naturais e ele era unido, ou misturado, ou mixado com um espermatozóide (gameta masculino) recolhido (por meios mais ou menos naturais) de um homem, formando um ovo (zigoto). Originalmente pressupunha-se, com certa naturalidade, que a mulher e o homem fossem casados (entre si, i.e., um com o outro, não com terceiros. Em um caso assim, o bebê de proveta nascido teria exatamente a mesma mãe e o mesmo pai que teria tido fosse o processo natural rigorosamente mantido. Esse procedimento razoavelmente rígido em seus controles éticos, exigia que a mulher produzisse seus óvulos e o homem, seus espermatozóides, para que o bebê de proveta fossem produzido.

Mas feita a fertilização in vitro, para onde vai o produto da fertilização, o ovo (zigoto)? Se a mulher que cedeu o óvulo não tiver problema para levar uma gravidez a termo, implanta-se o ovo, ou seja, o óvulo fertilizado, ou o produto mixado do gameta feminino e do masculino, no útero da mulher que o produziu.

Mas o ser humano não se contenta com pouco…

E se a mulher que cedeu o óvulo (que é casada com o homem que gentilmente cedeu seu espermatozóide) não for capaz de levar a gravidez a termo? É possível implantar o óvulo fertilizado, o ovo (zigoto), o produto mixado, no útero de uma outra mulher? Sim, por que não? Ressalvadas, naturalmente, as eventuais questões morais. Assim nascia a figura da chamada “barriga de aluguel”. (Mais será dito sobre o conceito de aluguel, adiante).

E se o homem, o marido da mulher, que deveria ceder o espermatozóide, for estéril? É possível usar um espermatozoide de um outro homem? Sim, por que não? Ressalvadas, naturalmente, mais uma vez, as eventuais questões morais. Assim nascia a figura do cedente de esperma (nesse caso, não é possível falar em aluguel).

E quais seriam as possíveis questões morais? A primeira questão levantada é se esse procedimento de ceder, para terceiros, o uso da barriga, por um tempo fixo, ou de ceder, para terceiros, uma porção do esperma definitivamente, é um procedimento comercial, que envolve pagamento em dinheiro ou em algum outro meio?

No Brasil foi usada, no caso da mulher, a expressão (que foi até título de novela) barriga de aluguel. Alugar alguma coisa, ainda que seja o próprio útero, e por tempo limitado, parece ser um procedimento comercial, que deve ser devidamente remunerado. Mas isso é certo? E se houver concorrência, várias mulheres oferecendo o próprio útero para hospedar o óvulo fertilizado, cada uma por um preço menor? Poderia haver uma liquidação? Alugar o útero na Black Friday envolveria desconto? Poderia haver um leilão? Deveria haver o uso de critérios médicos, que levassem os pais do futuro embrião a escolher a mulher mais sadia? A mulher não precisa ser bonita, porque ela será apenas uma chocadeira – mas mesmo uma chocadeira deve estar funcionando bem – isto é, ser sadia, sem defeitos que afetem o serviço a ser prestado…

Mas, no caso de um terceiro que cede seu esperma, ele não será apenas alguém que, em relação à futura criança, aquela que vai nascer quando terminar a gestação (seja lá em que útero for), fez um favorzinho (ainda que não remunerado) no processo de gestação. Ele será o pai da criança – o pai biológico da criança! Segundo alguns, o pai biológico é o pai mais pai que há… Neste caso, o marido da mulher, ele, que era estéril, será o que da criança? Pai de criação? Padrasto? Pai do filho do outro?

Vemos que as coisas começam a ficar complicadas. . .

Mas elas podem se tornar ainda mais complicadas.

Até aqui se pressupôs que o casal envolvido é um casal convencional, uma mulher e um homem, casados entre si. Mas essa pressuposição não precisa ser necessariamente aceita. Imaginemos que uma mulher solteira, digamos que maior de idade (para evitar mais problemas), não queira se casar, mas queira ter um filho dela mesma. Ela pode simplesmente se dirigir a uma clínica que trata desses assuntos e dizer que quer se engravidar, mas não tem o esperma em mãos (?), e que quer comprar um pouco desse produto. É possível? Quanto fica? O valor pode ser parcelado? É possível ver a ficha do potencial produtor do esperma a ser adquirido? Qual era a sua idade quando o esperma foi, digamos, colhido? Qual a sua altura? O seu peso? A cor da sua pele? A cor dos seus olhos? O formato e a cor dos seus cabelos? Ele tem uma ficha de saúde sem nenhum detalhe que possa desaboná-la? E, “last but not least”, o cedente era (é?) inteligente e rico?  Qual é o seu QI e o seu patrimônio?

Einstein, se fosse vivo e não fosse ainda rico, teria aqui a receita de uma riqueza garantida, até que seu produto rareasse ou perdesse a qualidade… Tenho certeza de que Elon Musk sabe disso. Rapaz novo, inteligente e comprovadamente rico (só o mai rico do mundo, hoje)…

Um outro detalhe curioso… Que quantidade de esperma é transacionada em um caso assim? Uma gota basta? Ou será preciso uma colher de café? De chá? De sobremesa? De sopa? Para o cedente, imagino, seria importante que a quantidade fosse a mínima, para que o material pudesse ser dividido e repartido (particionado) entre várias possíveis recipientes ou beneficiárias… – vale dizer, compradoras no mercado livre de esperma (quase escrevi o termo chulo…). Quem lida com a reprodução de cavalos de puro sangue sabe bem disso…

Mas a mulher solteira que quer ter um filho pode não querer carregar o embrião durante nove meses – afinal de contas, o corpo da mulher gestante fica meio deformado. Pode ela alugar uma barriga para hospedar seu óvulo fertilizado pelo espermatozóide de um ricaço inteligente, alto, forte e bonito? E se se descobrir que essa mulher solteira tem óvulos defeituosos, que não podem ser fertilizados? Pode ela, se tiver dinheiro, naturalmente, encomendar um óvulo de alguém que tem um corpo bem feito e uma inteligência bem acima da média e uma colher de esperma de alguém que tem a aparência física de um Brad Pitt e a inteligência de um Einstein? Os cedentes ficariam no anonimato e a mulher solteira prevista neste parágrafo seria mãe de um filho em de produção e gestação ela não teria tido nenhuma participação (exceto a financeira), e cujo pai seria um ilustre desconhecido? Quem essa criança vai chamar de pai? E se sua mãe viver em união estável, ou em estado equivalente ao de casamento, com alguém do mesmo sexo, e ambas tiverem dividido os custos financeiros “fifty-fifty”, elas negociam se as duas vão ser mães da criança, ou se uma vai ser mãe e a outra, pai, ou vice-versa? E se as duas lésbicas forem, além de tudo, trans? Como é que fica a coisa?

Os cagadores de regras insistem que, se chegarmos a esse ponto (na realidade, já chegamos), os cedentes (de óvulos, de útero e de esperma), precisam ser parentes até o terceiro grau de quem está recebendo ou se beneficiando do produto ou serviço que os cedentes resolveram colocar no mercado, por um preço, e os recipientes ou beneficiários resolveram comprar, pagando o preço pedido ou avençado no início.

Caminho para o fim…

Filhos de amigos que considero tão irmãos meus como os meus irmãos biológicos me chamam de tio. Sou-lhes grato. Considero minhas quatro filhas como iguais, em status filial, embora duas sejam filhas biológicas minhas e duas sejam, stricto sensu, enteadas. Chamo as quatro de filhas, sem fazer distinções, exceto quando isso é legalmente necessário.

Comecei a pensar neste assunto hoje quanto li na revista Christianity Today, edição de Dezembro, um artigo sobre quem seria o pai de Jesus, em um sentido literal (não teológico). Não foi o primeiro artigo que li sobre o assunto, nem de longe. Bart Ehrman tem escrito e palestrado bastante sobre esse conjunto de questões. Parece-me que, exceto entre cristãos fundamentalistas e cristãos conservadores mais inclinados para o fundamentalismo do que para o liberalismo teológico, a tendência de teólogos, estudiosos do Novo Testamento, e historiadores é considerar José, que foi, primeiro noivo, depois marido de Maria como também o pai biológico de Jesus, e não apenas como aquele que o criou (que seria, em minha opinião, o pai real, o pai de verdade, o pai verdadeiro). O Novo Testamento chama José, com todas as letras, de pai de Jesus.

Em tom mais deprimente, tenho ficado estarrecido com o nível de algumas discussões desse último tema. Por exemplo… Para que Maria engravidasse, um óvulo seu teria de ter sido fertilizado por um espermatozóide. Se esse não veio de José, veio de onde? Será que o Espírito Santo trouxe um espermatozóide para fertilizar o óvulo de Maria? Se trouxe, de onde ele veio, qual sua fonte? Se não trouxe, como se deu a fertilização do óvulo de Maria? Ele teria se auto-fertilizado por milagre?

Mais ridículos ainda são os que, a despeito do que o Novo Testamento taxativamente diz, chamam os irmãos de Jesus de “meios-irmãos”… Alguns católicos, para não ficar atrás no ridículo, os chamam de “primos” (lato sensu) de Jesus, afirmando que José, que aparentemente era bem mais velho do que Maria, teria sido casado anteriormente (e ficado viúvo, imagino), quem sabe como uma parente de Maria (seria uma irmã mais velha?), sendo aqueles que o Novo Testamento chama de irmãos de Jesus na realidade seus meios-irmãos, ou até mesmo verdadeiramente primos seus, dependendo de quem tenha sido a primeira mulher de José.

É isso. Se o assunto, e/ou meu tratamento dele, ofender alguém, peço desculpas. Não foi minha intenção ofender ninguém.

Em Salto, 2 de Dezembro de 2023.



Categories: Liberalism

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