Convenhamos: pouca gente recorre ao liberalismo teológico se não passa a enfrentar dificuldades para manter sua fé em Deus, ou para manter intatas suas outras crenças religiosas, quando essa fé e essas crenças são interpretadas em um sentido literal (o sentido que parece evidente à primeira vista: se está escrito que a mula de Balaão falou, ou que Josué fez o Sol parar em sua trajetória, então a mula falou e o Sol parou).
Quem acredita que Deus é um ser pessoal, que conta os fios de cabelo da cabeça de cada pessoa que existe (ou pelo menos daquelas que acreditam nele), e não deixa que nenhum dos fios caia sem que ele, não só saiba que o fio vai cair, mas queira, decida e determine que caia… – quem acredita piamente nisso, em um sentido literal, dificilmente vira um crente liberal, pois não tem por que fazer isso.
Quem acredita que Deus, vivendo lá (lá onde?) antes do princípio dos tempos, em que não havia absolutamente nada, a não ser ele, que era (e continua a ser) eterno, resolveu criar o mundo, e foi criando as coisas, até finalmente criar o homem, Adão, a partir de um boneco de barro que ele próprio construiu, e, depois, a mulher, Eva, a partir de uma costela do homem, e colocou os dois num jardim chamado Éden… — quem acredita nisso, em um sentido literal, dificilmente vira liberal, pois não tem por que fazer isso.
Quem ainda acredita
a. que o mundo que Deus criou tem, além de nós, humanos, descendentes de Adão e Eva, seres espirituais de vários matizes (anjos bons) e seres maus (anjos caídos ou espíritos que se corromperam), estes capitaneados por um líder, Lucifer, que é o maior inimigo de Deus, cujo nome mais conhecido, Diabo, muita gente nem ousa mencionar;
b. que esse mundo que nós e esses seres habitamos é composto de, digamos, três pavimentos: um pavimento intermediário, que é o nosso habitat, a Terra, plana de tudo, um pavimento superior, em cima, o Céu, onde estão os anjos e os demais espíritos bons, e um pavimento inferior, o Inferno, cujo nome muita gente nem gosta de mencionar, onde estão os anjos caídos e os seus líderes;
c. e que, quando a gente morre, a alma da gente, ou algo equivalente (espírito?), vai para o andar de cima ou para o andar de baixo, ou fica planando em algum outro lugar misterioso, um limbo ou um purgatório, esperando o fim do mundo, quando haverá a ressurreição dos corpos que já morreram, que serão reunidos com suas almas (ou espíritos) e seremos julgados…
— quem acredita nisso tudo, em um sentido literal, dificilmente vira liberal, pois não tem por que fazer isso.
Por outro lado, quem, por alguma razão qualquer, que não vem ao caso agora, não consegue acreditar nessas coisas, interpretadas assim literalmente, das duas uma: ou vira ateu de uma vez, ou vira um crente liberal — deixa de ser um crente do tipo conservador ou fundamentalista, aquele que acredita em todas essas coisas literalmente.
(Parêntese: um fundamentalista é um conservador mais radical, mais irredutível e dogmático em suas crenças; que tem certeza de que está com a verdade; que acha que quem discorda dele está simples e redondamente errado; que está convicto de que o erro não deve ser tolerado por quem não tem dúvida de que está de posse da verdade, como ele próprio; que está certo, portanto, de que quem está de posse da verdade, como ele próprio, não deve congregar na mesma igreja com quem está errado, e nem mesmo deve conviver com ele fora da igreja, e que, portanto… – fim do parêntese.)
O crente liberal se dispõe de alguma forma a manter a sua fé e suas crenças religiosas, mas interpretá-las de alguma forma não literal, quem sabe em uma linha liberal, e ele faz isso, em geral, para não se sentir um ser dividido, meio esquizofrênico, que, de um lado, quando necessário, usa antibióticos e antidepressivos, se submete a exames de tomografia computadorizada e de ressonância magnética, faz terapia cognitiva, baseada em psicologia positiva, mas que, do outro lado, continua a acreditar, ao mesmo tempo, que está vivendo, aqui nesta Terra plana, uma batalha espiritual em que seres invisíveis batalham por sua alma (ou espírito) e tentam possuí-la(o) e habitar no seu corpo, que é preciso de alguma forma ficar do lado dos espíritos do bem e exorcizar, de alguma maneira, mais ou menos escandalosa, os maus espíritos, e… etc. – não é preciso completar.
A gênese do liberalismo teológico está aí nesse dilema. Quem não tem dúvidas, quem não tem dificuldades com sua fé e com suas crenças religiosas, não sente a mínima atração pelo liberalismo teológico – na verdade, nem compreende como alguma outra pessoa possa se sentir atraído por essa postura teológica que, no seu modo de ver as coisas, não leva a sério a Bíblia, a Palavra infalível e inerrante de Deus, não aceita (se for presbiteriano) a Confissão de Fé e os Catecismos de Westminster em sua interpretação “natural” (vale dizer, literal), etc.
Ninguém (ou assim me parecem as coisas) é liberal, ou mesmo ateu, porque é de coração ruim ou cabeça dura. A maioria de nós nasceu em lares de pessoas que creem (ou criam) em Deus e levam (ou levavam) sua religião muito a sério. Por que alguns continuam a crer sem dificuldade e outros passam a ter dúvidas e, em um dado momento, descobrem que estão tendo dificuldades com sua fé em Deus e suas demais crenças religiosas, enfrentando dúvidas, percebendo que não acreditam mais em coisas que, um tempo atrás, não tinham dificuldade para aceitar? Será predestinação? Será que Deus predestinou alguns de nós para crer e outros para ter dúvidas, para virar liberais, ou, até mesmo, para descrer de uma vez? Mas se é predestinação, e as decisões divinas são irresistíveis e inelutáveis, o que é que se pode fazer?
Acreditar em algo em geral não é o tipo de coisa sobre que a gente tem total controle. Talvez tenhamos algum controle – o de não nos expormos a ambientes em que nossa fé e nossas crenças são questionadas e, assim, possam vir a correr risco. Mas não mais do que isso.
Consta (li isso em uma biografia dele que tenho) que Billy Graham era, em seu tempo de juventude, muito amigo de um rapaz que foi estudar em um seminário bem mais liberal do que aquele em que ele próprio, Billy Graham, estava estudando. Quando se encontravam, o seu amigo lhe contava o que havia lido, o que seus professores diziam em sala de aula, etc. Um dia seu amigo lhe confessou, em confiança, que estava perdendo a fé. Pelo relato, Billy Graham lhe disse algo assim: Então vamos fazer um trato. Se vamos continuar amigos, você não me conta mais nada sobre suas leituras, sobre suas aulas, sobre suas dúvidas, porque eu não quero perder a minha fé também, como você está perdendo a sua. Só conversaremos sobre outros assuntos. E, assim, Billy Graham não perdeu a sua fé.
Mas há quem ache que isso parece ser uma fuga do livre exame das ideias com que somos confrontados, quiçá da verdade, e, talvez, implique até mesmo alguma desonestidade. Como a de Richard Nixon, que, como também consta, dizia a seus auxiliares para não lhe contarem certas coisas porque ele queria poder dizer, sincera e honestamente, que nada sabia acerca delas – queria ter condições de “negabilidade”, se e quando perguntado…
É forçoso reconhecer que o crente liberal (teologicamente falando) também fica meio dividido. Ele não consegue acreditar em um monte de supostos fatos e doutrinas que a maioria dos crentes que não se acha liberal acredita. Estes, os crentes não liberais, os conservadores e fundamentalistas, não raro acham que o crente liberal na realidade é um quinta-coluna, um agente do coisa ruim que só está ali na igreja para semear cizânia e subverter a fé dos demais… Assim, o crente liberal acaba ficando meio deslocado, quando não um pária, dentro da sua própria igreja. Alguns dentre os demais crentes têm até medo de ficarem muito amigos dele – pode pegar mal, os outros podem achar que também eles estão virando liberais… No fundo, para esses crentes não liberais, crente é crente, e “crente liberal” não existe – crente liberal é um descrente que perdeu o nervo e não quer admitir a sua descrença, porque, no fundo, gosta do ambiente da igreja, dos amigos que ali lhe restam, dos hinos que o acompanham desde a infância…
Isso pode levar o crente liberal à seguinte consideração: será que vale a pena, em um ambiente eclesial predominantemente conservador e mesmo fundamentalista, ser um crente liberal, um crente que se dispõe a encontrar novas interpretações, não literais, para as crenças tradicionais, interpretações que o tornem menos dividido e esquizofrênico, ou é melhor se declarar ateu de uma vez e tirar o time do campo religioso? Ou, pelo menos, procurar uma igreja de liberais, se é que existe uma fora dos limites da PC(USA)?
O crente liberal me faz lembrar de Rudolf Bultmann, na minha opinião o maior teólogo do século 20. Mas um liberal. Apesar de ser o maior teólogo do seu tempo, na igreja de que ele era membro (sem ser pastor) a única coisa que lhe sobrou fazer foi tirar a coleta. E ele aceitou fazer isso – dizem que até com certo orgulho.
Quando Bultmann completou 80 anos, foi homenageado com um Festschrift, um livro em que 45 teólogos, a maior parte ex-alunos dele, explicou como seu desenvolvimento teológico dependeu dele e quanto ele contribuiu para esse desenvolvimento. Ele agradeceu citando dois versículos bíblicos:
“Eu, teu servo, não mereço toda a bondade e fidelidade com que me tens tratado!” (Gen 32:10a)
“Quem é que fez você superior aos outros? Por acaso não foi Deus que lhe deu tudo o que você tem? Então por que é que você fica todo orgulhoso, como se o que você tem não fosse dado por Deus?” (I Cor 4:7)
Maior humildade eu nunca vi.
[Referência retirada de Konrad Hammann, Rudolf Bultmann: A Biography (Polebridge Press, Salem OR, 2013), Loc 11710 Kindle Edition. Cito a Bíblia segundo a NTLH. ]
Em Salto, 25 de Janeiro de 2020 (Dia do Aniversário de São Paulo). Levemente revisado no dia seguinte, 26.1.2020. Pequenas correções feitas em 9.4.2020.
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