Ainda o “Crente Liberal”

Ainda o “Crente Liberal”:

Uma Explicação Básica da Diferença entre Cristãos Tradicionais e Cristãos Liberais

[NOTA: Este artigo dá continuidade ao meu artigo “O ‘Crente Liberal'”, publicado anteriormente neste blog (o artigo imediatamente anterior), embora este artigo, em sua primeira versão, tenha sido escrito antes, em 1 de Agosto de 2018.]

Cristãos, tanto tradicionais como liberais, em geral se congregam em igrejas, nas quais mantêm relacionamentos interpessoais razoavelmente profundos uns com os outros, que lhes permitem chamar-se de “irmãos”. Eles vivem, para usar um termo favorito deles, “em comunhão” uns com os outros. Admitidamente, essa comunhão é tão mais fácil quanto mais semelhantes entre si sejam os cristãos. Assim, cristãos tradicionais têm, em regra, mais ou melhor comunhão com outros cristãos tradicionais, e cristãos liberais, com outros cristãos liberais.

Em um país dito cristão, como o Brasil, que já foi considerado o maior país católico do mundo, há dois tipos de atividade dos cristãos:

a) as atividade de culto e assemelhadas, dentro da igreja; e

b) as atividades de evangelização e ação social, fora da igreja, “no mundo”.

Das atividades de culto participam, em geral, pessoas que já são cristãs. As atividades de evangelização são destinadas aos ainda não-cristãos e têm o objetivo de convertê-los ao Cristianismo. As atividades de ação social externas (fora da igreja) são destinadas, em regra, aos ainda não-cristãos, mas sua finalidade imediata não é evangelizá-los: é ajudar que consigam melhorar as condições de sua vida. Se vierem a se converter, em decorrência dessa ação social, tanto melhor, pensam os que realização essas ações.

(Vou chamar os não-cristãos de “gentios”, da mesma forma que os judeus chamavam, acho que ainda chamam, os não-judeus de gentios, ou goim. Mas também considero aceitável o termo “pagão” para designar o não-cristão. Em tempos idos, cristãos protestantes tradicionais não consideravam os católicos como cristãos. E vice-versa. Ainda hoje há muitos cristãos tradicionais protestantes que não consideram os adventistas, os mórmons, os testemunhas de Jeová, os “moonies”, etc., como cristãos. Acho isso triste e lamentável)

Quando os cristãos tradicionais pregam a sua mensagem – o que chamam de Evangelho – aos gentios ou pagãos, o que eles esperam daqueles a quem eles pregam?

A resposta provável é que eles esperam que os gentios ou pagãos aceitem a mensagem, acreditem que ela é verdadeira, tenham fé nessa mensagem, confiando que ela irá salvá-los, na vida futura, e melhorar as condições de sua vida, já aqui nesta vida.

Como a mensagem dos cristãos tradicionais tem que ver com a pessoa de Jesus de Nazaré, objeto principal das histórias e das cartas do Novo Testamento, principalmente as de Paulo, ela envolve e demanda a aceitação, mediante a fé, de uma ou mais das seguintes afirmações: que Jesus é o Cristo (i.e., o Messias que os judeus esperavam), que Jesus é o Senhor, que Jesus é o Filho de Deus, que a morte de Jesus na cruz e sua posterior ressurreição (segundo o Novo Testamento) são parte do plano de Deus para não só nos perdoar os pecados, mas também nos “salvar”, que salvar, no caso, é livrar da condenação eterna no inferno e implica ganhar vida eterna no céu depois que a gente morrer, etc.

Os cristãos teologicamente liberais, influenciados pelas ideias iluministas, e em especial pelo chamado Deísmo do século 18, surgiram a partir do século 19. Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher, considerado o pai da teologia liberal, viveu de 1768 a 1834, ou seja, 32 anos no século 18 e 34, no século 19.

A essência do liberalismo teológico é o questionamento – alguns dirão: a rejeição total – do supernaturalismo, isto é, da tese de que existe, além do plano natural em que vivemos, um plano sobrenatural. Os teólogos liberais, em regra, tendem a aceitar a ideia de que “deus” é um nome que damos àquilo que de certo modo é responsável pela existência do mundo natural e que explica, em última instância, os processos naturais, mas que “deus” é imanente ao mundo e aos processos naturais, não os “transcendendo” (i.e., não estando acima ou além ou fora deles).

Consequentemente, boa parte da mensagem que os cristãos tradicionais pregam aos gentios é inaceitável para os cristãos liberais: as ideias de que a morte de Jesus tem poder de perdoar pecados e assegurar a vida eterna do crente no céu, de que isso é garantido pelo milagre da ressurreição dentre os mortos de Jesus de Nazaré, de que, depois de ressurreto, Jesus teria ascendido aos céus, onde está, até hoje, sentado à mão direita de Deus,  de onde há de voltar um dia para julgar os vivos e os mortos (que, na ocasião, serão também ressuscitados), sendo os aprovados levados para viver eternamente no céu e os condenados enviados para o fogo eterno do inferno, etc.

Mas se os cristãos liberais rejeitam tudo isso, que é considerado o “cerne” da mensagem do evangelho pelos cristãos tradicionais, porque eles se dão ao trabalho de ainda se considerarem cristãos, de frequentarem igrejas, de trabalhar em seminários onde dão aulas de teologia (em geral de história da igreja, disciplina menos controvertida) e brigam com os cristãos tradicionais, etc.? A resposta está na pessoa humana de Jesus de Nazaré, a quem os cristãos liberais em geral respeitam, e cuja mensagem, desvestida de sua roupagem sobrenatural, consideram o ponto alto do desenvolvimento intelectual e moral da humanidade. Os liberais, assim, distinguem com razoável precisão a mensagem de Jesus de Nazaré, que eles chamam de Cristianismo (ou Cristianismo Primitivo), da mensagem de Paulo e do restante do Novo Testamento, que eles chamam, variadamente, de “Paulinismo”, ou simplesmente “Catolicismo” (ou Cristianismo Católico), mesmo que não romano.

Essa mensagem de Jesus (para usar o resumo feito por Adolf von Harnack em seu livro Das Wesen des Christentums (A Essência do Cristianismo), que os liberais consideram o cerne do Cristianismo, no seu entendimento do termo, é, essencialmente, a seguinte:

  1. Todos os homens, vivos, já mortos e que vierem a nascer, são irmãos, isto é, parte de uma só família ou espécie animal, independentemente das diferenças externas, biológicas e culturais, que os caracterizem, porque “por dentro”, “na alma”, por assim dizer, são todos iguais;
  2. O relacionamento entre os homens, assim irmanados, deve ser pautado pelo amor, que é definido pela chamada “lei áurea”, que tem um lado negativo e um lado positivo, a saber: do lado negativo, não fazer aos outros o que não queremos que eles nos façam, e, do lado positivo, fazer aos outros o que queremos que eles nos façam;
  3. Se vivermos consistentemente assim, criaremos o Céu aqui na Terra, isto é, implantaremos aqui mesmo uma sociedade (um “reino”) em que o amor suplantará a lei e irá muito além da justiça (até mesmo da chamada “justiça social”, como definida pelos socialistas).

A versão liberal da mensagem cristã veio a ser rotulada, em especial pelos seus inimigos, os cristãos tradicionais, de “Evangelho Social”. Ela seria uma alternativa ao Socialismo de vertente ateia.

Na prática, tem se mostrado difícil a vida comum – até mesmo pacífica, quanto mais amorosa – entre cristãos que acreditam que o Céu é um lugar num outro plano, para onde alguns vão depois da morte, e entre cristãos que acreditam que o Céu é um lugar aqui mesmo na Terra, que nós vamos criar (estamos criando?) na medida em que seguirmos os ensinamentos morais e éticos de Jesus de Nazaré. Isso se dá porque, embora as crenças dos cristãos tradicionais sejam toleradas e, em grande medida, respeitadas pelos cristãos liberais, o oposto o mais das vezes não acontece: os cristãos tradicionais não admitem que os cristãos liberais sejam de fato cristãos, chamando-os de hereges que, na melhor das hipóteses, creem em uma religião diferente do Cristianismo (ainda que com alguns pontos de contato). Houve teólogos conservadores / fundamentalistas que consideraram o liberalismo teológico uma outra religião inteiramente, diferente da cristã.

É isso. Os crentes liberais se acham tanto, ou mais, no direito de se denominarem cristãos do que os crentes tradicionais, os paulinistas…

Em São Paulo, 1º de Agosto de 2018, revisado em 29 de Janeiro de 2020. Pequenas correções em 9.4.2020.

 



Categories: Liberalism, Liberalismo, Liberals

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