O Teólogo Liberal

Raros são os crentes liberais que, escolhendo se dedicar ao estudo da Teologia, optam pela Teologia Sistemática. A maior parte deles escolhe ou a Teologia Bíblica ou a Teologia Histórica (História da Igreja, ou, preferencialmente, História do Dogma, ou da Doutrina, ou simplesmente do Pensamento Cristão). Nenhum que eu conheço escolheu a chamada Teologia Prática ou Pastoral.

Há uma razão para isso que é fácil de entender.

De um Teólogo Sistemático se espera que ele diga o que pensa acerca de Deus, da Trindade (sua tripessoalidade e unidade, em uma só natureza, a divina, algo não mencionado, enquanto tal, na Bíblia, onde as palavras “Trindade” e “Triúno” nem sequer aparecem), de Jesus (sua natureza dupla, plenamente divina e plenamente humana, em uma só pessoa), do Espírito, sobre a concepção (miraculosa), o nascimento, o ministério, a morte, a ressurreição e a ascensão de Jesus (afirmadas no Novo Testamento), sobre as diferenças entre a mensagem de Jesus (que pregou a vinda do Messias e do Reino de Deus) e de Paulo (para quem Jesus era o Messias – o Cristo – que havia de vir, e que já veio, uma vez), etc. Não há como um Teólogo Sistemático possa evitar discutir essas questões e outras, quiçá mais difíceis, como a questão da Revelação, contida na Bíblia, a questão da Inspiração da Bíblia, a questão da Infalibilidade e da Inerrância da Bíblia, etc., dando sua opinião pessoal sobre todas elas.

De um Teólogo Bíblico, que em geral se divide em especializado no Velho ou no Novo Testamento, se espera que ele esclareça o que afirma aquela parte da Bíblia a que ele se dedica (Velho ou Novo Testamento. Ele depende da Crítica Textual (Baixa Crítica) e da chamada Alta Crítica (Crítica Literária e Histórica) para chegar às suas conclusões, que ele, em regra, procura sistematizar, indicando se, na sua opinião, a Teologia Bíblica é una ou plural, se (no caso do Novo Testamento) a Teologia dos Evangelhos Sinóticos difere da do Evangelho de João, se a Teologia dos Evangelhos difere da das Cartas Paulinas, se a das Cartas Paulinas difere da das Cartas Pastorais, se há elementos em Atos e em Apocalipse que facilitam ou dificultam a questão, etc. Em tudo isso, ele não precisa revelar sua opinião pessoal sobre Deus, Jesus Cristo, a vida futura, a vida sexual e matrimonial, etc. Ele só discorre sobre o que a Bíblia afirma (embora seja sempre “em sua opinião”).

De um Teólogo Histórico espera-se algo semelhante ao que se espera de um Teólogo Bíblico, só que o seu objeto de estudo não é mais a Bíblia e os eventos nela narrados, mas, sim, o que aconteceu e se escreveu no período pós-apostólico — período que em geral se acredita ter tido início de no último terço do primeiro século ou mesmo no segundo século. Acredita-se que Pedro e Paulo morreram em Roma no ano 66, por aí, durante as perseguições dos cristãos efetuadas pelo Imperador Nero, e que João teria morrido por volta do ano 100 em exílio, na Ilha de Patmos. O resto ou morreu antes ou não tinha tanta importância, exceto por Tiago, irmão de Jesus, líder da Comunidade Judaico-Cristã de Jerusalém. Mas no ano 70 Jerusalém foi destruída e os Judeus-Cristãos que nela moravam ou foram mortos ou se dispersaram. Ficaram alguns cristãos gentios, que reconstruíram uma Comunidade Cristã Helenista na cidade, sem serem Judeus, e sem se sentirem compromissados com o Judaísmo (exceto no respeito tido pelo Velho Testamento, que, naquela época, era a única Bíblia que havia). O Teólogo Histórico não precisa dizer o que ele pensa do que aconteceu então e dali para diante e das questões substantivas que eram discutidas então e dali para frente. Basta que ele esclareça quem pensava o que, e por quê, etc.

Fica evidente por que o Cristão Liberal, não aceitando boa parte das doutrinas do Cristianismo, quando interpretadas literalmente, como o faz a Ortodoxia (o Cristianismo que foi preservado historicamente foi o Paulinismo, que von Harnack chamava de Catolicismo, reservando o termo Cristianismo para o pensamento e o ensinamento de Jesus de Nazaré), prefere discutir o que os outros disseram e pensavam a revelar aquilo que ele próprio pensa.

Está esclarecido por que Adolf von Harnack escreveu uma História do Dogma em sete volumes, e pelo menos duas mil páginas, bem como vários outros livros históricos, mas dedicou apenas cerca de cem páginas ao que ele próprio pensava, e que condensou no livrinho A Essência do Cristianismo (Das Wesen des Christentums), mencionado no artigo anterior. Recebeu muito mais crítica por esse livrinho do que por todo o restante de sua obra.

Está explicado por que Karl Barth, razoavelmente ortodoxo e conservador, era um Teólogo Sistemático, Rudolf Bultmann, liberalíssimo, era um Teólogo Bíblico, e Adolf von Harnack, também liberalíssimo, e o Pai do Evangelho Social, era um Teólogo Histórico?

O único exemplo digno de nota de um grande teólogo liberal que foi também Teólogo Sistemático é o de Friedrich Schleiermacher, considerado o Pai da Teologia Liberal.

Em São Paulo, 29 de Janeiro de 2020.



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