A Igreja como Comunidade Virtual

1. Igrejas

Ao falar sobre “igrejas” neste artigo não vou me refirir a “templos”, isto é, aos edifícios físicos que, em regra, abrigam igrejas, e que, em muitos casos, em especial na Europa e nos Estados Unidos, são estruturas magníficas que devem ser preservadas, desde que, naturalmente, já existam. (As estruturas razoavelmente padronizadas que abrigam, por exemplo, as Congregações Cristãs do Brasil, não há porque preservar, uma vez que sua vida útil tenha chegado ao fim. São estruturas padronizadas e, que os irmãos de lá me perdoem, feias de doer). Com essas observações deixo os templos basicamente fora da discussão.

Vou discutir apenas igrejas como organizações sociais de cunho local que se caracterizam por ser comunidades que, hoje, se reúnem em templos, uma ou mais vezes por semana, e que, fora dessas reuniões, mantêm laços afetivos entre os seus membros parecidos com os que existem entre os membros de um clube ou de outras organizações comunitárias. Igrejas, no meu entender, são comunidades, que são criadas e mantidas através de vários mecanismos institucionais. De vez em quando uma delas se divide em duas, ou até três. Ou, também de vez em quando, uma delas morre, ou se funde com outra.

Como toda organização social de cunho comunitário, as igrejas são constituídas mediante um estatuto, em regra registrado em cartório, têm uma liderança (singular ou coletiva), são de associação voluntária, têm mecanismos mais ou menos sofisticados para aceitar novos membros, manter deles um registro, definir seus deveres e direitos, e, em casos excepcionais, desligar membros (contra a vontade deles – para sair da organização por vontade própria em geral basta solicitar o desligamento).

Como mencionado no início, as igrejas normalmente têm um local (próprio ou alugado) para seus encontros e reuniões, que têm lugar pelo menos uma vez por semana. A participação dos membros nesses encontros e reuniões raramente é obrigatória — embora se eles começarem a faltar sistematicamente, por longos períodos de tempo, em geral são chamados a se explicar. Se a comunidade não é muito grande, nem muito atuante, ela se reúne uma ou duas vezes por semana, em geral no domingo ou, no caso de igrejas sabatistas, no sábado. Em grandes centros urbanos, em que as pessoas têm horário de trabalho prolongado e a locomoção é difícil e demorada, tem se tornado mais e mais comum eliminar encontros durante a semana, que, em outros contextos, eram comuns. Se a comunidade é grande e atuante, pode haver encontros de parte dela quase todo dia da semana — às vezes havendo mais de um encontro em um mesmo dia.

No caso de comunidades maiores e mais atuantes, elas se organizam em áreas de atuação, em geral chamadas, quando dedicadas a atividades essenciais, de ministérios. Mas mesmo fora dos chamados ministérios há, em muitos casos, atividades regulares, que acontecem em determinados dias da semana: Reunião de Oração, Estudo Bíblico, Ensaio do Coral, Reunião de Cunho Social (hoje quase totalmente desaparecidas). E há, naturalmente, dentro da igreja, associações específicas menores, dedicadas a reunir pessoas com alguma afinidades: Sociedade Femininas, Associação de Homens, Encontro de Mães (não conheço nenhum de Pais), União de Jovens, Liga de Adolescentes e/ou de Crianças.

Os ministérios em geral são focos de ação regular. Eis exemplos de ministérios possíveis (e vou exagerar no número para que o conceito fique bem entendido, bem como explicar sua natureza usando o jargão de boa parte das igrejas — se bem que o jargão, por vezes, varie):

  1. Louvor e Adoração (comunhão coletiva dos membros com Deus, louvando-o, falando com ele, confessando suas falhas, ouvindo a sua palavra, etc.)
  2. Comunhão dos Crentes (convivialidade dos membros uns com os outros, fortalecimento dos laços que os unem uns aos outros)
  3. Educação Cristã (atividades educacionais junto aos membros para que cresçam e se fortaleçam no entendimento, na articulação e na defesa dos princípios que os reúnem)
  4. Cuidado Pastoral (atividades especiais por parte da liderança ou de pessoal especializado junto a membros que passam por problemas e dificuldades pessoais)
  5. Evangelização (busca, na comunidade externa, de novos membros com vistas à preservação e expansão do número de membros ou da membresia)
  6. Ação Social (atividades especiais junto a pessoas externas à igreja que passem por períodos de necessidade)
  7. Comunicação (diálogo continuado da liderança com os membros e da igreja como um todo com o público externo)
  8. Relações Exteriores (ações diplomáticas da igreja junto a outras igrejas, a órgãos do governo, e a outras instituições importantes)
  9. Administração Rotineira da Instituição (atividades e cuidados com a vida da igreja no dia-a-dia — algumas igrejas grandes possuem dezenas de empregados, por exemplo)
  10. Gestão Estratégica da Instituição (atividades voltadas para o planejamento estratégico da instituição no médio e longo prazo, algo que pode ser feito pela mesma equipe que é responsável pelo ministério anterior, embora, hoje em dia, mais e mais se use uma comissão especial e especializada)

2. Comunidades Virtuais

Algumas pessoas parecem imaginar que os espaços virtuais de hoje, criados ou viabilizados pelas novas tecnologias de comunicação e informação, fazem parte mais da ficção do que da realidade.

Mas essa impressão é errônea: os espaços virtuais de hoje não são menos reais por serem virtuais.

Compramos coisas tangíveis (livros, discos, software em caixa, aparelhos domésticos, roupas, gêneros alimentícios, comida pronta, etc.) no espaço virtual, em sites de lojas, algumas das quais são totalmente virtuais, como a Amazon, outras parcialmente virtuais: elas são lojas físicas, mas atendem também pela Internet, entregando o produto na casa do cliente. Isso acontece especialmente com supermercados parcialmente virtuais, restaurantes parcialmente virtuais, etc..

Também compramos no espaço virtual algumas dessas mesmas coisas, mas em formato intangível (e-books, músicas digitais, filmes digitais, software para baixar, jogos, etc.). Para notebooks, tablets e telefones, a forma preferencial de comprar software hoje é baixando-a da Internet. Músicas, filmes e livros caminham na mesma direção.

Pagamos nossas contas reais e transferimos dinheiro real no espaço virtual (em sites de bancos). Usamos dinheiro eletrônico, que é intangível.

Conversamos com a família e com os amigos no espaço virtual, e lhes enviamos coisas intangíveis que até pouco tempo eram tangíveis: e-mail, mensagens eletrônicas de texto, fotos digitais, vídeos digitais, textos digitais de diversos tipos, etc.

 Lemos nossos jornais e revistas no espaço virtual.

 Aprendemos e estudamos de forma colaborativa no espaço virtual (em sites de educação a distância).

Mais importante do que comprar coisas físicas pela Internet e tê-las entregues em nossa casa pouco tempo depois, sendo possível acompanhar a entrega, especialmente de comida pronta, e mais importante do que comprar coisas virtuais pela Internet, como músicas, vídeos e livros, e baixá-las imediatamente em nosso notebook, tablet ou telefone, mais importante do que isso, repito, é o fato de que podemos formar comunidades virtuais em que conversamos coisas triviais (batemos papo, jogamos conversa fora, matamos a saudade), discutimos coisas extremamente importantes, como questões filosóficas, religiosas, políticas, pedagógicas, artísticas, etc., podemos compartilhar, fotos, vídeos, artigos, podemos até fazer “lives”, isto é, nos filmarmos em um evento ou uma festa, para que outros possam nos ver e participar virtualmente do evento ou da festa.

As comunidades virtuais podem ser genéricas, dedicadas a qualquer assunto, ou especializadas, dedicadas a atividades específicas (aprendizagem disso ou daquilo, por exemplo, ou discussão de temas de interesse, como a religião, a política, a música clássica, etc.).

Igrejas, como vimos no capítulo anterior são associações voluntárias presenciais, mas parte importante e essencial delas é a vida comunitária, a comunhão que é formada entre os membros.

Por que é que não podemos ter igrejas virtuais, hoje em dia?

Nossos cultos convencionais, presenciais, já são hoje transmitidos ao vivo pela Internet por muitas igrejas, ficando o vídeo disponível para quem não pode assisti-lo na hora. Por que não estender essa prática para os demais ministérios e as demais atividades da igreja?

3. A Igreja como Comunidade Virtual

A igreja, como a escola, é uma instituição social. Nenhuma lei nos obriga a frequentar uma igreja por um determinado número de anos numa determinada fase de nossa vida. Mesmo assim, sem obrigatoriedade, muitos o fazem – pelo menos por umas duas horas, um dia por semana, em regra aos domingos, durante a vida toda.

O principal objetivo da frequência à escola é a aprendizagem. E o principal objetivo da frequência à igreja, qual é? Como vimos, e sem que eu tivesse a pretensão de elaborar uma listagem exaustiva, creio que podemos dizer que, neste caso, há vários objetivos: adoração e louvor a Deus, educação (formação) cristã, fortalecimento (apologética, defesa) da fé, comunhão com os irmãos, etc.

Vou deixar de lado, por um momento, os três primeiros objetivos citados nessa última lista para me concentrar no quarto: comunhão entre os irmãos, fraternidade, conviviabilidade.

Se pensarmos sobre a igreja em termos análogos àqueles em que se vem pensando sobre a escola, poderíamos cogitar da reinvenção da igreja. Nessa visão, a igreja (diferentemente do templo) deixa de ser um lugar físico que se frequenta durante duas horas aos domingos e passa a ser a comunidade dos irmãos (como os membros de uma igreja se chamam uns aos outros), isto é, daqueles que comungam os aspectos centrais de um determinado conjunto de valores, crenças e práticas e consideram importante viver em comunhão uns com os outros. Talvez seja mais ou menos isso que os teólogos de antigamente entendiam pela expressão “igreja invisível” (ecclesia invisibilis): a igreja não deseparece quando deixamos de estar fisicamente congregados uns com os outros no templo. Nessa linha, a comunhão que acontece numa visita semanal ao templo é muito limitada: a igreja (devidamente reinventada) precisaria estar presente na vida das pessoas durante a maior parte de suas vidas — isto é, também nas horas que elas passam longe do templo. Enfim, o tempo todo: igreja é um negócio de tempo integral e para a vida inteira...

Isso quer dizer que, levando a ideia adiante, precisamos de algo não só semelhante a “lifelong churching” — isso, até certo ponto, já existe hoje — mas semelhante a comunhão em qualquer momento e em qualquer lugar (“anytime, anywhere, communion“). Isso hoje pode ser feito com o apoio das mesmas tecnologias que permitem a reinvenção da escola. As tecnologias de informação e comunicação hoje disponíveis viabilizam essa ideia.

Em seu livro The Church of Facebook: How the Hyperconnected are Redefining Community, Jesse Rice, da Igreja Presbiteriana de Menlo Park, CA, no coração do Vale do Silício, sugere que as tecnologias que revolucionaram a forma pela qual nos relacionamos uns com os outros e acedemos às informações de que precisamos para viver nossas vidas estão também provocando um abalo sísmico na nossa ideia de comunidade. Cada dia que passa milhões de pessoas se conectam umas com as outras através das redes sociais, trocam informações, fazem amizades, cultivam esses relacionamentos, até mesmo se apaixonam, apoiam os que estão deprimidos, consolam os que perderam uma pessoa querida, aprendem… As redes sociais nos permitem estar o tempo todo sintonizados com nossos amigos, acompanhar suas ações, compartilhar suas alegrias e tristezas… Elas tornam possível um nível de comunhão entre amigos que era inimaginável até pouco tempo…

A Igreja do Facebook é mais importante do que a igreja física para muita gente — e isso é bom. Não devemos combater o Facebook porque está virando uma igreja, mas converter a nossa igreja para que seja algo parecido com o Facebook.

Afinal de contas, irmãos na fé são mais do que simples amigos, não são?

Se Martin Buber estava minimamente certo ao dizer que Deus não está aqui ou ali, mas entre um e outro lugar, a comunhão com o próximo é a principal forma de nos aproximarmos de Deus.

Na verdade, até aqui encarei apenas a função “comunhão com os irmãos” da frequência à igreja. Mas é possível agregar também as demais funções, como, por exemplo, a adoração a Deus. Hoje, na Catedral Evangélica de São Paulo, da qual sou membro, mas tenho frequentado (fisicamente) cada vez menos, porque mudamos para Salto em 2015, já temos irmãos que nunca vemos presencialmente: os que de longe assistem aos nossos cultos pela Internet. Eles poderiam se integrar a essa igreja reinventada, a essa comunidade virtual de comunhão e, também, de adoração. Os muito idosos, os doentes, os presos ao leito ou à casa, poderiam também se sentir visitados diariamente pela presença envolvente da igreja… Depois do sermão de domingo, poderíamos ter belas discussões de pontos levantados pelo pregador. Melhor ainda seria se o pregar disponibilizasse, já na quarta-feira, o tema, o texto e os principais pontos do sermão que irá pregar no domingo, para que cada um possa se preparar para ouvir o sermão com maior interesse e proveito…

Como estou convicto de que (a) a educação é a principal forma de desenvolvimento humano; (b) a educação é fruto da aprendizagem, muito mais do que do ensino ou da instrução; e (c) a aprendizagem é, eminentemente, colaborativa, e, portanto, tem lugar na interação, no relacionamento, na comunhão… — como estou convicto disso sou forçado a reconhecer que a igreja, assim reinventada como comunidade virtual, teria, no fundo, também uma função fundamentalmente educativa (formativa). Mas ela seria educativa, não tanto pela via do ensino e da instrução, como na Escola Dominical, mas, sim, pela via do compartilhamento de ideias e até mesmo de dúvidas, do diálogo que nos faz crescer e propicia o nosso desenvolvimento como seres humanos, da discussão e do embate de ideias que aprofundam o nosso entendimento, porque nos permitem compreender melhor o mundo, a vida, a nós mesmos, quiçá a Deus.

Creio que uma das frases mais felizes de Paulo Freire, que foi meu amigo e colega na UNICAMP, e é o mais conhecido e famoso dos educadores brasileiros, é: “Ninguém educa ninguém, mas tampouco alguém se educa sozinho: nós nos educamos uns aos outros, em comunhão, mediatizados pelo mundo” (Pedagogia do Oprimido). Ele, católico que foi (e, talvez, nunca tenha deixado de ser), não hesita em usar a expressão “em comunhão”.

A igreja, assim redefinida e virtualizada, seria um ambiente também de crescimento, se não na fé, em si, pelo menos na sua compreensão, na sua articulação com a vida diária, nas suas implicações para a conduta no trabalho, no lazer, na vida doméstica.

Quem sabe a criação de igrejas virtuais, na forma de comunidades virtuais (parecidas com sites de relacionamento, como o FaceBook) seria um primeiro passo para a criação de uma igreja que transcenda os limites do centro histórico da cidade, e mesmo da cidade em si, e se torne um ambiente de comunhão, adoração e formação, 24/7: 24 horas por dia, 7 dias por semana?

Para que isso aconteça, não basta criar uma comunidade virtual num site da Internet. É preciso ver a participação no site como parte integrante de nossa vida cristã e ver a coordenação (ou animação) do site como um ministério da igreja — ou como uma outra plataforma (além da presencial) em que os atuais ministérios podem desenvolver o seu trabalho. O acolhimento de novos membros, de visitantes, dos que assistem ao culto pela Internet, poderia ser feito também nesse espaço virtual. Ali também poderiam ser divulgadas notícias e informações acerca de: eventos que acontecerão na própria igreja e fora dela (neste caso, palestras, concertos, cursos, etc.); aniversários, casamentos, doenças, falecimentos; trabalhos dos diversos ministérios, sociedades e fundações da igreja; campanhas (como a de assinatura de revistas não virtuais ou virtuais), recolhimento de mantimentos ou agasalhos, etc.); sugestão e venda de livros; etc. Além disso, pedidos de oração poderiam ser feitos ali, orientação e apoio pastoral também poderiam ser em parte fornecidos ali, com respostas ou orientações rápidas sobre questões levantadas pelos membros acerca de doutrina, exegese, hermenêutica, conduta, etc.

Por último, mas não menos importante, a comunidade virtual poderia ser um posto avançado de evangelização que leva em conta o fato de que as pessoas, hoje, passam cada vez mais tempo conectadas ao virtual.

Voltemos, para terminar, à comparação entre a escola e a igreja.

Dizem os educadores sintonizados com as mudanças que vêm acontecendo em nossa sociedade que, em contraste com a visão tradicional, de que, para aprender e estudar, precisávamos nos locomover para um prédio específico, a escola, durantes horas claramente delimitadas, e em dias especificados da semana, do ano, e da vida, hoje é possível aprender a qualquer e em toda hora, em qualquer e em todo lugar, ao longo da vida inteira – usando os espaços de aprendizagem virtuais, as tecnologias de comunicação e informação, especialmente as móveis (notebooks, tablets, smartphones, etc.), e recursos digitais disponíveis na Internet. Essas mudanças estão revolucionando a educação através de sua desescolarização.

Por que não contemplar com pelo menos a mesma seriedade a destemplização da igreja, a transformação da igreja em uma comunidade virtual que está disponível para os seus membros 24 horas por dia, sete dias por semana, todas as semanas do ano, todos os anos da nossa vida…

Em São Paulo, 30 de Janeiro de 2020



Categories: Churches, Virtual Churches, Virtual Communities

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