A Morte

Anteontem, 4.10.2019, faleceu a minha sogra, Ana Maria Epprecht Machado. Ontem foi o seu enterro. Tinha completado 69 anos em Agosto.

Oito dias antes, em 26.9, faleceu o nosso caseiro, João Salviano Cândido. Tinha completado 63 anos em Junho.

Ela sete, e ele treze anos mais novos do que eu.

A morte rondou por perto aqui de casa ultimamente. Quem sabe ainda esteja à espreita de mais alguém para levar? Ou quem sabe resolveu ir cantar em outra freguesia por um tempo? Só Deus sabe. E ele não nos diz.

Isso me fez pensar sobre ela, a morte, em geral representada visualmente pela figura de uma mulher feia, esquálida, de aparência maligna, quase diabólica, vestida de preto. No filme Encontro Marcado (Meet Joe Black) a morte assume o corpo de um rapaz que acabara de morrer, representado por ninguém menos do que o formoso Brad Pitt, e passa a ter, ao longo do filme, uma aparência linda, benigna, de fala mansa, disposto a negociar, com a pessoa representada por Anthony Hopkins, que ela viera buscar, algum tempo mais de vida para que ele pudesse tentar resolver algumas pendências importantes, nos seus negócios e na sua vida pessoal. Johann Sebastian Bach escreveu uma linda peça musical intitulada Vem, Doce Morte! (Komm süsser Tod!), que meu colega de quarto no JMC, Jonas Christensen, que a doce morte levou aos 42 anos, cantava com enorme sentimento e beleza. Há hora em que me pergunto se faz sentido rotular de doce aquilo que a maior parte das pessoas geralmente teme…

Que fique claro. Nem todos temem a morte. Alguns a desejam. Outros a buscam. Outros a cortejam, escolhendo profissões arriscadas. Outros chegam a abraçá-la, perpetrando-a em si próprios.

A face da morte, se feia, como na imagem tradicional, ou bela, como Brad Pitt (nos seus melhores dias), é, portanto, relativa. O difícil é lidar com o momento e com a forma em que ela chega.

Quanto ao momento de sua chegada, ela às vezes leva alguém que está no auge da vida, do sucesso, da felicidade, e deixa devastados os que ficam e que amavam a pessoa buscada, que se vai deixando um enorme vazio, que, pelo menos por um tempo, parece impossível preencher. Outras vezes ela leva alguém que estava sofrendo muito, por doença prolongada e incurável, ou que estava infeliz e miserável, pela qualidade de sua vida ou qualquer outra razão, e é bem-vinda por quem é alcançado por ela, deixando, de certo modo, aliviados os que ficam, que costumam dizer que o finado passou desta para uma vida melhor.

Quanto à forma de sua chegada, ela pode ser sofrida e dolorida, ou mansa e suave, rápida ou mesmo instantânea, ou então prolongada e estendida no tempo. Na minha forma de ver as coisas, a forma ideal é aquela em que morreu José Wilker, que estava bem, foi dormir feliz, e, por assim dizer, acordou morto no dia seguinte. O Rubem Alves costumava dizer que não temia a morte, em si, e estava preparado para ela, mas que temia a dor e o sofrimento de uma agonia prolongada.

A irmã de um amigo meu faleceu, há pouco tempo, enquanto dirigia, atingida pelo por uma peça que se soltou de um caminhão que a ultrapassara na estrada e, furando o para-brisa de seu carro, a atingiu na cabeça. Ela literalmente não viu de onde lhe chegou a morte. Se sofreu foi uma sofrimento tão rápido que nem merece o nome. Sofreram os que ficaram. Essas mortes instantâneas e imprevisíveis acontecem em acidentes, sejam eles de trânsito ou de outro tipo, como, hoje em dia, balas perdidas nas ruas de nossas grandes e violentas cidades.

Às vezes somos salvos da morte por um triz. Os que assim são poupados em geral agradecem o salvamento mesmo que esse salvamento tenha acarretado a morte de uma outra pessoa. Um amigo meu, bastante crente, uma vez escreveu no Facebook que estava muito agradecido a Deus por tê-lo salvo da morte, pois, parado em seu carro num cruzamento de tráfego intenso, quando o sinal ficou verde seu telefone tocou e isso o impediu de arrancar — embora o motorista do carro ao lado, aparentemente sem nenhum telefonema salvador, tenha arrancado no momento certo e sido tolhido por uma carreta que não conseguiu parar quando o farol mudou. A pessoa do carro ao lado teve o seu encontro com a morte da qual meu amigo teria sido providencialmente salvo… Às vezes fica complicado pensar assim…

Enfim, o enterro da Ana Maria, sogra que era mais nova do que eu, acabou sendo um momento concorrido, cheio de gente que não se via há muito tempo e que, apesar da circunstância triste, sentiu prazer e alegria em ver os entes queridos que não encontrava há muito tempo. Houve muito choro e muita lágrima escorrendo rosto abaixo, mas houve também muito abraço demorado, muito sorriso até, muito enxugar de lágrima, na falta de lenços, com as costas da mão. Houve muita conversa, muita lembrança de tempos bons e de tempos nem tão bons. No meu caso, em especial, que cheguei nas imensas famílias Epprecht e Machado, e na família Epprecht-Machado, de tamanho não-desprezível (há vários cruzamentos de Epprechts e Machados na árvore genealógica), há menos de uma dúzia de anos, houve o prazer de ver, em carne-e-osso, gente que eu só conhecia pelas redes sociais, ou, mesmo, por ser eu mais loquaz (por escrito), que eu de fato nem conhecia, mas que me conhecia pelas quais coisas que insisto em escrever, colocando os meus pensamentos e sentimentos nesses sistemas, como Facebook, Messenger e WhatsApp, que nos aproximam — e que, em momentos de paixões políticas exacerbadas, às vezes nos distanciam e separam… A presença da morte por vezes nos torna conscientes de quão curta e preciosa a vida é para que deixemos de desfrutar da companhia de parentes e amigos por causa de diferenças políticas (ou, em alguns casos até mesmo religiosas ou teológicas). Isso acontece, às vezes, até entre pai e filho… Aconteceu comigo e com meu pai na minha juventude.

Aconteceu algo ontem, ao final do enterro, que eu nunca havia visto antes. Feito o sepultamento, em um cemitério em que os túmulos são muito próximos, e têm uma altura conveniente para a gente, talvez meio desrespeitosamente, neles se assentar, parecia que o pessoal não queria ir embora, e foi se assentando nos túmulos, formando pequenos grupos, para conversar, acarinhar-se, abraçar-se por um tempo mais — ali ao redor do corpo sepultado da falecida. Mais de 50 pessoas formaram rodas de conversa, desfrutando-se uns aos outros, às vezes rindo sem constrangimento na presença da morte, ou em desafio a ela. A situação me fez lembrar deste versículo bíblico (I Cor 15:55): “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” Ali, naquele ambiente sepulcral, parecia que, como disse Paulo, “a morte foi devorada pela vitória” representada pelo amor e pela comunhão que são capazes de sobreviver à dor da perda reforçando-se pelo fortalecimento dos laços de parentesco e bem-querer que permanecem.

Na presença da morte, especialmente quando ela é inesperada, ou quando chega rápido demais, a dor e o sofrimento podem ser expressados por choros prolongados, lágrimas profusas, lamentações diversas, algumas até mais ruidosas, de vez em quando, é totalmente legítima e ninguém deve se envergonhar de assim expressá-los. O luto é legítimo. Mas é preciso vencer a morte e, em algum momento, mais ou menos prolongado, conforme o caso, deixar o luto para trás. Aquele momento ao redor do túmulo contribuiu para deixar evidente que, triste como inegavelmente é a perda causada pela morte, é preciso cuidar dos que permanecem vivos — só Deus sabe por quanto tempo mais — e dar graças pela vida, que nos há dado tanto…

A gente em geral dá graças a Deus pelas bênçãos que recebe — “Conta as muitas bênçãos, dize-as de uma vez, e verás, surpreso, o quanto Deus já fez”, diz o conhecido hino. Mas essas bênçãos muitas vezes nos são trazidas por mãos humanas, algumas delas de gente conhecida e muito próxima, outras, pelas mãos de gente que nem suspeitamos estarem nos fazendo o bem. Hoje, assim que acordei, peguei o computador e, no Messenger havia um vídeo, enviado por meu amigo José Eduardo Sallum, que, por alguma razão misteriosa, resolvi ver (em geral não vejo a maioria dos vídeos que recebo, quando são distribuídos a granel). Era a história de um piloto americano que, durante a guerra no Vietnã, teve seu avião atingido por um míssil norte-vietnamita, e foi capaz de ejetar seu assento e aterrissar de para-quedas — embora tenha sido preso em seguida e ficado nas prisões do Vietnã por seis longos anos. Libertado, virou herói nacional, tornou-se famoso. Um dia alguém o abordou e lhe deu os parabéns por ter sobrevivido à queda do avião e à prisão. Ele agradeceu e perguntou quem era a pessoa — e a resposta o surpreendeu: “Eu era o soldado que dobrava os para-quedas do nosso batalhão. Você não me conhecia, mas eu tinha orgulho de dobrar os para-quedas para pessoas importantes como você, porque sabia que algum dia aquele para-quedas, dobrado bem e corretamente, poderia representar a diferença entre a vida e a morte”.

O lindo vídeo termina perguntando dois conjuntos de coisas:

  1. Quantas pessoas, e quais, dobram bem seus para-quedas e assim ajudam você a não morrer tão cedo e até mesmo a se tornar um herói? Algumas dessas pessoas você conhece e reconhece. Outras você desconhece e nunca procurou identificar e descobrir — como o piloto herói nunca havia pensado que, por trás dele, havia alguém que dobrava seus para-quedas, e que, fazendo isso bem, poderia, qualquer dia, qualquer hora, garantir que ele vencesse a morte.
  2. De quantas e quais pessoas você dobra os paraquedas? Tem feito isso com consciência e da melhor maneira que é capaz? Um dia alguém poderá sobreviver ou perecer dependendo de você efetivamente dobrar os para-quedas que fazem parte do seu trabalho ou do seus encargos cotidianos e de fazê-lo da melhor maneira que é capaz.

Embora as bênçãos que recebemos venham, em última instância, das mãos de Deus, elas chegam até você pelos inúmeros dobradores de para-quedas dos quais sua vida depende. Procure identificá-los e ser gratos também a eles.

A Ana Maria dobrou vários para-quedas para muita gente. Para mim, o mais importante foi gerar, gestar, criar e educar a melhor metade da minha vida pelos últimos doze anos (pelo menos): a Paloma. Obrigado, Ana. (A você também, Machado, que cooperou em todas as fases, de alguma forma ou de outra, e que, felizmente, permanece aqui conosco. Um abraço reconhecido.)

Para  vídeo mencionado, veja https://www.youtube.com/watch?v=-yaN6Jeqe78.

Em São Paulo, 6 de Outubro de 2019.



Categories: Death, Life, Morte, Uncategorized, Vida

2 replies

  1. Importante reflexão que me levou a querer “dobrar o paraquedas” de mais pessoas!

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  2. Amo você… ❤️

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