O Iluminismo e os Desigrejados

A primeira obra séria que eu li sobre o Iluminismo foi um livro, em dois volumes, intitulado The Enlightenment: An Interpretation, de autoria de Peter Gay. O primeiro volume, publicado em 1966, tinha como subtítulo The Rise of Modern Paganism. O segundo, publicado em 1969, tinha o subtítulo de The Science of Freedom. Li os dois volumes, quase de uma sentada, o primeiro em 1968, ano fatídico para o mundo ocidental, e o segundo, assim que saiu, em 1969.

Esse livro, em dois volumes, me ajudou a perceber duas coisas (uma relacionada com a outra) que eu não havia percebido até então.

A primeira foi a seguinte. Como bom protestante, na vertente presbiteriana, eu via a história do Cristianismo como algo relativamente linear, que, porém, teve uma guinada significativa, formando algo parecido com uma forquilha, no século 16, com a Reforma Protestante.

Meu conhecimento da História da Igreja então era incipiente, e eu não atentava para duas outras forquilhas (para mantar a metáfora, embora meio inadequada), anteriores.

Uma forquilha, em 1054, quando o Cristianismo dito Ortodoxo, que, por falar predominantemente o Grego, veio a ser chamado de Grego-Ortodoxo, mas que tinha sede em Constantinopla, se separou oficialmente do Cristianismo dito Católico, que, por falar predominantemente o Latim, veio a ser chamado de Romano, com sede, naturalmente, em Roma. O mundo ocidental normalmente não dá muita importância a esse cisma e olha de cima, por assim, dizer, o Cristianismo Grego-Ortodoxo, que tem presença pouco significativa no Ocidente.

A outra forquilha, que antecede a anterior em cerca de setecentos a seiscentos anos, surgiu em duas estapas: primeiro, com o Imperador Constantino, em 313, e, depois, com o Imperador Teodósio, em 381. Através dessas duas etapas, essa forquilha tornou o Cristianismo, primeiro uma religião lícita, depois a religião oficial, no Império Romano, cobrindo tanto sua parte Ocidental como sua parte Oriental. Oportunamente, o Império Romano veio a ter duas sedes, uma no Ocidente, em Roma, outra no Oriente, em Constantinopla. Mas o importante é que, nesse processo, o Cristianismo deixou de ser uma religião com muitas doutrinas e práticas (cultuais e morais) diferentes e conflitantes e veio a se tornar, por volta de 451, em Calcedônia, uma Ortodoxia (em um sentido meio diferente do termo que se usa na expressão “Grego-Ortodoxo”: A Ortodoxia consubstanciada em 451 é uma Ortodoxia Doutrinária). A partir daí, passou a existir uma Igreja Cristã Ortodoxa, identificada com o Império Romano, com um ramo Grego e um ramo Latino, e uma série de igrejas nacionais, na periferia do Império ou fora dos seus limites, que abrigaram as versões Não-Ortodoxas (vale dizer, Heréticas) do Cristianismo, em especial a versão Ariana, a versão Monofisita, e a versão Nestoriana. O Arianismo, na visão ortodoxa, comprometia a divindade de Jesus; o Monofisitismo, a sua humanidade; e o Nestorianismo, a unidade da duas naturezas, divina e humana, em uma só pessoa. Com isso, ficavam comprometidas as doutrinas da Trindade, da Encarnação, e, por via indireta, da Redenção e da Justificação. Essas três heresias, é bom que se diga, embora perseguidas e forçadas a se abrigar fora dos limites do Império Romano, nunca deixaram de existir, mesmo aqui no Ocidente.

Mas em 1969, eu não me dava conta de tudo isso. O que me impressionou nos livros de Peter Gay foram duas teses, a primeira negativa, a segunda positiva, por assim dizer.

A Tese Negativa era de que a Reforma Protestante não representou uma divisão significativa no Cristianismo Ocidental. As divergências entre o Protestantismo e o Cristianismo Católico Romano eram mínimas, e, até certo ponto, perfeitamente sanáveis, como Martinho Lutero inicialmente esperava. Foi a inépcia política do Papa Leão X e o temperamento juvenil explosivo de Lutero que precipitaram sua excomunhão pela Igreja Católica Romana (e seu banimento pelo Sacro Imperador Romano, Carlos V, espanhol com raízes portuguesas). Não fosse a inépcia política do Papa, o temperamento explosivo de Lutero, e, acrescente-se, o desejo de boa parte dos príncipes e duques do Sacro Império Romano Alemão de se livrar de pagar impostos e taxas para Roma, as coisas teriam se acertado e não teria havido rompimento político entre a Santa Sé e Wittenberg.

A Tese Positiva era de que a divisão significativa (a longo prazo) no Cristianismo Ocidental aconteceu no século 18, com o Iluminismo, que, sob a influência de uma filosofia parcialmente racionalista e parcialmente empirista, mas principalmente de uma visão modernamente pagã da realidade e da vida, provocou uma ruptura, não entre Cristãos Orientais e Cristãos Ocidentais, não entre Cristãos Católicos e Cristãos Reformados, mas, sim, entre Cristãos (de qualquer naipe) e Neo-Pagãos (ex-Cristãos, ou Pós-Cristãos, se se prefere).

Esse insight, que me foi transmitido por Peter Gay, em 1968-1969, que fala, no primeiro volume de sua obra d’O Surgimento do Paganismo Moderno, que apregoava a uma Filosofia e uma Ciência da Liberdade – livre, em primeiro lugar, das cadeias do Cristianismo, como fica claro no segundo volume.

Demorou um pouco para essa ruptura produzir seus principais frutos. Mas as Ciências Humanas e Biológicas logo lançaram sua declaração de independência, com Feuerbach, Marx, Engels, Darwin, etc., as psicológicas vieram na sequência, com Freud, Skinner, etc. e hoje, no século 21, temos um Ocidente eminentemente pagão – ou secular, como preferem alguns. Sua origem está no Iluminismo, de forma alguma na Reforma.

O fenômeno dos Desigrejados (que discuti recentemente em um artigo de blog) deve ser analisado dentro dessa ótica. Se a Igreja Cristã quer reconquistar os Desigrejados, os Secularistas, os Neo-Pagãos, ela não pode usar a mesma estratégia que ela utilizou para conquistar os antigos pagãos, que desconheciam a mensagem cristã, enviando missionários para converter aqueles que desconheciam o Cristianismo. A estratégia tem de ser outra, muito mais ligada à Apologética do que ao trabalho missionário, mesmo que este seja visto da ótica da chamada Missão Integral.

Os Desigrejados de hoje não desconhecem a mensagem cristã. Eles são Pós-Cristãos, Ex-Cristãos. Eles conhecem a mensagem, mas a rejeitaram, porque ela não dizia nada que fosse relevante às suas necessidades, hoje, porque ela não apresentava soluções para os seus problemas atuais. Por enquanto o Cristianismo Tradicional ainda tem um espaço a explorar entre as populações mais pobres e menos educadas do Terceiro Mundo, mas o Pentecostalismo já fincou sua bandeira nesses territórios. O que vão fazer as Igrejas Tradicionais, a Igreja Católica, de um lado, as Igrejas Protestantes ditas Magisteriais do outro (Luterana, Anglicana, Calvinista)? A chamada Igreja Cristã Unitária já deu uma limpada geral no campo doutrinário, reduzindo-o a um mínimo, enfatizando a ética de Jesus de Nazaré, como o faziam os grandes liberais do século 19, mormente Adolf von Harnack, que viveu até 1930. Minha previsão é de que ela vai ganhar adeptos. Mais do que as Igrejas Cristãs Gays, Feministas, Negras, Revolucionárias ou Libertacionistas… Mas e os Luteranos, Anglicanos, Presbiterianos, Metodistas, Batistas, etc. mais convencionais? Vão ficar olhando o mundo que foi cristão se dividir entre Secularistas e Pentecostais?

É esse o dilema. Na minha tese de Doutoramento de 1972 (David Hume’s Philosophical Critique of Theology and its Significance for the History of Christian Thought), que vai fazer 52 anos em Agosto, eu previ que, ou o Cristianismo Tradicional enfrenta corajosamente o Novo Paganismo, Pós-Cristão, Positivisticamente Científico, desfraldado pelo Iluminismo, ou “The Game is Over”.

Precisamos de um novo Thomas de Aquino. C. S. Lewis, depurado de algumas besteiragens dele, parece ser hoje, o único caminho viável. Mas ele está errado, a meu ver, quando tenta bater de frente com o Tomismo defendido pela Igreja Católica. A filosofia neo-aristotélica de Thomas, e sua teologia escolástica, têm muito a contribuir para as batalhas que C. S. Lewis, ao morrer, nos deixou, para que déssemos continuidade ao trabalho dele. (Vide minha sequência de três artigos sobre Os Poderes da Mente Humana, publicados ontem, 20.1.2024, para entender por quê eu digo isso).

Em Cortland, OH, 21 de Janeiro de 2024.



Categories: Liberalism

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