Sobre os Poderes da Mente Humana – PARTE 2

A posição de David Hume descrita no artigo anterior tem que ver com conhecimento daquilo que ele chama de matters of fact – questões factuais, ou questões de fato. Trata-se, portanto, de nosso conhecimento empírico. Hume admite, porém, a existência de um conhecimento daquilo que ele chama de relations between ideas – questões exclusivamente conceituais. Neste caso, estamos lidando com ideias puras, criadas, naturalmente, a partir de ideias empíricas mais simples, mas que nada têm que ver com a experiência.

Por exemplo:

Se eu afirmo que todo homem solteiro é irresponsável, trata-se de uma questão de fato. Para determinar se o que eu estou dizendo é verdadeiro ou falso, é necessário fazer um levantamento exaustivo de todos os homens solteiros – os vivos, os já falecidos, os que estão por nascer. Algo impossível. Se eu afirmo, porém, que todo homem solteiro é um homem não casado, todo mundo que conheça a língua portuguesa saberá que estou dizendo uma verdade – para ser preciso, uma verdade necessária, algo que é necessariamente verdadeiro. Diante de uma afirmação como essa, ninguém poderia retorquir que a gente deve ir devagar e fazer um levantamento exaustivo, ou uma pesquisa com boa amostragem, porque, quem sabe, a gente possa encontrar um homem solteiro que seja casado. Isso não é possível, porque o conceito de um homem solteiro é definido, logicamente, como um homem não casado. (Fica em aberto a questão se ele é não casado porque nunca se casou ou porque, tendo se casado, veio a deixar de sê-lo, por divórcio ou óbito do cônjuge). Se alguém disser que é solteiro e, ao mesmo tempo, casado, estará cometendo uma contradição, incorrendo em uma impropriedade lógica, violando a lei lógica da não-contradição, que afirma que algo não pode ser e não ser a mesma coisa ao mesmo tempo.

Há vários outros exemplos que Hume fornece – a maior parte deles da área da matemática, especificamente da geometria euclidiana. Um triângulo é uma forma bidimensional fechada (um polígono), com três lados, três ângulos e três vértices.  Se alguém, diante de uma figura com essas características, negar que é um triângulo, estará se contradizendo. Diante dessa definição de triângulo, e outros princípios da geometria euclidiana, é possível ir mais longe, e afirmar, por exemplo, que a soma dos ângulos internos de um triângulo, qualquer que seja o formato dele, é sempre 180 graus, ou afirmar que, no caso de um triângulo reto, o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos, etc. Deixando a área da geometria, poderemos afirmar, que, para ser pai, alguém precisa ter, ou ter tido, pelo menos um filho ou uma filha. Ou, entrando mais numa área filosófica, poderemos afirmar que o enunciado que todo evento tem uma causa é um enunciado empírico, sendo necessário pesquisar ou investigar, a afirmação podendo ser verdadeira ou falsa, dependendo do resultado da pesquisa ou investigação;  mas que o enunciado que todo efeito tem uma causa é um enunciado necessariamente verdadeiro, pois se trata, aqui, exclusivamente de relações entre ideias, que nada têm que ver com a realidade empírica. Se dizemos que algo é um evento, é possível que tenha ou que não tenha uma causa – a questão precisa ser verificada empiricamente. Mas se dizemos que algo é um efeito, é uma contradição lógica negar que tenha uma causa.

Diferentemente do conhecimento empírico, que envolve as questões de fato, o conhecimento envolvido na relação entre ideias é necessário é puramente lógico e, por isto, é absolutamente certo: não admite contradições. Tal é o caso do conhecimento matemático, que, para Hume, não é conhecimento empírico de alto nível de generalização. Para Hume, não existe outro conhecimento além do empírico e do conceitual. Emanuel Kant, chama esses dois conhecimentos de sintéticos e analíticos. O primeiro envolve uma síntese entre conceitos que nada têm que ver um com o outro; o segundo, envolve apenas a análise conceitual, porque um está, de certo modo, embutido no outro. Hoje em dia chamaríamos esses dois tipos de conhecimento de científico e lógico-matemático.

David Hume, em seu livro Dialogues Concerning Natural Religion (Diálogos Acerca da Religião Natural) provoca o leitor com um argumento puramente conceitual contra a existência do Deus aceito pelos cristãos, que seria um ser infinitamente poderoso (todo-poderoso), infinitamente sábio (onisciente) e infinitamente bondoso. Segundo Hume, se esse Deus existisse, não haveria mal ou sofrimento no mundo, porque Deus, sendo infinitamente bondoso, iria querer poupar a humanidade desse mal ou sofrimento; sendo infinitamente sábio, saberia como fazer isso; e sendo infinitamente poderoso, teria condições (poder) para fazer isso. Se, no entanto, existem mal e sofrimento no mundo, algo que é impossível de negar, é forçoso reconhecer que um ser com esses atributos não existe. Esse o chamado Argumento Humeano Contra a Existência de Deus.

Embora o argumento possa parecer, à primeira vista, irrespondível, é possível responder a Hume de várias maneiras. Como o mal e o sofrimento inegavelmente existem e há mal e sofrimento que é causado por eventos naturais, e não apenas pelo homem, em sua liberdade, a forma mais comum de enfrentar o argumento humeano é questionando que a infinita bondade divina obrigaria Deus a querer eliminar o mal e o sofrimento do mundo. C. S. Lewis usa essa estratégia, ao afirmar que o mal e o sofrimento são formas que Deus usa para se comunicar com os homens, para chamar sua atenção para alguma coisa importante. Ele chama o mal e o sofrimento de o megafone que Deus usa para nos forçar a prestar a atenção a algo que estamos negligenciando. Há muitos teólogos que aceitam esse tipo de defesa da existência de Deus susado por C. S. Lewis.

Na próxima parte deste artigo, a terceira, vou voltar no tempo e falar de Tomás de Aquino, que viveu cerca de 500 anos antes de Hume.

Em Cortland, 20 de janeiro de 2024. Cerca de quatorze horas (14:00 GMT -5).



Categories: Liberalism

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