A Falta de Tradição e Elegância Acadêmica no Brasil (em Especial nas Humanidades)

Vira e mexe eu sinto o que vou descrever a seguir, mas, sentindo que pouco eu posso fazer, estando aposentado da vida acadêmica, deixo o assunto de lado. Mas, hoje cedinho, por volta das 5 horas da manhã, comecei a ler um livro de Bart D. Ehrman (identificação abaixo) e, como sempre faço, passei os olhos pela seção de Reconhecimentos (Acknowledgements). O que li me deu vontade de tocar no assunto.

A página de Reconhecimentos geralmente inclui referência aos seguintes entes, divididos em institucionais e pessoais:

  • A instituição acadêmica a que o autor pertence, como Universidade, Unidade Acadêmica maior (Faculdade, Instituto, Escola, etc.), Unidade Acadêmica menor (Departamento, por exemplo);
  • Entidades externas que o ajudaram (financeiramente ou de outra forma) na realização do trabalho;
  • Editora que está publicando o livro, quando for o caso, e Agente, também quando for o caso;
  • Colegas, da própria instituição acadêmica do autor, ou de fora, que o ajudaram, técnica ou mesmo moralmente, na realização do trabalho, lendo o texto, no todo, ou em partes (um ou outro capítulo específico), fornecendo bibliografia, fazendo correções ou apontando erros e falhas, sugerindo melhorias (acréscimos, supressão de material), etc.;
  • Família (pais, irmãos, cônjuge, filhos, etc.), pela solidariedade e pelo apoio moral, e, por vezes, por ajuda técnica (pesquisa, revisão, digitação, ilustração, etc.).melhorias (acréscimos, supressão de material), etc..

Exceto em teses, dado que teses representam um marco importante na vida e na carreira do autor, raramente há referência a Deus ou ao Senhor da Vida, sem cuja graça a gente não teria feito nada.

 Considero-me, básica e primariamente, um filósofo. A Filosofia pertence, supostamente, à área de Humanidades, que inclui, além da Filosofia, Letras (que abrange Línguas e Literatura, mas não Linguística, que tem pretensão de ser Ciência), e, em alguns casos, História (História Geral, História da Civilização, História da Cultura, História das Artes, História da própria Filosofia, que seria tanto História como Filosofia, História da Religião, idem, etc. – só ficando de fora, quem sabe, a Histórias das Ciências e outras Histórias altamente técnicas e especializadas).

Só para completar o panorama, as disciplinas da área de Humanidades que normalmente se rotulam de Ciência abrangem Sociologia, Antropologia, Política, Economia, História (com algumas ressalvas, feitas atrás), Psicologia (talvez com algumas ressalvas, no caso de Psicologia Humanística e Positiva), Linguística, Educação, Religião, etc.

As Artes, em geral, constituem uma área à parte, que inclui Música, Pintura, Desenho, Escultura, Dança, Teatro, Cinema, Televisão, Rádio, etc. A Literatura em geral é agrupada com as Letras, nas Humanidades.

É costume, nos meios em que eu vivi e estudei nos Estados Unidos, falar em “Humanities, Arts and Sciences”, como as três áreas básicas em que se divide o mundo acadêmico. Além das áreas básicas há as áreas aplicadas, profissionalizantes (Engenharias, Direito, Administração, etc.). Algumas áreas básicas têm um componente aplicado, como a Biologia, em relação às chamadas Ciências da Saúde (Medicina, Odontologia, Enfermagem, etc.), ou a Educação (em relação com a Administração Escolar ou Educacional).

Estou perfeitamente ciente de que há furos nessa tentativa de mapear o mundo acadêmico, mas acho que a tentativa é útil, porque pretendo falar exclusivamente da área de Humanidades e, dentro dela, da Filosofia, da História, e da Religião. Estou consciente de que existe algo que se chama de “Ciências da Religião”, em contraposição à Teologia, e alguns tipos de Teologia que se pretendem científicas, como a de Charles Hodge, no século 19, em Princeton.

Dentro da área de Humanidades, como delimitada, não vi quase nada, nos mais de quarenta anos de vida universitária, parecido com a lista enorme de agradecimentos que eu encontro em livros, por exemplo, americanos. Como mencionei Ehrman, atrás, esclareço que o livro que estou lendo é The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament (Oxford University Press, 1993, usado na sua Kindle Edition).

Ehrman faz generosos agradecimentos à sua instituição, a University of North Carolina at Chapel Hill. Faz referência ao Institute for Arts and Sciences, ao qual está vinculado o Department of Religious Studies (não Sciences of Religion). Agradece apoio financeiro do seguinte órgão de apoio à pesquisa da própria Universidade, o Faculty Research Council, que lhe concedeu uma Faculty Research Grant in 1989. (Usei o feminino para o termo “grant” porque, para mim, trata-se de algo como uma bolsa). Com essa bolsa, Ehrman pode (leia-se pôde), por exemplo, contratar dois assistentes de pesquisa, que ele nomeia e a quem, reconhecidamente, agradece.

Há 34 anos, em 1989, quando ele começou a trabalhar no livro, que foi publicado em 1993, Ehrman ainda não tinha a reputação acadêmica que hoje tem para pleitear recursos de instituições externas de fomento à pesquisa e financiamento dessa pesquisa (quando esse financiamento é necessário ou recomendável). Há quem afirme que, na área das Humanidades o único recurso material de que a gente precisa para fazer pesquisa é livro. Mas mesmo livro custa dinheiro, que é significativo quando as bibliotecas ditas universitárias são pífias.  

O que mais me surpreende é a lista de agradecimentos pessoais a vários colegas, inclusiva ao seu Orientador de Doutorado, Bruce Metzger, que Ehrman elabora. Eis o que ele diz:

“I would like to extend my special thanks to friends and teachers who have read parts of the manuscript: my two perspicacious colleagues, Peter Kaufman and Laurie Maffly-Kipp, extraordinary for their recognition of inelegance; Elizabeth Clark and Bruce Metzger, whose seasoned judgments have always been graciously extended and gratefully received; and especially Joel Marcus, now of the University of Glasgow, and Dale Martin, of Duke, two exceptional New Testament scholars with mighty red pens, who carefully pored over every word of the manuscript, saving me from numerous egregious errors and infelicities of expression. Those that remain can be chalked up to my willful disposition in refusing (in good heretical fashion) to take their sage advice.”

[Tradução de EC:]

“Gostaria de fazer um agradecimento especial a amigos e professores que leram partes do manuscrito: aos meus colegas perspicazes, Peter Kaufman e Laurie Maffly-Kipp, que foram extraordinários na identificação de vários lugares em que meu texto exibia deselegâncias; a Elizabeth Clark e Bruce Metzger, cujo amadurecido julgamento acadêmico me foi estendido com gentileza e graça, que eu procurei retribuir; e, especialmente, a Joel Marcus, agora na Universidade de Glasgow, e Dale Martin, de Duke, dois excepcionais scholars do Novo Testamento, com poderosas canetas de tinta vermelha, que cuidadosamente fiscalizaram cada palavra do texto, indicando numerosos e egrégios erros e várias infelicidades de expressão. Os erros e as infelicidades que permaneceram no texto devem ser debitados à minha disposição e deliberação de, em alguns casos, dadas as minhas conhecidas tendências heréticas, me recusar a aceitar as sábias sugestões desses dois.”

Acho isso fantástico, que dois colegas do autor, que trabalhavam em outras universidades, tenham tido a generosidade e a disposição de se debruçar sobre “cada palavra” de um texto de mais de trezentas páginas impressas, com suas canetas de tinha vermelha, para corrigir erros e infelicidades de expressão, que, em vários casos, representam deselegâncias que os outros dois colegas perspicazes do autor, em sua própria universidade, não as perceberam ou houveram por bem, tendo notado, deixar de lado…

Registro isso porque, em mais de quarenta anos de vida acadêmica em universidades brasileiras, trinta e dois e meio na UNICAMP e nove, depois de aposentado da UNICAMPO,  no UNISAL, nunca tive coragem de pedir a colegas meus que lessem e corrigissem textos meus, bem menores do que o livro de Ehrman — nem eles, sabendo que eu estava escrevendo alguma coisa, artigo ou livro, se ofereceram para ajudar. Como na área de Humanidades é difícil obter “grants”, internos ou externos, que permitam a contratação de assistentes de pesquisa, revisores, etc., a única alternativa sempre foi utilizar recursos caseiros que, por causa de suas especialidades e de seus deveres profissionais, nem sempre tiveram a possibilidade de fazer o que colegas, com gentileza e elegância, poderiam fazer.

E, institucionalmente, as deselegâncias foram generalizas.

Trabalhei na UNICAMP por 32 anos e meio, lá fui Coordenador de Curso de Graduação, Coordenador de Curso de Pós-Graduação, Diretor Associado de Unidade, Diretor de Unidade (tudo na Faculdade de Educação), Membro do Conselho Diretor, Assessor Especial do Reitor (o que hoje se chama de “Pró-Reitor”), Membro da Câmara Curricular do Conselho Diretor, Presidente da Comissão de Orçamento e Patrimônio do Conselho Diretor, membro fundador do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE), criador e coordenador do Núcleo de Informática Aplicada à Educação (NIED).  Quando me aposentei, com mais de três décadas de serviço, não recebi sequer uma carta de agradecimento da universidade ou de minha unidade, pelos serviços prestados, quanto mais um pin ou um broche, ou um relógio, ou coisa semelhante, como sinal de reconhecimento e agradecimento… O NIED, que eu criei, vai completar este ano 40 anos, e, ao final de cada década de existência, fez uma comemoração, para a qual eu nem sequer fui convidado. Não antecipo ser convidado para a comemoração que terá lugar em Outubro desde ano. O único reconhecimento que recebi na universidade foi o de ser convidado para participar e fazer uso da palavra nos aniversários de 25 e 50 anos da Faculdade de Educação (em 1997 e 2022), de cuja direção eu participei por oito anos, como Diretor Associado, em 1976-1980, e como Diretor Titular, em 1980-1984 – e, por esse reconhecimento, eu sou especialmente agradecido.

É só, por ora. Desculpem essa demonstração pública de mágoa, uma verdadeira jeremíada, que não deixa de ter o caráter de uma deselegância retributiva. Faço isso no ano em que, se Deus permitir, concluo e completo meu octogésimo ano e fecho minha octogésima década de vida, iniciando minha nonagésima década. Alguém já disse que, depois dos setenta anos, a pessoa deve ter o direito de dizer o que quiser sem que os outros tenham direito de recriminar ou mesmo reclamar. Quando se está à beira de completar oitenta, então, o direito de reclamar e lamentar, tal qual Jeremias, é completo. Quero crer. Porque no Brasil nem os direitos legais, fixados na Constituição, são respeitados por quem deveria zelar pelo respeito a eles. Quanto mais supostos direitos morais?

Talvez se eu fosse comunista, ou pelo menos socialista, o meu tratamento na UNICAMP teria sido diferente.

Reconhecimento e apoio eu recebi de instituições não acadêmicas privadas, lucrativas ou não, e de algumas universidades confessionais. Entre as primeiras estão a Microsoft Corporation (BR e Corp), a Zoom Education for Life, a MindLab, a Fundação Romi, o Instituto Ayrton Senna, o Instituto Embraer, a LEGO Foundation (da Dinamarca), e, entre as segundas, de algumas instituições acadêmicas privadas e confessionais, como a Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP), o Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP – campus de Hortolândia), o Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL – campus de Americana). A todas essas sou profundamente grato e reconhecido.

Em Salto, 28 de Maio de 2023.



Categories: Liberalism

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