A História da Educação Americana de Cremin

Comecei a ler no novo ano uma História da Educação Americana, de autoria de Lawrence Arthur Cremin, conhecido educador e historiador da educação americano (falecido em 1990, aos 64 anos; nasceu em 1925). O livro, em três enormes volumes, chega ao total de 2.076 páginas.

  • O primeiro volume: American Education: The Colonial Experience (1607-1783), publicado em 1970  [688 páginas]
  • O segundo volume: American Education: The National Experience (1783-1876), publicado em 1980 [607 páginas]
  • O terceiro volume: American Education: The Metropolitan Experience (1876-1980), publicado em 1988 [781 páginas].

As datas significam o seguinte: 1607 é a data inicial da colonização da costa leste central da América do Norte pelos ingleses. 1783 é a data simbólica do fim da colonização inglesa, com o surgimento da nação americana, chamada América, pela consolidação da federação das treze colônias existentes. A Independência da Inglaterra foi proclamada em 4.7.1776, mas a Inglaterra resistiu, houve uma guerra (que na realidade já estava iniciada quando a proclamação da Independência se deu, seu início sendo considerado 19 de abril de 1775) e só terminou em 3 de setembro de 1783. No ano de 1876 foi celebrado o centenário da Proclamação da Independência, e 1980 é a data em que Cremin encerrou a cobertura dos eventos, 204 anos depois da Proclamação da Independência.

Comecei a ler pelo terceiro volume, o mais longo, mas cujo assunto está mais perto de nós.

Se eu lesse apenas obras de História da Educação escritas por autores brasileiros como Dermeval Saviani, José Luiz Sanfelice, José Claudinei Lombardi, e até mesmo Moacyr Gadotti, todos eles meus ex-colegas de Departamento (Departamento de Filosofia e História da Educação) na UNICAMP, e, ouso dizer, meus amigos, apesar de sérias divergências no reino das ideias, e as obras de seus orientandos, eu teria tido um ataque do coração ao ler esse livro (em múltiplos volumes) de Cremin. Para esses autores brasileiros e seus orientandos (vale dizer, seus doutrinados), História da Educação é História da Escola, e História da Escola é História da Escola Pública, e História da Escola Pública é História do Ensino, e História do Ensino é História do Ensino dentro do chamado Paradigma Crítico-Social dos Conteúdos, e o Ensino, assim praticado, só pode ser perpetrado por ensinantes doutrinados por “educadores-doutrinadores” (sic) como eles, que ironicamente se auto-rotulam de “educadores críticos”, dentro de sua visão Marxista-Gramsciana do mundo, da vida, da cultura, e, naturalmente, da educação.

Eu explico, para aqueles que estão meio perdidos ou assustados.

Quando Cremin concebe a História da Americana ele inclui, no âmbito do seu trabalho, dimensões como as seguintes:

  • A educação que tem lugar no lar, no seio da família nuclear, que é o locus naturalis da pessoa que acaba de nascer e vai se educar e ser educada;
  • A educação que tem lugar no âmbito da família estendida, que inclui avós, bisavós, tios, tios-avós, primos de n graus, etc. da pessoa que se educa e está sendo educada;
  • A educação que tem lugar na igreja a que (é de supor) os pais e demais parentes da pessoa que se educa e está sendo educada são membros, através das escolas dominicais ou sabatinas, dos cultos de pregação, louvor e oração, do aconselhamento pastoral, dos piqueniques, convescotes, acampamentos, das excursões, das escolas bíblicas de férias, etc.;
  • A educação que tem lugar em clubes e acampamentos de que a pessoa que se educa e está sendo educada faz parte, como, por exemplo, escoteiros, escolas de esporte, centros de lazer e recreação, academias de ginástica, etc.
  • Locais de orientação vocacional inicial bem como de formação profissional e estágios profissionais práticos;
  • Etc.

Na verdade, muitos vão se assustar, mas Cremin investiga até mesmo como se dá a iniciação profissional do garoto de rua, ainda que seja na contravenção e no crime, como parte da educação da dessa pessoa, porque há muitas pessoas que obtêm o seu sustento e o de sua família através de atividades consideradas ilícitas e mesmo criminosas, como jogos de azar proibidos, ou venda de bebidas alcoólicas em lugares ou condições em que seu consumo não é permitido, ou venda de drogas mais fortes do que aquelas cujo comércio legal o estado admite (as bebidas alcoólicas e o tabaco) – esses são os chamados crimes sem vítimas, em que as partes envolvidas agem de comum acordo e ninguém se sente prejudicado (como no caso da prostituição, nos países em que ela é considerada ilegal). Essas atividades exigem um certo preparo, um certo nível de formação (que poder ser até sofisticado em alguns casos), o desenvolvimento de habilidades e competências, várias aprendizagens, e, portanto, uma educação, em especial em situações em que as pessoas não têm outra alternativa mais fácil e menos arriscada. Poucos historiadores da educação contemplariam essas atividades em suas análises da educação. A maioria as ignora totalmente, alegando que vão lidar apenas com a educação formal, ou a educação escolar, ou a educação escolar estatal. Mas não Cremin.

Embora Cremin de forma alguma ignore a educação escolar, ele enfatiza aquelas modalidades de educação que normalmente não são privilegiadas nas histórias da educação convencionais, como a leitura individual (voluntária, não obrigatória); a ida regular ao cinema; a visitação regular a bibliotecas, museus, e teatros; o uso habitual dos meios de comunicação de massa, como o rádio, a televisão, e, hoje a Internet; os diálogos e as conversas prolongadas sobre assuntos de interesse (presencialmente ou por carta ou email); as discussões, os debates, as mesas redondas, tanto em ambientes presenciais, como virtuais (hoje, nas redes sociais, por exemplo), usando texto, voz e vídeo; excursões e viagens; observação do comportamento alheio e da natureza; a reflexão e a meditação; a produção de textos em que se põe no papel (ou equivalente) as próprias ideias, que às vezes ocorrem de repente, e, não raro, se não colocadas no papel, são voláteis, fugazes, fugidias; as experiências intencionalmente provocadas ou construídas; os experimentos, os projetos ousados e fora do ordinário… Aprende-se também através de relacionamentos interpessoais, amizades, namoros, na vivência conjunta, através do casamento (ou de sua dissolução…) Aprende-se contemplando ou experienciando a morte de um ente querido – ou vendo alguém tentar algo ousado que resulta ou em sucesso ou em desastre, quiçá na morte que, por vezes, cobra o preço da ousadia.

Aprende-se fazendo tudo isso. Aprende-se mais, e melhor, assim, do que se aprende numa sala de aula escolar. E, no entanto, quase ninguém que escreve sobre a história da educação ousa contemplar em suas obras essa amplitude e riqueza de situações educacionais — porque nelas se aprende.

Embora muitos dos exemplos aqui dados não estejam explicitamente mencionados no texto até agora lido, Cremin abriu a porta para eles, e eu lhe sou agradecido por ter me permitido, mesmo vários anos depois de sua morte, aprender — e assim continuar me educando — com a leitura de seus livros.

Em Salto, Dia de Reis, 6 de Janeiro de 2023.



Categories: Liberalism

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