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2. A Liberdade como Algo Negativo. 3
3. A Liberdade, a Moralidade e a Justiça. 7
4. A Liberdade como Algo Positivo. 8
o O o
1.Introdução
Na reunião de ontem (17.5.23) de nossa Célula, na Igreja Presbiteriana Independente de Salto, discutiu-se a questão “A Família e a Liberdade”. Em reuniões anteriores se discutiram os temas “A Família e o Dinheiro” e “A Família e o Trabalho”, e na próxima reunião se discutirá o tema “A Família e a Felicidade”, ficando para a última quarta-feira do mês o fechamento da discussão sobre a família, apropriadamente realizada no mês de Maio, o Mês da Família.
A reunião de ontem foi conduzida pela Paloma, minha mulher, que começou perguntando aos presentes (adultos e adolescentes – estes na faixa 10-12 anos) o que entendiam por liberdade. Foi um exercício interessante e frutífero… Quase todos os adolescentes responderam com um previsível “Liberdade é ser livre” — que não deixa de estar certo, mas não ajuda muito, porque é redundante (ou tautológico, como dizem os filósofos), pois definir “liberdade” e definir “ser livre” é exatamente a mesma coisa…
É verdade que uma das adolescentes não entrou na redundância e respondeu, diferentemente de seus colegas de faixa etária, que “Liberdade é ter condições de obter ou alcançar o que a gente deseja”. Essa definição foi um progresso, porque ligou o conceito de liberdade a um outro conceito, o de desejo (ou ao conceito de querência, que é mais ou menos equivalente ao conceito de desejo – vou tratar os termos “desejar” e “querer” como basicamente sinônimos).
Na minha vez de sugerir uma definição, eu propus, para gerar discussão, ligar a liberdade a alguns outros conceitos (além do conceito de desejo). Sugeri que “Liberdade é ausência de coerção ou coação por parte de terceiros, isto é, uma situação ou condição em que a gente não é obrigado a fazer o que não deseja fazer, nem impedido de fazer o que deseja fazer”.
Um outro participante (um presbítero, fato que lhe dá alguma autoridade) lembrou bem que “A liberdade de um termina onde começa a liberdade do outro”. A lembrança foi oportuna, A liberdade dificilmente seria um problema se não fôssemos seres gregários, que vivem em família, em comunidades, em sociedade, cujo limite atual é a sociedade global de hoje.
Mais para o fim de sua apresentação a Paloma sugeriu que a liberdade tem de ver, não só com ausência de coerção e coação na busca da satisfação de nossos desejos, mas, também, com algo positivo como, por exemplo:
- Saber o que se quer – pois de nada vale a gente não ser impedido de fazer o que quer se a gente não quer nada ou (mais frequente) se a gente não sabe o que quer (ou não sabe exatamente o que quer, ficando em dúvida acerca de uma série de possibilidades);
- Saber como se chega aonde se quer – pois de nada vale a gente saber o que quer se a gente não tem a mínima ideia de como chegar lá (estando incluídos aqui os conhecimentos, as competências, as habilidades, as atitudes, os recursos materiais e financeiros que são necessários para que o projeto de vida se transforme em vida vivida);
- Saber que ninguém é bem sucedido na vida, mesmo tendo um bom projeto de vida e sabendo de cor e salteado o que se exige para transformá-lo em realidade, se não tiver algumas características personalíssimas, como foco, capacidade de concentração, disciplina (capacidade de administrar recursos, prioridades e especialmente aquele recurso que é o mais precioso de todos, o tempo), determinação, persistência, resiliência (capacidade de enfrentar dificuldades e mesmo fracassos, não desistindo diante da primeira dificuldade ou mesmo diante do primeiro fracasso), etc.
A Paloma terminou desafiando os presentes a refletir como a vida vivida em família (a família em que a gente nasce e a família que a maioria que se casa vem a formar), em vez de uma vida vivida sozinho, pode contribuir não só para a maior liberdade das pessoas, em vez de ser um obstáculo ou impedimento a essa liberdade, mas, também, para a sua felicidade, ligando, portanto, o tema “A Família e a Liberdade” com o tema “A Família e a Felicidade”, que virá a seguir.
Resolvi fazer este resumo, e propor algumas ideias a seguir, porque achei o tema interessante, e aproveito para parabenizar o Rev. Tiago Nogueira de Souza, pastor da nossa igreja, por tê-lo sugerido para os encontros da célula no mês de Maio — o mês das mães e das famílias – e agradecer à Paloma por sua contribuição à discussão do tema.
No que segue, pretendo organizar minha discussão do tema em cinco tópicos, que, porém, não receberão igual atenção neste artigo, a saber:
- A Liberdade como Algo Negativo (ou a liberdade como ausência de coerção e coação na busca do que se deseja)
- A Liberdade, a Moralidade e a Justiça (ou: o que se deseja fazer tem de ser moralmente bom, certo e benéfico para que realmente sejamos livres?)
- A Liberdade como Algo Positivo (ou: é preciso que tenhamos posse ou controle das condições necessárias, e, em seu conjunto, suficientes, para se obter ou alcançar o que se deseja ou o que se deve buscar?)
- Liberdade da Gente e a Liberdade dos Outros (ou: o que fazer, quando a nossa liberdade colide ou se choca com a liberdade ou os direitos dos outros?)
- A Liberdade e as Crenças, Sensibilidades, ou Preferências Alheias (ou: o que fazer, quando a nossa liberdade interfere com as crenças, as sensibilidades ou simplesmente as preferências dos outros – mesmo sem colidir ou se chocar com sua liberdade ou seus direitos?)
2. A Liberdade como Algo Negativo
A definição mais comum (e, talvez, intuitiva) de liberdade é: ausência de coerção e coação à nossa ação. Eu sou livre SE ninguém me impede de fazer o que eu quero fazer ou me obriga a fazer o que não quero fazer.
Quais os problemas com esse conceito de liberdade — ou será que ele é perfeito?
Esse conceito de liberdade, embora intuitivo, encontra alguns sérios problemas, que fazem com que não seja perfeito, embora não o invalidem totalmente. Vou procurar descrever sucintamente esses problemas.
Vou discutir, na sequência, dentro deste capítulo, estas duas questões:
- Em primeiro lugar, o que significa o termo “coerção”?
- Em segundo lugar, o que significa o termo “coação”?
O significado desses dois termos é parecido, mas eles não são idênticos ou sinônimos.
Antes de fazer isso, abro um parêntese de um parágrafo para registrar que, normalmente, prefiro dizer: o que significa o conceito de coerção (em vez de o termo “coerção”), ou o que significa o conceito de coação (em vez de o termo “coação”), pois, na realidade, o que tem significado ou sentido é um conceito, que é uma entidade lógica, e, portanto, universal, que se aplica a toda uma categoria de coisas ou entidades — não um termo. O termo, que é uma entidade linguística, pode ser de uma língua ou de outra, pode ser curto ou longo, pode estar escrito a mão, datilografado, impresso, exibido na tela, ter x número de letras, as letras podem estar escritas em qualquer cor (tudo isso se estamos usando linguagem escrita) – ou, então, o termo pode ser falado, se estamos usando linguagem oral. Sua função é designar o conceito, dar nome a ele, ou se refere a ele. O conceito é o referente do termo que o designa ou nomeia. Quando, em vez de usar um termo na linguagem comum, fazemos referência a ele, é praxe coloca-lo entre aspas. Quando nos referimos a um conceito simplesmente dizemos “o conceito de…”, seguido do conceito, sem aspas. Fim do parêntese.
A. A Questão da Coerção
Apesar do que foi dito no parêntese no fim imediatamente anterior a esta seção, vou começar discutindo os termos “coerção” e “coação”, nesta ordem, recorrendo ao dicionário, que lida com a linguagem e não com a lógica.
O Dicionário Houaiss esclarece que “coerção” é um termo (um substantivo feminino) com um sentido mais negativo e um sentido mais positivo.
- No sentido mais negativo, coerção é o ato ou o efeito de reprimir (coibir, refrear, etc.) que se faça, isto é, de impedir que alguém faça alguma coisa (que ele deseja fazer, ou está contemplando fazer, ou já está tentando fazer).
- No sentido mais positivo, coerção é o ato ou o efeito de compelir (forçar, impor, etc.) que se faça, isto é, de obrigar que alguém faça alguma coisa (que ele não deseja fazer).
A ação de reprimir ou compelir, impedir ou obrigar, é, em geral, realizada por quem tem autoridade e poder de fazer isso, como, por exemplo, o Estado, através de seus vários órgãos, em especial a temida Polícia. No caso familiar, os pais, em relação aos filhos que ainda não alcançaram a maioridade – pais que, no passado, estavam socialmente autorizados a usar até da força para reprimir ou compelir, impedir ou obrigar seus filhos em suas ações – e faziam isso com tapas na bunda, beliscões, coques, e, por vezes, usando chinelos, cintas, varas e até chicotinhos. Nas escolas, em especial nas de nível Primário (o Fundamental de hoje), os professores (mais frequentemente as professoras) davam reguadinhas nos dedos ou, de leve, até mesmo na cabeça de quem estava fazendo bagunça ou até mesmo apenas conversando com o colega, ou, alternativamente, colocavam os alunos “infratores” (isto é, que faziam bagunça ou apenas conversavam com os colegas), de pé, virados para a parede, no canto da sala, ou, mais antigamente, até mesmo de joelhos, em cima de grãos de milhos. Ou, então, enviavam os alunos para o diretor (ou diretora) da escola, que tinha poder de advertir, suspender ou mesmo expulsar (dependendo da gravidade da ação) o aluno que se comportava de forma não permitida ou indesejada. Quando eu estava no Ginásio (Fundamental II), em 1958, em Santo André, fui suspenso por três dias, porque quebrei (sem querer) uma vidraça da minha sala de aula. Havia um toquinho de giz no chão da sala e eu, no recreio, fui chutar o toquinho, e o meu sapato saiu do pé e quebrou a vidraça. Fui levado para a Diretoria pela Inspetora de Alunos, ela disse que eu havia quebrado a vidraça, eu pude explicar que havia sido sem querer, e contei como havia se passado a história, mas o Diretor, que parecia desconhecer o que era o perdão para uma primeira (e única) ofensa daquele que era o mais bem comportado e o melhor aluno da classe, me disse: “Para que o senhor saiba que giz não é bola de futebol e sala de aula não é campo esportivo, está suspenso por três dias”. Nesse caso, para mim, a suspensão foi uma punição, não uma coação, pois a ação já havia acontecido. Mas para os demais alunos, e mesmo para mim, no futuro, a suspensão agiu como coerção preventiva, se é que se pode haver tal coisa. Talvez coerção preventiva seja algo próximo de coação.
B. A Questão da Coação
O Dicionário Houaiss esclarece que coação vem de coagir, que é constranger alguém para que faça, ou para que deixe de fazer, alguma coisa — e acrescenta que esse constrangimento pode ser de várias modalidades: físico, psicológico (tendo que ver com o afeto ou outras emoções, como o medo ou a vergonha) ou moral (ético, tendo que ver com regras de comportamento). Quando o pai diz a um adolescente: “Você não vai sair de casa hoje, ponto final – estou trancando você em seu quarto até a hora em que a festa terminar”, trata-se de um constrangimento físico. Talvez quando o pai diga “Você pode ir à festa, mas se não estiver em casa às 22h, eu vou lá e arranco você de lá à força, se for preciso”, seja uma mistura de ameaça de constrangimento físico e constrangimento psicológico (porque apela à vergonha que o adolescente pode passar diante de seus amigos). Quando a mãe diz à criança pequena “Se você fizer isso a mamãe vai ficar muito triste”, trata-se de constrangimento emocional – verdadeira chantagem. Talvez quando a mãe diga “Se você fizer isso o Papai do Céu vai ficar triste e pode até punir você” seja uma mistura de constrangimento psicológico e moral (porque Deus, termo para o qual “Papai do Céu” é um eufemismo, supostamente é a fonte da moralidade, determinando o que é certo, o que é errado, e, indiretamente, o que não é nem uma coisa nem outra, sendo moralmente indiferente). [O leitor provavelmente percebeu que eu coloquei nas mãos do pai o constrangimento de natureza mais física, e nas mãos, ou na boca, da mãe o constrangimento de natureza mais psicológica e moral. Isso porque comigo era assim, quando eu era criança. Meu pai me batia até com razoável frequência; minha mãe nunca me bateu.] Pastores ou padres, na igreja, podem coagir também. Eles têm poder de repreender, suspender da comunhão, ou mesmo “cortar” (desligar) um membro da igreja. Esses poderes de pastores e padres fazem com que membros deixem de fazer, na igreja, coisas que gostariam de fazer ali… Mas às vezes a coação ministerial se aplica até a ações realizadas fora do âmbito da igreja: “Fiquei sabendo que o senhor esteve num bailinho, a semana passada, e, o que é pior, no domingo, na hora do culto…” Isso quer dizer: “Tome tento que estou de olho em você”…
Os atos de reprimir/impedir, compelir/obrigar e coagir/constranger pressupõem as seguintes condições:
- Que haja alguém (uma pessoa) que deseja fazer alguma coisa ou que não deseja fazer alguma coisa;
- Que haja uma outra parte (o Estado, os pais, os professores, os pastores e padres, ou até mesmo o cônjuge, tanto o marido como a mulher) que têm autoridade ou poder de reprimir (impedir) que a pessoa faça aquilo que ela deseja fazer, ou de compelir (obrigar) a pessoa a fazer aquilo que ela não deseja fazer, ou de constranger a pessoa a fazer o que não deseja fazer ou não fazer o que deseja fazer.
A primeira dessas duas condições não se aplica na situação (admitidamente rara) em que a pessoa não tem nenhum desejo: nem deseja fazer nada, nem deseja não fazer nada. Nessa situação, a pessoa supostamente consegue se livrar de todo desejo, de todo querer, de toda vontade própria – fica esvaziada de desejos, quereres e vontades. Isso pode parecer até impossível, mas, na história do Cristianismo, principalmente no início, houve uma tendência chamada de Asceticismo, que propunha que as pessoas se livrassem de todo desejo (de fazer ou de não fazer), porque só assim seriam verdadeiramente livres — e perfeitas, porque não pecariam, pois o pecado parece pressupor o desejo de fazer alguma coisa errada ou proibida (pecado de comissão) ou o desejo de não fazer alguma coisa certa e obrigatória (pecado de omissão).
No caso dos ascetas, eles em geral se mudavam para um lugar deserto, ou subiam em uma montanha alta, e se tornavam “eremitas”: viviam sozinhos, isolados de qualquer companhia. Se alguém, de vez em quando, não fosse até eles e cuidasse deles dando-lhes alimento (na verdade, forçando sua boca para que a abrissem, e enfiando o alimento goela abaixo, independentemente de seu desejo, que, por hipótese, inexiste), eles morriam logo e, assim esperavam (não uso o termo “desejavam” por razões óbvias), iam direto para o Céu, para lá gozar as delícias prometidas para os que um dia chegarem lá. (Há quem não ache graça nas supostas delícias prometidas para o Céu, mas sempre há quem goste.) Dado que o suicídio era considerado um pecado mortal, que, como tal, levava o suicida para o Inferno, e não para o Céu, o asceticismo era o caminho mais rápido para chegar ao Céu… .
Essa aberração, indiscutivelmente exótica, se relaciona ao fato de que a discussão da liberdade só faz sentido para pessoas que têm desejos (positivos ou negativos, isto é, de fazer ou de deixar de fazer alguma coisa) e vivem em sociedade, onde pode ser que outras pessoas (com autoridade, poder ou força bruta) as impeçam de fazer o que desejam ou as obriguem a fazer o que não desejam.
[Um pequeno parêntese. Pode argumentar-se que os ascetas têm pelo menos um desejo: o de não ter nenhum desejo, mas quem assim argumenta pode ser acusado de estar forçando a barra um pouco…]
Em outra hipótese, um náufrago em uma ilha deserta de humanos é inevitavelmente livre, nesse sentido de não ser impedido (por outras pessoas) de fazer nada, nem obrigado (por outras pessoas) a fazer nada, nem coagido (por outras pessoas) a fazer ou deixar de fazer o que quer que seja.
Como nós normalmente vivemos em família, em comunidade, e, no plano mais amplo, em sociedade, em que existem outras pessoas, algumas delas com autoridade e poder de interferir com o que desejamos fazer ou deixar de fazer, a definição de liberdade como ausência de coerção e ou coação faz sentido e tem utilidade, mas essa utilidade pode ser limitada, no caso de pessoas que, voluntariamente ou não, vivem sozinhas, em isolamento. Mas esse conceito de liberdade estabelece os contornos necessários para que a questão da liberdade pessoal (civil, política) seja discutida de forma frutífera.
3. A Liberdade, a Moralidade e a Justiça
Filósofos gregos clássicos e teólogos cristãos, desde a antiguidade, sempre insistiram que deve haver um elo de ligação entre a liberdade e a virtude (moralidade, justiça, etc.), e que, sem esse elo, o que poderia parecer liberdade não passa de libertinagem. Para os que assim se posicionam, impedir uma pessoa de fazer o mal (roubar, corromper, deixar-se corromper, explorar, violentar, matar, ofender, discriminar, ter preconceito racial, étnico, social, sexual, etc.), remover a liberdade de quem deseja ou contempla agir assim, ou já agiu nesse sentido, algo legítimo, perfeitamente defensável, quiçá obrigatório – em outras palavras, é um bem, e não um mal. Afirma-se que o que leva as pessoas a assim agir, ou desejar assim agir, não é amor à liberdade, é uma caricatura disso, é amor à libertinagem. Não é livre quem assim age: é um libertino.
Neste item, não é preciso dizer mais do que isso, agora. Nós vivemos hoje no Brasil uma situação extrema produzida por esse ponto de vista, instalado na cabeça dos membros do Supremo Tribunal Federal – em especial na cabeça pelada de um deles. Para os defensores do chamado Liberalismo Clássico, que eu esposo, há uma clara diferença entre as primeiras ações mencionadas (roubar, corromper, deixar-se corromper, explorar, violentar, matar, que são crimes até nas mais liberais das sociedades), e as demais ações citadas, como ofender, discriminar, ter preconceito racial, étnico, social, sexual, etc., que só são crimes em sociedades tipicamente autoritárias, que estão dispostas a criminalizar as atitudes, os valores e até mesmo as opiniões e as piadas dos cidadãos. Basta dizer isso neste capítulo, pois ele se liga com o capítulo seguinte.
4. A Liberdade como Algo Positivo
Vários filósofos, especialmente aqueles que têm uma orientação de esquerda, e que acreditam que a igualdade social e econômica é mais importante do que a liberdade formal (como descrita nos dois capítulos anteriores, e que eles descrevem como “liberdade burguesa”), têm insistindo que a liberdade precisa incluir, além dos aspectos formais (e negativos) já descritos [ausência de coerção e coação], um elemento substantivo (positivo): é preciso não somente que as pessoas não sejam impedidas (que sejam desimpedidas) de agir como desejam, ou que não sejam obrigadas (que sejam desobrigadas) a agir como não desejam, mas, também, que tenham acesso fácil e acessível às condições necessárias, e, em seu conjunto, suficientes, para obter ou alcançar o que desejam ou acreditam que devem buscar.
Argumentam elas: de que vale que ninguém me impeça de fazer o que desejo e que ninguém me obrigue a fazer uma outra coisa qualquer, que não desejo fazer, se eu não tenho acesso às condições necessárias (e, em seu conjunto, suficientes) para fazer o que desejo fazer?
Para ilustrar com exemplos extremos: de que vale eu desejar muitíssimo ter uma Ferrari se o dinheiro que eu tenho só me permite comprar um Toyota? De que vale desejar muitíssimo um carro Toyota se o dinheiro que eu tenho só me permite comprar uma motocicleta de 150 cilindradas? De que vale desejar muitíssimo uma motocicleta Harley Davidson se o dinheiro que eu tenho só me permite comprar uma bicicleta?
Note-se que, nesses exemplos, a limitação que torna difícil ou quase impossível que eu consiga obter o que eu desejo ter é de natureza econômico-financeira. Mesmo que eu não seja exatamente o que se chama de pobre, pode ser que não também não seja exatamente o que se chama de rico – pelo menos rico biliardário ou milionário, o suficiente para dirigir uma Ferrari.
Mas há outros tipos de limitação: de que me vale eu desejar muitíssimo ser um jogador profissional de vôlei ou basquete se minha altura é apenas 1,60m? Ou desejar muitíssimo me tornar campeão mundial de box, na categoria de pesos pesados, se sou magrinho, meu esqueleto é pequeno, e não há quantidade de vitamina, comida e exercício que me faça crescer em altura, ficar mais forte e pesado, para sequer entrar nessa categoria – a minha categoria natural sendo peso pena…
Ainda outro tipo, mas na mesma categoria ampla: de que vale eu desejar ser cantor ou músico, se minha voz é feia (soa como “taquara rachada”) e eu sou totalmente desafinado?
Ainda outro tipo, talvez na mesma categoria ampla, ou, quem sabe, em uma sub-categoria diferente: de que vale eu desejar ganhar o Prêmio Nobel de Física ou de Literatura, se eu sou meio tapado (por assim dizer) e tenho enormes dificuldades com matemática e ciência, em um caso, ou com escrever com elegância, beleza e profundida sobre os problemas dos seres humanos ou das sociedades que eles criam?
Nas três últimas hipóteses o problema não é financeiro. Ele tem que ver com limitações físicas (ou biológicas) e mentais (psicológicas) das pessoas.
E há ainda, ou pelo menos assim parece, o fator “sorte” e “azar”. Algumas pessoas, mesmo que limitadas física ou mentalmente, parecem nascer e viver com aquilo, que vocês sabem o que é, virado para a Lua: possuem uma sorte que desafia todos os cálculos de probabilidade (ou improbabilidade). Elas parecem ter sido eleitas por um poder maior para “dar certo”. Outras pessoas, no entanto, sem nenhuma deficiência física ou mental, belas, atraentes, inteligentes, parecem nascer e viver marcadas pelo azar. Tudo o que fazem “dá errado”.
Mas não devemos misturar categorias que não podem e não devem ser misturadas:
- Categorias sociais / econômicas;
- Categorias físicas / biológicas;
- Categorias mentais / psicológicas.
As condições sociais e econômicas que temos ou não temos, em um determinado momento, nós podemos deixar de ter ou vir a obter no momento seguinte – e as que viermos a ter no futuro podem ser melhores ou piores do que as que agora temos. O importante é que, talvez, das três categorias listadas acima, esta categoria é a que mais está debaixo do nosso controle – e de fatores como sorte e azar. Podemos ser riquíssimos e em pouco tempo perder tudo – e vice-versa: podemos ser muito pobres e ganhar sozinhos uma verdadeira fortuna na Loteria. No entanto, mesmo que percamos basicamente tudo que temos, se administrarmos bem a nossa vida, e a sorte bafejar na nossa nuca, podemos voltar a ter o que tínhamos – ou mais.
Por ser essa categoria relativamente fácil de manipular ela é a que mais se presta a manipulações políticas por parte de pessoas que se convenceram de que o “erro” de criar pessoas que são capazes de ganhar (na verdade, fazer) muito dinheiro e outras que mal conseguem ganhar o suficiente para viver, e mal, deve ser corrigido por políticas públicas de governos supostamente iluminados que se dão a missão de redistribuir a riqueza do país, tirando dos que têm mais e dando para quem tem menos, ou não tem quase nada. O resultado é o que se vê nos países da América Latina que têm tentado esse caminho, como Cuba, Venezuela, e, mais recentemente, a Argentina. Como disse muito bem Mme. De Staël na França do século 18, os socialistas preferem a igualdade na miséria e no sofrimento do Inferno à desigualdade na riqueza e no bem estar propiciado pelos diferentes galardões do Céu.
São os países que conseguiram implantar a maior liberdade possível, inclusive no setor econômico, que permitiram que seus cidadãos enriquecessem muito mais do que os cidadãos dos países que buscam a igualdade sócio-econômica, mesmo que as desigualdades nas riquezas e no bem estar nesses país seja maior do que a dos países socialistas – porque a igualdade destes é a igualdade na pobreza e na miséria, que é relativamente fácil de alcançar.
As condições físicas e biológicas são mais difíceis de alterar do que as desigualdades sócio-econômicas, embora mesmo entre elas haja variações.
É possível, através de alimentação, exercícios, medicamentos (drogas e anabolizantes) e cirurgias alterar o peso, a complexão física, e a força das pessoas, mas alimentação, exercícios, medicamentos e cirurgias não são suficientes para alterar significativamente a altura das pessoas ao longo de sua vida, espichando seu esqueleto e seus músculos para que ela aumente sua altura, o comprimento de seus braços e pernas, sua flexibilidade e agilidade, etc. – embora alimentação e exercícios possam melhorar sua flexibilidade e agilidade, sem aumentar sua altura.
A beleza física que a gente tem, em um determinado momento, a gente pode alterar, em um outro momento, através de alimentação, exercícios, medicamentos, e procedimentos cirúrgicos.
Pode a melhor ciência de hoje transformar um homem em uma mulher, ou uma mulher em homem, biologicamente, de modo que a pessoa resultante da transformar exerça todas as funções biológicas que uma pessoa não transformada normalmente exerce – o homem transformado em mulher sendo engravidado pelo espermatozóide da mulher transformada em homem? Hoje isso não é possível. Se vier a ser possível, será que ciência que fizer isso permitirá também a reversão do processo se a pessoa não ficou satisfeita com o resultado depois de algum tempo?
Passando para as condições mentais e psicológicas, hoje se tem confiança quase sem reserva de que é possível alterar as características mentais e psicológicas mais básicas de uma pessoa, seja através da educação escolar (recorrendo à doutrinação, ao condicionamento, até à lavagem cerebral, em nível quase idêntico ao adotado por um país em relação a prisioneiros de guerra inimigos. O fato de que adolescentes que mal saíram da infância agora se afirmem ser do “gênero” oposto (ou de gênero diferente, pois não parece haver limites à “generosidade” das pessoas…), afirmando ter nascido, erroneamente, com o corpo de uma pessoa do sexo oposto, e desejando mudar não só de gênero (que, na opinião de alguns deles, é algo com que nasceram), mas também de sexo.
Existe muito charlatanismo e em afirmações ideológicas que tentam passar por afirmações científicas, filosoficamente defensáveis. Talvez o psicólogo mais corajoso a tentar decifrar os dilemas em que a condição humana se enveredou hoje em dia, debaixo de uma intelectualidade dominada pelo pós-modernismo esquerdista, seja Martin E. P. Seligman, em seu livro What You Can Change… and What You Can´t: Learning to Accept Who You Are (1993). Sua conclusão é que embora haja aspectos da pessoa e da personalidade humana que podem ser mudados, também há uma quantidade significativa de aspectos que não podem ser alterados – porque fazem parte da núcleo da natureza humana, que o Pós-Modernismo Esquerdista faz de conta que não existe.
Todos nós nascemos mais ou menos iguais, em termos de quem somos — embora nasçamos em diferentes tempos (épocas e eras), lugares e circunstâncias. É preciso distinguir essas duas coisas: quem somos, em nós mesmos (nossas características pessoais, as externas, físicas / biológicas, e as internas, mentais / psicológicas), e em que em que tempo, lugar e circunstâncias (o contexto específico em que nos foi dado nascer).
Certamente faz uma diferença gigantesca o tempo e o lugar em que nascemos. Quem nasce no século 21, na área mais rica de Zurique ou Genebra, ou no Vale do Silício, ou no Palácio de Buckingham, tem muito mais oportunidade do que quem nasceu na Índia do século 19, ou na Sibéria dos anos 30 do século 20, ou quem nasceu na Cuba da segunda metade do século 20, ou quem nasceu na terra em que Cabral veio parar, antes de Cabral chegar aqui, numa oca no meio da Floresta Amazônica, em meados do século 15 – ou mesmo quem nasce hoje em uma tribo indígena isolada na Amazônia venezuelana ou brasileira. A coisa é tão óbvia que é até constrangedor assinalá-la. Quem nasceu antes do século 20 não teria condições de desejar, ou sequer de imaginar, por mais ousada que fosse sua imaginação, ser piloto de Fórmula 1 ou mesmo âncora de noticiário de televisão. Quem nasceu nos primeiros anos do século 20 não teria podido desejar, ou sequer imaginar, ser espaçonauta ou mesmo piloto de avião a jato, ou, muito menos, influenciador digital ou qualquer coisa do gênero.
Se fixarmos o tempo como agora e o lugar como o Brasil, fazem muita diferença as circunstâncias em que a pessoa nasce – se numa oca indígena na Amazônia, se na comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro, ou se numa cobertura da Vieira Souto, ou se numa mansão ou num palacete do Morumbi. Faz muita diferença – mas não faz toda diferença. Um nordestino pobre está hoje em seu terceiro mandato na Presidência da República (embora só Deus saiba os detalhes acerca de como ele foi posto lá, e do quanto isso vai nos custar), e gente como Neymar, que nasceu em família pobre, é hoje famoso, tem muito dinheiro, mora na Europa, é capaz de conquistar as mulheres mais lindas do mundo, etc.
Essa afirmação vale sobre o que somos, por fora, por assim dizer. Nascemos pelados, com uma determinada altura (no caso comprimento), algo por volta de 50cm, com um determinado peso, algo por volta de 2.500 a 3.500g, e sem um tostão no bolso – na verdade, sem bolso, posto que nascemos pelados… A cor de nossa pele e de nossos olhos pode variar, a cor e o formato de nosso cabelo também, o formato de nossos olhos, de nosso nariz, de nossa boca, idem. Mas nada indica que isso, por si só, signifique grande coisa – apesar de Michael Jackson ter achado tudo isso muito importante. Embora Michael Jackson tivesse dinheiro para fazer quase tudo isso, a sua liberdade negativa (ninguém o impediu de fazer o que desejava) e a sua liberdade positiva (tinha dinheiro suficiente para obter mesmo as alterações mais exóticas em sua aparência), foi terrivelmente infeliz e morreu cedo.
Algum esquerdista vai objetar que o que importa não é quanto dinheiro quem nasce tem no momento de nascer, mas quanto dinheiro sua família tem e ele tem chances de vir a desfrutar e, oportunamente, herdar (ainda que apenas parcialmente). É o dinheiro que a família tem que vai fazer alguma diferença, talvez muita, não há como negar que seja verdade em muitos casos. Mas dinheiro também é algo que se obtém ao longo da vida através do trabalho e outras atividades de menor ou maior risco (loterias, apostas, etc.). Lula era pobre. É muito provável que tenha ficado bilionário roubando, mas ficou. Neymar ficou milionário, como Pelé, antes dele, e outros, que hoje não podem aparecer na Europa com receio de serem presos.
E por dentro, por assim dizer?
Tudo indica que, neste caso, a igualdade é menor e a variação maior. Mas, novamente, nosso amigo esquerdista pode discordar…
Irmãos de pai e mãe, mesmo gêmeos, diferem entre si. Um é calmo, tranquilo, espera sossegadinho que a mãe lhe dê de mamar, mama e depois come devagar, não tem muita curiosidade, depois de aprender a falar não fica falando o tempo todo; o outro é agitado, não para de se mexer, chora de fome bem antes do prazo previsto para a mamada seguinte, mama rápido, depois parece que quer comer tudo de uma vez só, mexe em tudo, fuça aqui, ali e acolá, depois de aprender a falar adora exercer a arte, conversa muito, faz perguntas o tempo todo. Várias dessas características parecem ser inatas. Pode ser possível alterá-las, mas não será fácil. O estudo de gêmeos separados um do outro na infância mostra que, mesmo tendo sido criados por pessoas diferentes, em lugares diferentes, em circunstâncias diferentes, eles continuam, depois de adultos, a ser muito parecidos.
5. Conclusão
É complicado, hoje em dia, tirar uma conclusão desses fatos. Mas vou ser ousado e tentar tirar três.
A primeira conclusão é que a liberdade como algo negativo, como ausência de coerção e coação, é a opção mais sensata. O mundo mais livre possível é o mundo em que se limitam ao máximo as interferências das pessoas com as liberdades de outras pessoas. Para isso, um estado mínimo, cujas funções se restringem a proteger a liberdade e os direitos das pessoas, se faz necessário.
A segunda conclusão é que é verdade que crianças, enquanto não alcançam a chamada idade da razão, algo que acontece por volta dos doze anos, precisam ser cuidadas e principalmente protegidas, por seus pais e por sua família, contra sua própria curiosidade e impetuosidade, contra a maldade alheia, e contra o azar (a má sorte). À medida que crescem, a partir daí, devem gradativa e gradualmente assumir as rédeas de sua vida e responder pelos seus desejos, pelas suas escolhas, pelas suas decisões, e pelas suas ações e as consequências delas.
A terceira conclusão é que sua educação deve expô-las ao fato de que sua liberdade negativa, por mais importante e valiosa que seja, é uma faca de dois gumes, e que, por isso, é preciso que elas desfrutem dela e a utilizem com responsabilidade, MAS com total respeito pela igual liberdade e pelos iguais direitos dos seus semelhantes. A melhor maneira que conheço de conseguir isso é uma educação centrada mais no desenvolvimento da virtude e na formação do caráter, propiciada às crianças, em condições ideais, em casa, na igreja, em ambientes focados no desenvolvimento humano (inclusive moral e emocional), e não numa escola que considera que a ciência representa a única forma de conhecimento, e que a ciência é moralmente neutra e independente de valores. A boa literatura, em especial a encontrada nos clássicos, propicia uma educação muito melho do que a mais cara e pretensamente sofisticada de nossas escolas, inclusive as internacionais que cobram mais de dez mil reais por mês de pais desavisados.
A quarta conclusão é que tudo indica que a natureza humana, pelo menos em seu núcleo essencial, realmente é um fato, e que ignorar esse fato, ou pior, fazer de conta que ele inexiste, é o pior dos caminhos. Parece que os intelectuais do Pós-Modernismo Esquerdista, que hoje infestam nossas escolas, nossa mídia, nosso universo cultural, embora se pretendam ateus, acreditaram em parte da história bíblica da Criação, naquele aspecto que, nas palavras da Serpente, se nossos primeiros pais comessem do fruto proibido que estava no meio do Jardim do Éden, eles se tornariam como deuses. A intelectualidade esquerdista pós-moderna acha que se tornou como deuses, desconstruindo crenças e valores, e tentando desconstruir até mesmo a natureza humana, em um de seus aspectos essenciais, a sexualidade humana, que molda a nossa identidade.
Em Salto, 23 de Maio de 2023.
Categories: Liberalism
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