C S Lewis e a Educação: 80 Anos Depois – Parte 2

Table of Contents

Nota Preliminar. 1

6. A Metafísica e a Epistemologia da Filosofia Clássica. 3

7. A Transição: O Ceticismo e o Relativismo. 7

Notas da Parte 2. 10

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Nota Preliminar

Este artigo contém quatro partes. Esta é a segunda. Ela foca, basicamente, a primeira de três partes auxiliares do tema: C S Lewis e a Educação [1]. Essas três partes são:

A primeira parte do artigo, publicada ontem (24.2.2023), tem, como ponto de partida e foco o livro de C S Lewis, The Abolition of Man, publicado em 1943 ou em Janeiro de 1944, e que se baseou em três conferências que ele pronunciou em uma universidade inglesa nos dias 24 a 26 de Fevereiro de 1943. A primeira conferência foi pronunciada, portanto, exatamente oitenta anos atrás, no dia em que foi publicada a primeira parte deste artigo. Daí o subtítulo deste artigo, que é minha modesta homenagem a Lewis, a esse seu livro, e à sua obra, em geral, que é uma crítica formidável à Modernidade e ao Cientificismo (ou Cientismo, como preferem alguns). Suas propostas na área da Educação se aninham nesse contexto.

Para a Educação, no entender de Lewis, a Literatura, em especial, e a Arte (as Artes), em geral, são muito mais importantes do que a Ciência (as Ciências). Em retrospectiva, olhando pelo retrovisor, creio que foi por isso que eu, em 1961, depois de experimentar um ano do Curso Colegial Científico, optei por fazer o Curso Colegial Clássico, perdendo um ano mas fazendo uma escolha que norteou todo o restante da minha vida.

O meu estilo de escrever sobre um autor ou um livro é livre e razoavelmente dispersivo, com vários parênteses que fogem do assunto, com recortes autobiográficos aparentemente irrelevantes (exceto para mim), com notas de fim de texto quilométricas sobre questões ou detalhes que muitos acham que não caberiam em um artigo como este.

Depois de escrever minha Tese de Doutoramento, de 1970 a 1970, sobre David Hume, que foi um “catatau” de 620 páginas que consistiu basicamente de uma exegese stricto sensu da obra de Hume no que tem de relevante para a Metafísica e a Teologia (exceto no primeiro e no último capítulos da tese, que fizeram, o primeiro, uma introdução histórica à problemática que Hume enfrentou sobre o tema, e, o último, uma conclusão que discutiu o impacto que suas ideias sobre o tema tiveram sobre o pensamento filosófico posterior), abandonei esse estilo exegético caracteristicamente acadêmico. Hoje em dia, meus escritos são livres e dispersivos, cheios de parênteses, digressões e notas, como os descrevi. Mas isso veio a acontecer de forma lenta e gradual – que custou para se tornar geral e irrestrita.

Tomei a decisão de consistentemente adotar esse estilo quando li o Prefácio que Rubem Alves escreveu para um livro meu, publicado pela primeira vez em 2003. Disse ele no primeiro parágrafo desse Prefácio:

“Quero, preliminarmente, esclarecer o leitor sobre a minha maneira de ler, pois é ela que determina minha maneira de escrever. Eu leio antropofagicamente: devoro os livros que amo. Depois de devorá-los eles entram no meu sangue. Circulando no meu sangue deixam de pertencer ao autor: passam a ser parte de mim. Assim, ao escrever sobre um livro, escrevo sobre ele tal como foi por mim digerido amorosamente. Tolo seria um homem apaixonado que, ao escrever sobre o jantar que sua amada lhe preparou, transcrevesse as receitas dos pratos que foram servidos… Assim, não vou transcrever e nem resumir. Vou falar sobre aquilo que esse livro fez comigo depois de digerido…” [2]

Desde que tomei consciência desse estilo de ler e de escrever, tão bem descrito por Rubem Alves, resolvi adotá-lo, também, com a devida vênia do meu querido amigo. Esta é apenas mais uma das muitas coisas que aprendi com ele. Este artigo, em suas três partes, é escrito nesse estilo.

Venho aprendendo muito com C S Lewis, também, em especial em seus comentários e “tiradas” sobre como ler – e escrever – um livro: mergulhando nele, deixando de lado as ideias próprias, inclusive os preconceitos, e dedicando-me inteiro, e com cem por cento de atenção, ao ato de ler – ou de escrever.

Esta Segunda Parte discute a Cultura Filosófica Clássica que Lewis adotou e defendeu até o final de sua vida. Lewis não era simplesmente um professor de Literatura Medieval e Renascentista. Ele era verdadeiramente um homem dessa era. Ele se considerava um dinossauro numa era em que dinossauros estavam extintos, sendo meras peças de Museus de História Natural.

A Terceira Parte irá discutir a Cultura Filosófica Moderna, firmada por René Descartes.

A Quarte Parte irá discutir a Cultura Filosófica Contemporânea (de Lewis), que Lewis rejeitou e sistematicamente criticou.

C S Lewis renunciou sua cidadania no Mundo Moderno (incluindo o Contemporâneo), e optou por viver na Cultura Clássica.

O texto, nesta segunda parte, é relevante para entender o que Lewis adota e defende. A terceira e a quarta parte, o que ele rejeita e critica. O texto dessas três partes tem vida própria e reflete ideias que venho ruminando e digerindo há cerca de 25 anos (desde 1998, ano que, como 1961, representa um marco importante no meu desenvolvimento intelectual). Foi nesse ano que eu, entre outras coisas, resolvi concentrar na Internet todo a minha atividade e produção intelectual, livrando-me das peias e amarras que o mundo acadêmico procura impor.

Vou repetir algo semelhante a esta Nota Preliminar na publicação de todas as partes, porque haverá leitores que irão encontrar apenas uma parte do artigo.

Eduardo Chaves, 25 de Fevereiro de 2023 (Sábado depois do Carnaval de 2023. Em 1943, 25 de Fevereiro foi uma Quinta-feira. O Sábado depois do Carnaval em 1943 caiu no dia 13 de Março.)

6. A Metafísica e a Epistemologia da Filosofia Clássica

Neste capítulo deixarei C S Lewis um pouco de lado para discutir algumas características selecionadas da Filosofia Clássica e da Filosofia Moderna. Mas nem de longe farei um tratamento exaustivo da questão. A educação que é objeto de crítica de C S Lewis é a Educação Moderna (que, neste caso, inclui a Educação Contemporânea).

Para entender o “bloco filosófico” composto pela Filosofia Moderna e pela Filosofia Contemporânea (bloco ao qual vou me referir apenas como “Filosofia Moderna”, para simplificar, salvo se for necessário fazer referência a apenas uma das partes), é necessário entender o “bloco filosófico” que o precedeu, composto pela Filosofia Antiga e pela Filosofia Medieval (ao qual vou me referir apenas como “Filosofia Clássica”, também para simplificar, novamente, salvo se for necessário fazer referência a apenas uma das partes).

Embora haja consideráveis diferenças entre a Filosofia Antiga e a Filosofia Medieval, e mesmo entre as diversas correntes que constituíram uma e outra, é possível detectar uma certa tendência básica que aqui chamo de Filosofia Clássica. O mesmo acontece com a Filosofia Moderna e a Filosofia Contemporânea, que aqui normalmente chamo de Filosofia Moderna. Repetindo, para que não haja dúvida ou confusão, daqui para frente, a menos que seja necessário enfatizar as diferenças dentro dos períodos, das correntes e das tendências que esses dois blocos englobam, vou usar, simplesmente, as expressões grifadas neste parágrafo.

Uma observação final antes de entrar nos “propriamente ditos”… Meu primeiro curso no Doutorado na University of Pittsburgh foi um Seminário, ministrado pelo filósofo mais respeitado no Departamento de Filosofia, Wilfrid Sellars, sobre o tema “Classical Issues in Metaphysics and Epistemology”. Foi um seminário no qual Sellars, a estrela que todos queriam ouvir, falou pouquíssimo, mas orientou o seminário de tal maneira que todos os participantes aprenderam muito… Vou tentar seguir nos passos dele e abstrair, do conjunto das ideias que configuram a filosofia de uma era ou de um período, aquelas que me parecem essenciais – e elas quase sempre fazem parte da Metafísica e da Epistemologia.

Para a Filosofia Clássica, em primeiro lugar, a existência daquilo que a Filosofia Moderna convencionou chamar de “mundo exterior“, a saber, a realidade física externa à nossa mente, não é um problema. Para ela, é pacífico que existe um mundo físico fora de nossa mente, que esse mundo é percebido por nossos órgãos dos sentidos, e que a percepção desse mundo se torna parte essencial do que descrevemos como nosso conhecimento – a parte do conhecimento chamada de “conhecimento empírico”. Para os filósofos clássicos, isso não precisava ser demonstrado, porque não havia se tornado um problema. Para eles, isso era auto evidente. Era parte do senso comum (“sensus communis”) da Cultura Filosófica Clássica que aquilo que nós percebemos através dos órgãos dos sentidos é o mundo exterior a nós. O objeto da percepção é, para eles, sem dúvida alguma, o mundo exterior. Logo, virtualmente ninguém duvidava disso, que existe um mundo fora de nós, que é cognoscível a partir de nossa percepção dele. Essa premissa fundamental da parte empírica de nosso conhecimento não era questionada.

Como veremos na Seção B deste capítulo, foi René Descartes, o Pai da Filosofia Moderna, que lançou a moda de que é necessário, como pressuposto e ponto de partida da atividade filosófica, duvidar de tudo, até mesmo do que é auto evidente, adotar um Ceticismo Radical em relação a tudo em que acreditamos — isso antes de começar a filosofar. Essa dúvida radical e abrangente é metodológica, “pro forma” no caso de, Descartes. Isso quer dizer que ele, na prática, não duvidava de tudo. Mas considerava tudo dubitável que não fosse absolutamente claro, distinto e certo. E esse “tudo” incluía o fato da existência de um mundo exterior a nós e o axioma de que nosso conhecimento empírico, aquele conhecimento que é derivado de nossas percepções, que nos vêm pelos nossos órgãos dos sentidos, é exatamente esse mundo exterior.

Mas é preciso registrar que, na Filosofia Clássica, a percepção é apenas um dos ingredientes de nosso conhecimento empírico – ela é essencial, mas não age sozinha. Nosso conhecimento não é apenas de “particulares”, ele envolve também  os chamados “universais”, hoje designados como conceitos – e ninguém percebe conceitos, que são ideias gerais ou entidades abstratas que, em princípio, abrangem uma multidão de particulares. Conceitos empíricos  são construídos pela nossa mente, com base nos dados da percepção sensorial. Assim, nosso conhecimento – mesmo o nosso conhecimento empírico – não se esgota no componente perceptual: ele vai além da percepção para a concepção, a formação (na realidade, construção) de conceitos, e estes abrangem e englobam inúmeros particulares. O conhecimento humano é, no fundo, conceitual. Mesmo o conhecimento empírico.

Para a Filosofia Clássica, em segundo lugar, essa realidade física contém objetos (coisas) e fatos. Aqui começamos a ver como o intelecto age em cima de nossas percepções. Nós percebemos coisas e essas coisas, que chamamos de objetos, têm determinadas características, que denominamos de seu estado – os estados das coisas. E as coisas estão em determinadas posições ou relações umas com as outras. Assim, objetos são coisas e fatos são estados de coisas – estados isolados, voltados para si próprios, ou estados em relação a outros objetos ou estados de coisas. Tanto objetos como estados de coisas existem na realidade: eles são descobertos pelos nossos sentidos, com a ajuda do nosso intelecto. Eles claramente não são inventados, construídos, ou constituídos totalmente pela nossa mente.

Além disso, e em terceiro lugar, para a Filosofia Clássica o mundo exterior não é caótico: ele é objetivamente ordenado. A realidade não é composta meramente de objetos e fatos desconexos, isolados uns dos outros. Objetos e fatos se vinculam e conectam uns aos outros, através de vários tipos de relação. Entre esses tipos de relação o principal e mais importante é o tipo de relação de causalidade.

A relação de causalidade, para a Filosofia Clássica, existe objetivamente na realidade: um evento real e efetivamente causa o outro, e isto é um fato que pode ser constatado pela percepção, ajudada pelo intelecto. A realidade não é composta apenas por “fatos simples” — evento “a” e evento “b”, por exemplo — mas também por “fatos complexos” — evento “a” e evento “b” em contiguidade no espaço e/ou no tempo, ou, mais importante, evento “a” causando evento “b”, por exemplo. A relação de causalidade, portanto, não é redutível à relação de contiguidade espaço-temporal entre dois eventos, como diria Hume, já no período moderno (século 18) – ela é uma relação diferente e especial. A realidade em que vivemos comporta e contém os chamados nexos causais entre eventos.

Isto significa que o mundo possui ordem, e que essa ordem existe independentemente do ser humano. Não é o ser humano que impõe ordem à realidade: esta já é ordenada, cumprindo ao ser humano apenas descobrir a ordem que já existe. É esse fato que possibilita o conhecimento, até mesmo o conhecimento científico.

A realidade, para a Filosofia Clássica, contém, portanto, fatos, simples e complexos. Esses fatos, como visto, são estados de coisas que existem na realidade: eles são descobertos, não inventados, construídos ou constituídos. Conquanto possam existir coisas e estados de coisas imaginários ou fictícios, eles não devem ser descritos como “fatos imaginários” ou “fatos fictícios”. Fatos são coisas reais. Imaginação e ficção é outra coisa. O ser humano é capaz de imaginar “fatos” (assim, entre aspas) que não existem na realidade. É assim que ele cria a chamada literatura de ficção, cujas obras em geral contêm uma informação mais ou menos assim: “Esta é uma obra de ficção. Todos os personagens, fatos e eventos descritos foram criados pela imaginação do autor. Qualquer semelhança que eles possam ter com pessoas, fatos e eventos da realidade não passa de pura coincidência”.

Para a Filosofia Clássica, em quarto lugar, a verdade é uma relação de correspondência ou adequação entre os juízos (proposições, declarações, “statements”) de um sujeito e os fatos que são objeto desses juízos. Se o juízo emitido por um sujeito corresponde aos fatos, ele é verdadeiro; se não existe essa correspondência entre o juízo emitido e a realidade, o juízo é falso. A realidade, em si, não é nem verdadeira nem falsa: ela simplesmente é. São nossos juízos acerca da realidade que podem ser verdadeiros ou falsos.

Há situações em que não é possível determinar se um juízo é verdadeiro ou se ele é falso, mas de que ele é ou verdadeiro ou falso (não havendo outra possibilidade – tertium non datur) não se pode duvidar. Esse é um axioma básico (um princípio fundamental, uma lei) da Lógica, chamado de Terceiro Excluído. (Há um outro axioma da Lógica que é: se um enunciado é verdadeiro, ele é verdadeiro, e se ele é falso, ele é falso: ele nunca é verdadeiro e falso (ao mesmo tempo e em relação aos mesmos aspectos). Esse é o axioma chamado da Não Contradição.

Para a Filosofia Clássica, em quinto lugar, temos evidência da verdade de nossos juízos empíricos através principalmente dos órgãos dos sentidos, pela percepção sensorial. E aquilo que nos é dado na percepção é nada mais, nada menos, do que a realidade, propriamente dita, os objetos e os fatos que compõem o mundo externo a nós. Embora seja notório que às vezes nos enganemos em nossa percepção e em nossos juízos empíricos, a essa constatação não se dá importância muito grande na Filosofia Clássica. Na sequência do processo, ou posteriormente, será possível constatar e corrigir o erro.

Para a Filosofia Clássica, em sexto lugar, é possível, partindo dos sentidos, descobrir fatos sobre a realidade que transcende os sentidos: a chamada realidade supra-sensível (ou o que comumente se chama de “sobrenatural”). Em geral, acreditava-se, no período da Filosofia Clássica, que era possível descobrir fatos acerca de Deus (por exemplo) pela chamada “via natural”, ou seja, apenas refletindo sobre os fatos descobertos pelos sentidos, sem necessidade de nenhuma “revelação especial”, como a que muitos cristãos supõem estar contida na Bíblia que chamam de Sagrada. O livro (em cinco volumes) de Tomás de Aquino, chamado Summa Contra Gentiles, era um manual de teologia natural racional, não revelada.

Para a Filosofia Clássica, em sétimo lugar, o que chamamos de conhecimento é o conjunto de juízos verdadeiros e evidenciados nos fatos que compõem a realidade sensível ou supra-sensível. O conhecimento baseado em dados sensoriais é sensível; o conhecimento inferido de dados sensoriais, mas que se refere a objetos, fatos e eventos que estão além da realidade empírica, transcendendo-a, é supra-sensível. Além disso, para que haja conhecimento é necessário que haja um sujeito, que conhece, e um objeto, que é conhecido. O conhecimento se dá nessa relação entre sujeito e objeto.

A Filosofia Clássica não duvida de que tenhamos conhecimento da realidade: ela é plenamente confiante no conhecimento humano. Na verdade a confiança é tanta que ela pode falar, sem embaraço, em milagres. No período da Filosofia Clássica não há maiores problemas com o conceito de milagre. Um milagre é um evento que, se ocorrer, viola ou suspende a ordem objetiva existente na realidade. Para a Filosofia Clássica, milagres, se de fato existem, acontecem no nível da realidade, e não apenas no nível de nosso conhecimento da realidade. Sua definição envolve referência ao plano ontológico e metafísico, não apenas epistemológico. Milagre não é apenas um nome para nossa ignorância da ordem natural (como diria Spinoza no século 17): milagre é uma violação ou suspensão da ordem objetiva existente na realidade. Por isso é que se acreditava que milagres eram eventos de suma importância: se de fato aconteceram, eles provam alguma coisa: provam que algo aconteceu que a natureza, por si só, não é capaz de produzir. Reconhecer a propriedade do conceito de milagre, porém, não quer dizer que se acredita que eles ocorreram no passado, ou que ocorram, como se fossem normais, nos dias atuais. Quer dizer, simplesmente, que se considera possível que eles aconteçam. Se realmente aconteceram (ou ainda acontecem) ou não, é outra questão. Nem todos os filósofos pré-modernos acreditavam que milagres aconteciam. Mas nenhum tinha dificuldade com o conceito. E nem todos os filósofos modernos acreditavam que milagres eram impossíveis. David Hume, por exemplo, não negava a sua possibilidade, mas negava a sua credibilidade (por parte de uma pessoal razoável, que só acredita naquilo para o qual existe evidência, ou para o qual a evidência a favor é mais forte do que a evidência contrária).

Para a Filosofia Clássica, em oitavo lugar, e este item é importante, a realidade contém e comporta, além de fatos observáveis (sensíveis ou empíricos) e de fatos que transcendem a nossa observação (supra-sensíveis ou trans-empíricos), também fatos morais e fatos estéticos. Para a Filosofia Clássica há leis naturais (mas não empíricas) que determinam o que é bom, certo e justo e o que é ruim, errado e injusto (leis morais) e que determinam o que é belo e o que é feio, com suas gradações (leis estéticas). Por isso faz diferença se alguém chama algo que é sublime ou majestoso de lindo ou belo. Uma designação é correta (verdadeira), a outra, errada (falsa). Existe verdade e falsidade no plano moral e no plano estético. E nossa linguagem deve levar em conta esse fato. Como se chega a essa verdade? Acreditava-se que além dos cinco sentidos (empíricos), há um sentido (ou senso) moral e um sentido (ou senso) estético.

Finalmente, em nono lugar, a Educação é o processo através do qual uma pessoa (em geral uma criança) é levada a conhecer e a descobrir os objetos e os fatos da realidade ou de uma situação (estado de coisas) dentro da realidade – seja essa realidade sensível ou supra-sensível. Mas a Educação não para aí. A Educação também inclui as reações que devemos ter — no plano emocional, moral, e estético —  para com esses fatos. E essa é a parte mais importante da Educação, porque tem que ver (inter alia) com o desenvolvimento das virtudes e a formação do caráter.

A Filosofia Clássica era considerada, pelos pré-modernos, como a mais perfeita expressão da racionalidade humana. Ela expressava aquilo que Lewis considerava o“repositório do senso comum” da humanidade através de toda a história, e em qualquer lugar do mundo, o “sensus communis” universal ao qual já se fez referência, que Alexander Pope tinha em mente quando disse “aquilo que hoje é bom senso certamente deve ter sido muito bom senso em todos os tempos” [3].

Na Filosofia Moderna, entretanto, a racionalidade humana — a razão — é frequentemente utilizada para tentar combater a razão: a razão se tornou, de certo modo, inimiga da razão – por mais paradoxal que isso possa parecer. Dentro da Filosofia Moderna existe uma corrente irracionalista tão forte que, encontrou no século XX um terreno fértil para a sua propagação. É a razão que perdeu o rumo, e que tenta agora demonstrar sua própria fragilidade. A crítica da razão pela própria razão não prova o caráter radicalmente crítico do Racionalismo: prova, isto sim, que o Irracionalismo está ganhando terreno.

A Filosofia Moderna, iniciada por Descartes, e que encontrou seu ponto culminante em Kant e Hegel, passando pelos Racionalistas Continentais (Leibniz e Spinoza) e pelos Empiristas Britânicos (Locke, Berkeley e Hume), infelizmente, veio a questionar todos esses nove pontos. Esse questionamento, na opinião de Lewis (e na minha) não redundou em progresso, mas, sim, em lastimável regressão.

7. A Transição: O Ceticismo e o Relativismo

As principais armas do Irracionalismo são o Ceticismo e o Relativismo.

O Ceticismo é, fundamentalmente, a tese de que o conhecimento e a verdade não existem. Só existem pontos de vista, perspectivas, opiniões, crenças, coisas desse tipo. Mas nada disso nada disso merece o título de conhecimento, porque não há como concluir que os pontos de vista, as perspectivas, as opiniões, as crenças sejam verdade. Se adotamos algum, é preciso ter consciência de que são tão inválidos quanto quaisquer outros.

O Relativismo é, fundamentalmente, a tese de que o conhecimento e a verdade existem, mas cada época, cada cultura, ou mesmo cada indivíduo, tem a sua verdade e o seu conhecimento. O Relativismo, no fundo, afirma que tudo pode ser verdade, dependendo do contexto. Quaisquer outros pontos de vista são tão válidos, no seu contexto, quanto os que adotamos (no nosso contexto).

Note-se que tanto o Ceticismo como o Relativismo apelam para sentimentos nobres.

O Ceticismo tem sido o principal crítico do Dogmatismo e do Fanatismo. Como o conhecimento e a verdade não existem, não devemos nos apegar aos nossos pontos de vista (caso os tenhamos): devemos reconhecer a falibilidade de nossas faculdades de conhecimento, e, portanto, evitar qualquer Dogmatismo e Fanatismo.

Da mesma forma, o Ceticismo tem sido o maior defensor da tolerância. Devemos tolerar os pontos de vista dos outros, mesmo os que nos parecem os mais estapafúrdios, porque, embora careçam de fundamento, não estão em pior situação do que nossos próprios pontos de vista.

Igualmente, o Ceticismo tem sido um proponente da modéstia, da humildade, da ausência de soberba, da ausência de arrogância: tudo o que sei, dizem Sócrates e o cético, é que nada sei.

Os céticos são simpáticos: haja vista Hume, talvez o filósofo mais simpático que já pôs os pés sobre a terra. Revestindo-se desse caráter nobre, o Ceticismo conquista as pessoas — e espalha o Irracionalismo [4].

O Relativismo também é uma filosofia simpática.

O Relativismo procura nos convencer as pessoas de que os pontos de vista de outras pessoas (ou as de outras épocas, ou de outras culturas) são tão válidos quanto os nossos próprios (ou quanto os pontos de vista de nossa própria época, ou de nossa própria cultura).

Isso é assim, afirma o Relativismo, porque as idéias são geradas em determinados contextos, e adquirem validade somente a partir do contexto em que surgiram e foram utilizadas. É inválido, portanto, criticar um ponto de vista a partir de um contexto que não é o seu próprio.

Assim sendo, não é válido (por exemplo) criticar o Budismo a partir do Catolicismo Romano, ou, na verdade, criticar qualquer religião, a partir de uma outra, ou mesmo a partir de um ponto de vista ateu. Todas as religiões são boas, e até o ateísmo é uma forma de religião, às avessas, igualmente válida (no seu respectivo conceito).

Por isso, também o Relativismo propõe a rejeição do Dogmatismo e do Fanatismo (exceto na defesa do próprio Relativismo!) e a adoção de uma postura tolerante. A arrogância, o sentimento de superioridade de nossos pontos de vista, a falta de empatia para com pontos de vista diferentes, tudo isso é pecado mortal para o Relativismo.

Os relativistas também são, em regra, simpáticos. Muitos deles se embrenham por florestas quase virgens para estudar pontos de vista e costumes que os demais mortais poderiam considerar primitivos. Para o relativista, não há superior e inferior, quanto se trata de idéias, de pontos de vista, de perspectivas, de cultura, enfim.

Revestindo-se desse caráter nobre, o Relativismo também conquista as pessoas — e espalha o Irracionalismo.

Na verdade, a maior parte das pessoas adota, hoje, um misto de Ceticismo e Relativismo, sem distinguir bem entre eles. O Ceticismo e o Relativismo se tornaram a moda intelectual atual.

É por isso que o Irracionalismo também se tornou moda na Filosofia Moderna e hoje. Se a verdade e o conhecimento não existem, ou se tudo é, ou pode ser, verdade e conhecimento, em um determinado contexto, então não há como ser racional. Por que adotar este — e não aquele — ponto de vista? Por que considerar verdadeiro este — e não aquele – juízo moral? Porque preferir e julgar de forma positiva esta — e não aquela — obra de arte?

A Filosofia Clássica (envolvendo a Filosofia Antiga e a Filosofia Medieval) sabia como resolver essas questões. A filosofia moderna desaprendeu de fazer isso.

Ser racionalista, hoje, é ser alvo de críticas, mesmo de ridículo.

A nossa é uma época em que se tornou lugar comum afirmar que o conhecimento e a verdade são relativos; em que amplamente se acredita que, se duas pessoas discordam, isso significa apenas que a verdade de uma é diferente da verdade da outra; em que cientistas defendem a tese de que as teorias científicas nada mais são do que “paradigmas” semelhantes a dogmas religiosos (em relação aos quais já é costume dizer que todos são bons, desde que adotados com sinceridade); em que teorias e filosofias políticas são vistas como nada mais do que ideologias em conflito, reflexos superestruturais de infraestruturas econômicas alternativas, acerca das quais não cabe levantar a questão da verdade; em que a moralidade se tornou uma questão de gosto, levando até um homem da estatura moral de Bertrand Russell a afirmar que sua discordância básica com Hitler se reduzia ao fato de que ele não gostava do que Hitler fazia; em que as linhas demarcatórias entre a arte, de um lado, e, de outro, borrões, ferro velho, lixo e outras excrescências (às vezes até excrementos) desapareceram, porque as pessoas têm medo de emitir um julgamento estético; em que interpretações de um texto, por mais intuitivas e estapafúrdias que sejam, são acolhidas com a mesma seriedade que as decorrentes de trabalho sério e rigoroso; em que auto expressão se tornou sinônimo de criatividade; em que os contra sugestionáveis são tidos como espíritos críticos; em que a noção de verdade, por fim, se admitida, é vista apenas em termos da coerência de um conjunto de enunciados, e não de sua correspondência com a realidade.

Já se fez referência a algumas das “Leis da Lógica” – andar dos mais importantes no edifício filosófico da antiguidade clássica. Hoje elas são desprezadas. Essas leis são as seguintes:

  • Toda afirmação (inclusive teorias científicas, juízos morais, juízos estéticos, inclusive as afirmações do senso comum), ou é verdadeira ou falsa – não há uma terceira opção (Lei do Terceiro Excluído);
  • Nenhuma afirmação, devidamente qualificada, é verdadeira, num contexto (temporal, espacial, social, cultural, econômico) e falsa, em outro (Lei da Não-Contradição);
  • O que é verdadeiro, é sempre verdadeiro; o que é falso, é sempre falso (Lei da Identidade).

Também são desprezadas, hoje, teses metafísicas e epistemológicas fundamentais da Filosofia Clássica, como, por exemplo:

  • A primazia da realidade sobre os conceitos: a realidade existe independentemente de nossa percepção e de qualquer conceito que possamos formar sobre ela: através dos sentidos, o ser humano apreende a realidade, não a constrói (Realismo Metafísico);
  • A primazia dos conceitos sobre as palavras: e o pensamento que condiciona a linguagem, não vice-versa (Realismo Epistemológico);
  • A ciência é objetiva porque seu método de proceder é racional (contra os proponentes da sociologia do conhecimento e da sociologia da ciência);
  • Existe conhecimento ético: julgamentos morais são verdadeiros ou falsos, e não são meramente emoções e sentimentos disfarçados de conhecimento (contra emotivismo ético, etc.);
  • Existe objetividade na arte (contra expressionismo, etc.): a beleza não existe apenas nos olhos de quem acha algo ou alguém belo, pois ela faz parte da realidade.

No período pré-moderno havia uma atitude de abertura para com a busca da verdade e uma convicção básica de que a racionalidade é a melhor arma nessa busca. Tanto essa atitude como essa convicção foram perdidas no período moderno e contemporâneo da História da Filosofia. A maior contribuição que a educação atual pode dar ao nosso mundo é recuperar algumas tendências da educação e da visão de mundo da Era Clássica ou da Pré-Modernidade.

Essas são as teses e as propostas de C S Lewis.

Vejamos, agora, como se chegou a esse estado de barbaridade filosófica.

Notas da Parte 2


[1] Prefiro escrever C S Lewis, sem os pontos, exceto em citações.

[2] “Prefácio de Rubem Alves”, in Eduardo Chaves, Educação e Desenvolvimento Humano: Uma Nova Educação para uma Nova Era (Mindware Education Editora, São Paulo, 2003, 1a edição; 2019, 2021, 2a edição; ambas as edições, hoje, no formato de ebook Kindle).

[3] A  citação de Alexander Pope é feita apud Michael Aeschliman, The Restroration of Man: C. S. Lewis and the Continuing Case Against Scientism (Discovery Institute. Kindle Edition), p. 31.

[4] O relato do Ceticismo aqui apresentado simplifica bastante as coisas, deixando de distinguir, por exemplo, as principais variedades de Ceticismo existentes historicamente. Elas são basicamente duas, a saber, o Ceticismo Acadêmico e o Ceticismo Pirrônico. A primeira variedade, o Ceticismo Acadêmico, é chamado assim porque se desenvolveu na Academia Platônica do século III AC. Compare-se o que afirma Richard H. Popkin: “The aim of the Academic skeptical philosophers was to show, by a group of arguments and dialectical [logical] puzzles, that the dogmatic philosopher (i.e. the philosopher who asserted that he knew some truth about the real nature of things) could not know with absolute certainty the propositions that he said he knew. The Academics formulated a series of difficulties to show that the the information we gain by means of our senses may be unreliable, that we cannot be certain that our reasoning is reliable, and that we possess no guaranteed criterion or standard for determining which of our judgments is true or false.” In The History of Skepticism from Erasmus to Descartes (Harper & Row, Publishers, New York, Revised Edition, 1964, 1968, p. ix. [Tradução: EC] “O alvo dos filósofos céticos Acadêmicos era mostrar, através de uma série de argumentos e quebra-cabeças dialéticos [lógicos], que o filósofo dogmático (i.e., aquele que afirmava que ele tinha conhecimento de alguma verdade acerca da real natureza das coisas) não poderia saber, com certeza absoluta, o que dizia saber. Os céticos acadêmicos formulavam uma série de dificuldades para mostrar que as informações que obtemos através dos sentidos não são confiáveis, que não podemos ter certeza de que nossos raciocínios são confiáveis, e que não possuímos um critério ou padrão seguro que nos permita distinguir o verdadeiro e o falso”. A segunda variedade, o Ceticismo Pirrônico, é chamada assim porque foi primeiro apresentada por Pirro de Elis, que viveu por volta de 315 a 225 AC. Compare-se o que afirma Richard H. Popkin: “The Pyrrhonists considered that both the Dogmatists and the Academics asserted too much, one group saying ‘Something can be known’, the other that ‘Nothing can be known’. Instead, the Pyrrhonians proposed to suspend judgment on all questions on which there seemed to be conflicting evidence, including the question whether or not something could be known.” Popkin, op.cit., p. x. [Tradução: EC] “Os pirrônicos consideravam que tanto os filósofos dogmáticos como os céticos acadêmicos afirmavam demais, um grupo dizendo ‘Algo pode ser conhecido”, o outro dizendo “Nada se pode saber”. Em lugar disso, os Pirrônicos propunham a suspensão do juízo sobre todas as questões em relação às quais parece haver evidência conflitante, incluindo a questão se há ou não há conhecimento”.

Eduardo Chaves, 25 de Fevereiro de 2023 (Sábado depois do Carnaval de 2023. Em 1943, 25 de Fevereiro foi uma Quinta-feira. O Sábado depois do Carnaval em 1943 caiu no dia 13 de Março.)



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