Iniciarei esta seção discutindo uma questão importante, acerca da qual grande parte dos cristãos provavelmente nunca pensou. Mesmo entre teólogos cristãos, poucos dedicaram muita atenção a ela até recentemente. A questão é a seguinte: Ao longo dos quatro ou cinco primeiros séculos do Cristianismo, até, digamos, pelo menos o ano 325 (quando aconteceu o Primeiro Concílio Ecumênico, em Niceia), mas, possivelmente, até o ano 451 (quando aconteceu o Quarto Concílio Ecumênico, em Calcedônia), o que predominava, entre os cristãos, no tocante a questões doutrinárias e a questões práticas (neste caso envolvendo questões relativas à conduta pessoal e interpessoal, à condução do culto e a celebração dos sacramentos, e à organização da igreja): diversidade ou unidade? O que predominava nesses cinco primeiros séculos: diferenças ou padrões?
A questão pode não parecer tão importante assim, mas, desde que foi formulada, já gerou muita discussão, e discussão bastante acalorada, entre os estudiosos. Como seria de esperar, dois grupos se formaram: um, o dos que respondem “Diversidade/Diferenças”, o outro, o dos que respondem “Unidade/Padronização”. Na verdade, a ordem em que os dois pares de termos são colocados já, de certo modo, indica onde se situa o autor deste texto. Por colocar “Diversidade / Diferenças” antes de “Unidade / Padronização”, já sinalizo para o fato de que, na minha maneira de entender, prevaleceram a diversidade e as diferenças nos quatro ou cinco primeiros séculos do Cristianismo.
É isto que procurarei mostrar nesta seção.
a. Diversidade e Unidade no Cristianismo Primitivo
A tese de que, nos quatro ou cinco primeiros séculos do Cristianismo, basicamente prevaleceu Diversidade e não Unidade, é geralmente chamada de “Tese de Bauer”, em homenagem ao autor que primeiro a formulou com clareza: Walter Bauer (1877-1960), famoso teólogo alemão (especializado no Novo Testamento e no Cristianismo Primitivo) e também lexicógrafo (especializado na língua Grega). Sua obra principal, como teólogo, é Rechtgläubigkeit und Ketzerei im ältesten Christentum (1934), cuja segunda edição, com data de 1964, foi traduzida para o Inglês apenas no início da década de setenta como Orthodoxy and Heresy in Earliest Christianity (1971).
A Tese de Bauer foi amplamente divulgada no mundo teológico por Rudolf Bultmann (1884-1976), um dos mais famosos e populares teólogos do século 20, em sua principal obra Theologie des Neuen Testaments (1948-1953), traduzida para o Inglês como Theology of the New Testament (1955), e, hoje, também traduzida para o Português, com o título Teologia do Novo Testamento (Teológica, São Paulo, 2004, tradução de Ilson Kayser). Note-se que o livro de Bauer foi publicado em Alemão em 1934, aproximadamente de catorze a dezenove anos antes de o livro de Bultmann ser publicado em Alemão (levou mais de cinco anos para serem publicados os dois volumes) – mas foi publicado em Inglês somente cerca de dezesseis anos depois da publicação do livro de Bultmann em Inglês, fato que explica o papel de Bultmann, durante todo esse tempo, na popularização do livro de Bauer, pelo menos no mundo de fala inglesa.
Mais próximo dos nossos dias Bart D. Ehrman se tornou o maior divulgador da Tese de Bauer, em inúmeros livros, alguns mais acadêmicos, outros mais populares, mas quase todos publicados por editoras de primeira linha, o mais importante dos quais é (dou o título aqui em Português) Evangelhos Perdidos: As Batalhas pela Escritura e os Cristianismos que não Chegamos a Conhecer [i].
A Tese de Bauer tem sido combatida com fervor ortodoxo por autores cristãos conservadores, mas, a meu ver, os argumentos dos críticos estão longe de ser convincentes. Faço referência aqui, em especial, ao livro de Andreas J. Köstenberger e Michael J. Kruger, que está disponível em Português [ii]. O título desse livro (que aqui forneço em Português) – A Heresia da Ortodoxia: Como o Fascínio da Cultura Contemporânea pela Diversidade Está Transformando Nossa Visão do Cristianismo Primitivo – já indica quão mal colocado é o foco dos críticos, em especial os críticos americanos (sendo nos Estados Unidos que se concentram as críticas, os alemães não se deixando perturbar mais por esse tipo de questão histórico-teológica). A ênfase de Bauer, e, depois dele, de Bultmann e outros (como Ehrman), na diversidade dos pontos de vista doutrinários no Cristianismo Primitivo nem de longe é resultado da ênfase, ou, como os autores preferem chama-lo, o “fascínio” da cultura contemporânea, especialmente nos Estados Unidos, pela questão da diversidade.
Eis as razões.
Primeiro, o autor que propôs (Bauer) e o primeiro autor que divulgou (Bultmann) a Tese de Bauer são ambos alemães: a preocupação mais recente com a diversidade é um problema tipicamente americano (que países como o Brasil macaquearam, como o fazem com tantas outras coisas).
Segundo, cronologicamente, a Tese de Bauer surgiu no mínimo cinquenta anos antes da preocupação “pós-moderna” com a diversidade nos Estados Unidos e alhures.
Terceiro, a Tese de Bauer está dirigida à questão de diversidade doutrinária, ou diversidade de opinião e conduta, não à questão da diversidade dita cultural que interessa à pós-modernidade, que foca a diversidade nas áreas de raça, etnia, classe, gênero, e orientação sexual.
Quarto, a Tese de Bauer é uma tese acadêmica, dirigida a outros acadêmicos que compartilham com o autor os pressupostos da crítica histórico-literária. Ela não foi formulada com o intuito de criticar os Fundamentalistas e Conservadores e promover os Cristãos Liberais (mesmo que seu autor possa ser considerado um liberal tardio, do século 20).
Quinto, e por último, o fato de um escritor como Bart D. Ehrman ter adotado e explorado a Tese de Bauer para criticar visões ingênuas da Bíblia e da História do Cristianismo Primitivo principalmente no contexto americano não faz da Tese de Weber uma “Tese de Weber / Ehrman” (como a chamam Köstenberger e Kruger). A tese continua a ser de Weber e só dele. Ehrman a popularizou e, digamos, a explorou comercialmente, de forma muito bem sucedida, no final do século 20 e princípio do século 21 – mas não se tornou “coautor dela” por causa disso. Se alguém merecesse o título de coautor da tese seria Rudolf Bultmann – de quem não se pode dizer que tenha sido motivado pelo fascínio da diversidade, pois já estava morto quando esse fascínio emergiu e floresceu nos Estados Unidos e países culturalmente satélites, nem (muito menos) pelo dinheiro aparentemente fácil gerado por best sellers no mercado americano.
Em suma, a Tese de Bauer defende o que a seguir será exposto – e a formulação da tese aqui é totalmente minha (tendo, porém, sido inspirada, além de por Bultmann e Ehrman, também, por Kevin Madigan, em seu instigante Medieval Christianity: A New History [iii]). Madigan dedica a primeira parte do livro à História do Cristianismo na Antiguidade, e ali tenta provar, acerca dos primeiros quatro ou cinco séculos da era cristã, a Tese de Weber, que, como a seguir descrita, vai contra o que boa parte dos cristãos normalmente acredita.
O que normalmente se acredita é que a maioria absoluta dos cristãos nos quatro ou cinco primeiros séculos da era cristã (ou seja, durante todo o período descrito como o Cristianismo Antigo) subscrevia àquilo que hoje se considera ortodoxia em sua doutrina e em sua prática, as diversas heresias aparecendo apenas ocasionalmente, nas periferias, fruto da “vã curiosidade”, do “orgulho desordenado”, ou da simples ignorância teológica de seus originadores, mas sendo sempre rapidamente combatidas e rechaçadas pela maioria ortodoxa [iv].
Contra essa crença, visão ou paradigma, a Tese de Bauer procura provar basicamente o seguinte – esclarecendo, novamente, que tomo a liberdade de expressar a tese em minhas palavras, acrescentando aqui e ali um elemento meu, não encontrado no original:
- A construção do que hoje se chama ortodoxia dentro da Igreja foi um processo longo e difícil, concluído (em termos) apenas por volta de meados do século 5, e que foi objeto de deliberações teológicas complexas e de muito jogo político, que, contudo, raramente levou a um consenso satisfatório a todos, o que significou que as diversas tentativas de manter e preservar a unidade institucional da igreja nos primeiros cinco séculos, às vezes conduzidas com mão de ferro por bispos e, não raro, imperadores, foram em geral frustradas por descumprimento ou desobediência daquilo que foi aprovado, fato que inevitavelmente resultou em excomunhões, cismas, ambas as coisas – ou, se em nenhuma dessas consequências, na completa desmoralização das decisões tomadas.
- A maioria absoluta dos cristãos durante os primeiros quatro ou cinco séculos subscrevia a pelo menos uma doutrina, geralmente a bem mais de uma, que veio posteriormente a ser considerada herética – ou seja, naquele período aquilo que, hoje, é considerado heresia predominava, no total, sobre aquilo que hoje é considerado ortodoxia. Ou seja, imperava a diversidade, e faltava unidade, porque (pelo menos até 325) inexistiam normas (i.e., padrões). A partir de 325 passou a haver normas, mas elas, em muitos lugares, e lugares importantes, foram descumpridas e desobedecidas. Custou para que as consequências desse descumprimento e dessa desobediência (que eram excomunhão e/ou banimento, ou, então, por vezes, o cisma aberto) se tornassem reais desincentivos à prática.
- A maioria absoluta das heresias não surgiu da vaidade e do orgulho de seus proponentes, nem de sua ignorância teológica, nem estava a camuflar interesses ulteriores, de natureza social (classe), étnica (raça), socioeconômica ou política, como frequentemente se sugere nas hostes fundamentalistas e conservadoras, mas estava ancorada numa busca sincera e honesta da verdade, estando seus defensores genuinamente convencidos de que a verdade estava com eles, e não com aqueles que os criticavam e, oportunamente, vieram a derrota-los e condena-los. [v]
- A ortodoxia foi construída, de cima para baixo, à medida em que a liderança política e administrativa da igreja (os Bispos) e sua liderança teológica (os Pais da Igreja que não foram considerados heréticos em algum aspecto importante), com o apoio da autoridade imperial, se valeram de quatro instrumentos (todos eles iniciados com a letra “C”) para forçar os demais cristãos a subscrever ao núcleo de doutrinas e práticas considerado ortodoxo por essas lideranças:
- a definição de fórmulas e regras de fé, ou CREDOS, que gradualmente foram aceitos por círculos cada vez mais amplos, dada a sua aparente clareza e simplicidade;
- a definição do CÂNON do Novo Testamento, que se deu também de forma gradual, e em meio a muita disputa;
- a sujeição e submissão do pensamento e da conduta da generalidade dos cristãos aos ditames do CLERO, em especial do Bispo da região em que habitavam, que tinha no poder de excomungar uma fonte de poder de “persuasão” inigualável;
- a tentativa de conseguir, se não unanimidade, pelo menos uma maioria sólida entre os Bispos das diversas cidades e regiões, acerca de questões disputadas, através de CONCÍLIOS.
- No processo, doutrinas que não se adequavam aos credos foram sendo consideradas heréticas e anatematizadas, condutas não aprovadas foram proscritas, bispos e teólogos discordantes foram sendo eliminados do rol das autoridades (por excomunhão ou por pressão que levou a cisma), e os escritos que de alguma forma não se ajustavam totalmente aos credos e aos códigos de conduta aprovados simplesmente ficaram fora do cânon [vi].
Ou seja: os Bispos tinham a faca e o queijo na mão. O que é de admirar é que tenham levando tanto tempo para conseguir fazer com que suas ideias favoritas se tornassem o pensamento padrão e oficial da Igreja – a ortodoxia. A questão, em última instância, não era tanto intelectual ou teológica: era mais de poder. E se os bispos custaram tanto para amealhar o poder necessário para padronizar o pensamento e a conduta da Igreja é porque a oposição a eles era ampla, generalizada e forte – e, em algumas regiões representava a maioria (como era o caso nas regiões mais distantes dos centros do poder: Roma e Alexandria, inicialmente, com Constantinopla e Antioquia sendo acrescentados a partir dos anos finais do quarto século.
Hoje parece evidente que até o primeiro quarto do quarto século (ano 325) os cristãos discordavam mais do que concordavam em questões teológicas, éticas, sócio-políticas (acerca de sua relação com o mundo), litúrgicas (acerca de como conduzir o culto e celebrar o batismo e a santa ceia), etc.: Ou seja: havia diversidade de pontos de vista e de práticas, não unidade. Não havia conformidade a normas, porque estas em grande medida inexistiam no plano da igreja como um todo. Não havia regras de fé ou credos que fossem aceitos por todos; não havia unanimidade sobre que livros, dentre os inúmeros que foram e continuavam sendo publicados, muitos atribuídos aos apóstolos, deveriam ser considerados autênticos e normativos, parte de um novo cânon, que se comparasse ao do Velho Testamento e a este fosse acrescentado. O clero (em especial o colégio dos bispos) não tinha mecanismos para se encontrar como grupo “ecumênico” (envolvendo todas as tendências da Cristandade) e “católico” (universal, envolvendo todas as partes do mundo) para trocar ideias, discutir e definir padrões doutrinários, e exigir seu cumprimento, punir os que não os cumprissem, pois os “concílios ecumênicos e universais” estavam ainda para ser inventados. Curiosamente, foi Constantino, um imperador, que os inventou, e o fez, não com base em convicções teológicas, mas porque o Cristianismo, que ele esperava que visse a ser uma força centrípeta, levando, pela sua união, à união do Império, estava a se mostrar, pela enorme quantidade de controvérsias entre suas lideranças, uma força centrífuga, levando à desunião da igreja e ameaçando a já frágil unidade do Império.
Sem os Concílios, se um bispo solitário decidisse punir com excomunhão um pensador que ele considerasse herege, este simplesmente poderia se mudar para outra diocese que tivesse um bispo mais cordato (e que, em regiões “metropolitanas”, às vezes se localizava na mesma cidade) – ou, então, se separar (fazer um cisma) e, assim, continuar a controlar o grupo constituído por seus seguidores, permanecendo no mesmo lugar. (Até hoje coisas como esta acontecem dentro da Igreja, em especial nas Protestantes.) Os bispos precisavam da força moral de decisões conciliares ecumênicas, não isoladas, e o poder real, representado pelo decisivo apoio imperial, que levaria ao banimento, para fora dos limites do Império, de hereges excomungados que ameaçassem ficar no local e criar um novo movimento.
Uma vez definida a ortodoxia, as heresias afetadas eram condenadas, anatematizadas, e os que as defendiam fatalmente se tornavam vítimas de excomunhão, às vezes execução ou, então, numa solução menos brutal e mais feliz, cisma (quando não eram vítimas também de banimento implementado pelo poder do estado).
Assim, a julgar pelos critérios de ortodoxia que foram adotados posteriormente (a partir de 325, em Niceia), nos quatro primeiros Concílios Ecumênicos, os que se realizaram no quarto e quinto séculos [a saber, Nicéia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e Calcedônia (451)], a maioria dos cristãos dos primeiros séculos não era ortodoxa, vale dizer, era herege (pelos critérios adotados nesses concílios). É mesmo inapropriado falar em heresia até o ano de 325 porque o conceito de ortodoxia (crença correta, crença normativa, crença obrigatória) e o parasítico conceito de heresia (desvio ou discordância da ortodoxia) ainda estavam por ser clara e precisamente definidos por Concílios Ecumênicos, com base em critérios e indicadores conhecidos de todos. Sem ortodoxia, não há heresia.
Essas coisas foram sendo construídas aos poucos, em processo lento e gradual, conforme surgia a necessidade, necessidade essa expressa pelo reconhecimento, por parte da maioria dos bispos, com a ajuda dos teólogos, de que era preciso oficial e formalmente definir certas crenças e condutas como essenciais e fundamentais, crenças sem cuja aceitação seria impossível ser considerado cristão (aquelas, naturalmente, que eles privilegiavam e favoreciam e das quais não julgavam razoável abrir mão) e as crenças e práticas contrárias como inadmissíveis e inaceitáveis, por colidir com as primeiras. Às vezes a necessidade se fazia sentir em meio a uma crise, como se deu em relação ao que fazer com os cristãos (alguns deles clérigos e bispos) que, durante as duas grandes perseguições imperiais, exibiram condutas que não corresponderam ao ideal que deles se esperava e, passada a crise, quiseram voltar a congregar normalmente na igreja (algo que será discutido adiante, na Seção E deste capítulo).
Com a aprovação (nunca unânime) das fórmulas ortodoxas nos concílios, através de credos ou de declarações ou decretos (chamados de cânones), passou a existir um conjunto de normas que permitia definir (parasiticamente) o que era heresia: heresia é um ponto de vista que se desvia do que foi aprovado como ortodoxo, ou que está expressamente condenado ou anatematizado nas resoluções dos concílios oficiais da Igreja, em especial nas resoluções dos Concílios Ecumênicos, dos quais, até o final do período antigo, ocorreram quatro.
Dentro dessa ótica, heresias só passaram a existir, enquanto tais, a partir do ano de 325, com a ocorrência do Primeiro Concílio Ecumênico do Cristianismo, o de Niceia – e continuaram a existir, cada vez em maior quantidade, ao longo dos concílios subsequentes – o último dos quais, dentro do período anterior à Idade Média, tendo sido o de Calcedônia, em 451. As heresias só diminuíram significativamente quando a Igreja Imperial, com a queda do Império Romano no Ocidente em 476, virtualmente ocupou o lugar do Império, e, esquecendo-se do que havia acontecido a partir de 313 (Édito de Milão, o Édito da Tolerância), tornou-se, ela própria, intolerante e opressora, processo que alcançou sua culminância nas diversas etapas da Inquisição, chegando ao auge na Inquisição Ibérica (Espanhola e Portuguesa), já às vésperas da Reforma Protestante.
b. Ortodoxia e Heresia
Voltemos à questão, agora de forma bem didática.
Ortografia é grafia correta. Ortodoxia é crença correta, opinião correta, ponto de vista correto, doutrina correta. Na História da Igreja Cristã, como acabamos de ver, um ponto de vista que se desvia de um ponto de vista correto (chamado de Ortodoxia), ou (pior) que com ele colide de frente, veio a ser chamado de uma Heresia. Uma Heresia é, portanto, um ponto de vista divergente que se rotula de incorreto porque há uma norma que assim o define. Uma pessoa que adota uma Heresia, um ponto de vista incorreto, é rotulada como herege. [vii]
É interessante registrar que, stricto sensu, ortodoxia é correção em crença, opinião, ponto de vista – não necessariamente correção de conduta (moral, litúrgica ou outra). A Igreja, por um lado, quase sempre foi irredutível e rigorosa com os que discordaram dela em termos de crença, opinião e ponto de vista (ou seja, em termos de doutrina), porque o herege quase sempre está convicto e certo do que pensa, crê, opina e defende, e, ao desafiar a ortodoxia, assume uma postura que é percebida pela Igreja como sendo de orgulho e soberba, porque o herege está convicto de que está certo e que o errado é a Igreja, ou grupo, dentro da Igreja, que defende a ortodoxia. O herege raramente se arrepende e pede perdão por aquilo em que acredita e que defende. Por outro lado, a Igreja frequentemente se mostrou bem mais flexível, e pronta a compreender e perdoar, quando se trata de fraqueza de caráter e falha de conduta, desde que as pessoas que as exibem se mostrem arrependidas do que fizeram (ou deixaram de fazer, no caso de omissão, não comissão). O arrependimento é o sinal de que o infrator se reconhece infrator – e reconhece a autoridade dos que lhe podem punir ou perdoar pela infração cometida.
Na História da Igreja Cristã hereges impenitentes – e quase todos o são – foram, a partir de um determinado momento, em regra excomungados e, por vezes, banidos, quando não executados. (Nem a Igreja Reformada, lamentavelmente, abandonou de todo a prática [viii].) Pessoas que não se comportavam como era esperado eram, entretanto, em geral perdoadas, desde que reconhecessem seu erro e se humilhassem diante da autoridade eclesiástica (o padre confessor, por exemplo), pedindo perdão. Às vezes, para perdoar, a Igreja exigiu que a confissão do erro fosse pública (e não feita privado, e com garantia do “segredo do confessionário”, a um padre confessor). Às vezes o perdão, para se materializar, queria a realização, por parte do infrator, de penitências.
Quando alguém que é membro da Igreja é excomungado, ele deixa de ser membro da Igreja e perde os direitos que tinha como membro, como, por exemplo, o direito de comungar, vale dizer, o direito de ter comunhão com os demais membros, participar da Ceia do Senhor, votar em assembleias, etc. A excomunhão é, por assim dizer, e para fins práticos, a revogação do batismo — a retenção da carteirinha de membro do indivíduo na instituição “Igreja”.
Mas para que se conclua que alguém é herege, na igreja, é preciso saber, com bastante clareza e precisão, o que conta como ponto de vista correto — isto é, o que conta como ortodoxia.
Isso nem sempre é fácil, como até certo ponto já vimos, e veremos melhor ainda no capítulo seguinte (Cap. 4, Sec. C e Sec. D). Mas a seção seguinte (Sec. B) neste capítulo também é relevante (como já, de certo modo, assinalamos, em uma Nota dedicada ao livro Lost Scriptures de Bart D. Ehrman).
NOTAS
[i] Dentre seus principais livros se destaca Lost Christianities: The Battles for Scripture and Faiths we Never Knew (Oxford University Press, New York, 2003), traduzido para o Português como Evangelhos Perdidos: As Batalhas pela Escritura e os Cristianismos que não Chegamos a Conhecer (Editora Record, São Paulo, 2008).
[ii] The Heresy of Orthodoxy: How Contemporary Culture’s Fascination with Diversity Has Reshaped our Understanding of Early Christianity (Crossway, Wheaton, 2010), traduzido para o Português como A Heresia da Ortodoxia: Como o Fascínio da Cultura Contemporânea pela Diversidade Está Transformando Nossa Visão do Cristianismo Primitivo (Vida Nova, São Paulo, 2014).
[iii] Yale University Press, New Haven, 2015.
[iv] As duas expressões entre aspas foram retiradas do excelente livreto de A. H. M. Jones, Were Ancient Heresies Disguised Social Movements? (Fortress Press, Philadelphia, 1966), p.v. Esse livreto foi originalmente publicado como artigo em The Journal of Theological Studies, New Series, vol. X, Part 2, 1959, pp.280-297. Eis o parágrafo completo do qual foram retiradas as duas expressões: “Heresia e cisma não são, de forma alguma, os fenômenos simples que parecem ser quando se ouvem as palavras não só de estudantes, mas também de historiadores. A assim chamada teoria ‘clássica’ da origem da heresia, por exemplo, pressupõe que as heresias não passam de desvios ou mesmo perversões do pensamento causadas pela vã curiosidade e pelo orgulho desordenado de seus originadores. Segundo esse ponto de vista (que, infelizmente, tem dominado a atitude da igreja para com o fenômeno durante a maior parte de sua história), todo desvio da verdade pode ser explicado em termos da maldade e/ou da limitação dos próprios heréticos. A partir de um ponto de vista ‘crítico’, o pressuposto dessa teoria ‘clássica’ de que a heresia não passa de mera opinião de homens vãos e orgulhosos é muito simplista.” p.v [Tradução de Eduardo Chaves].
[v] Esta tese não está presente, nesta forma explícita, no livro de Madigan, mas a inseri aí pela sua coerência com as temais teses desse autor. Esta tese é derivada do livro de A. H. M. Jones, Were Ancient Heresies Disguised Social Movements?, op.cit.. Compare-se passim, mas também a Introdução de Clarence L. Lee, pp.x-xi.
[vi] Bart D. Ehrman tem uma outra obra fantástica em que coleta uma série enorme de livros que, tendo concorrido para “sacramentação” como canônicos, perderam e ficaram de fora do Novo Testamento. Trata-se de Lost Scriptures: Books that Did Not Make into the New Testament (Oxford University Press, New York, 2003). Ou seja, em 2003 Ehrman publicou, na mesma conceituada editora (Oxford University Press), dois de seus livros importantes, que formam “um casal”: Lost Christianities e Lost Scriptures. O primeiro livro trata das comunidades que professavam doutrinas diferentes daquela que veio a ser considerada ortodoxa; o segundo livro trata dos livros que defendiam essas doutrinas, e que, por causa disso, acabaram ficando de fora do cânon. As duas coisas caminharam mais ou menos pari passu (ao mesmo tempo). O jogo, na verdade, era mais político do que teológico. À medida que as forças que defendiam as teses ortodoxas ganhavam poder e suas teses eram aprovadas em Concílios Ecumênicos, os livros que defendiam teses contrárias perdiam suas chances de terminar canônicos. É uma questão fascinante. Lembremo-nos de que estamos nos séculos quarto e quinto. As palavras de Jesus (que nunca escreveu um livro ou, aparentemente, uma folha sequer) e dos seus apóstolos já estavam de certo modo cristalizadas em livros, não havendo como ter certeza do que eles de fato disseram. Para cada um dos quatro evangelhos que se tornou canônico havia pelo menos quatro outros que atribuíam a Jesus outras ideias e contavam outras histórias acerca dele, e que acabaram por não entrar no cânon. A razão é quatro para pelo menos dezesseis (fora os que se perderam). Para o livro de Atos que se tornou canônico havia pelo menos cinco outros Atos, que contavam outras histórias, mas que ficaram fora do cânon. A Igreja tenta nos fazer crer que esses livros ficaram de fora do cânon por serem heréticos. Mas quando eles foram escritos, pelo menos no caso da maioria deles, não havia ainda uma ortodoxia. Foi mais uma luta política do que teológica que os deixou de fora e rotulou suas ideias de heréticas. Eles foram deixados de fora porque não eram favoráveis às ideias daqueles que controlavam o poder dentro da Igreja. Por causa disso, tornaram-se apócrifos e suas ideias heréticas.
[vii] O termo “heresia” nos vem do Grego, através do Latim. Em Grego, o termo αἵρεσις (hairesis, em transliteração para o nosso alfabeto) significava, originalmente, escolha, ou coisa escolhida, ou até mesmo grupo dos que fizeram uma escolha. Assim, podia significar a aceitação de alguma ideia, crença, doutrina ou teoria, ou até mesmo, uma seita: o grupo daqueles que aceitavam um conjunto determinado de ideias, crenças, doutrinas, teorias. No Novo Testamento o termo foi aplicado aos Fariseus, aos Saduceus, e mesmo aos Cristãos, entendidos, todos eles, como seitas do Judaísmo. Em Latim o termo haeresis veio a significar forma de pensar, escola filosófica — inicialmente sem se indicar se a forma de pensar ou escola filosófica era considerada correta ou desviante. Com o tempo, já na era cristã, o termo veio a ser usado para se referir a crenças e doutrinas que se desviavam da opinião (δόξα, termo grego que, transliterado, dá doxa) geralmente aceita, ou, com o tempo, do ensinamento, instrução, ou doutrina (διδαχń, em Grego, transliterado como didaché, ou, ainda, doctrina, em Latim) tido como certo, correto, verdadeiro, oficial (oρθός, transliterado como orthós, querendo dizer certo, correto): donde, “ortodoxia”, doutrina correta. (Veja-se na Wikipedia US o verbete “Heresy”, https://en.wikipedia.org/wiki/Heresy). Uma última observação: a ortodoxia, uma vez definida, é una ou única; a heresia é sempre múltipla, diversa, variada. A ortodoxia é oriunda do credo e leva à confissão e ao catecismo. A heresia é anticonfessional e anticatecísmica. Por ser múltipla, diversa, variada, a heresia não cabe dentro de uma confissão e um catecismo – por mais amplos que sejam. Na verdade, quanto mais amplos e detalhados sejam, tanto pior para a heresia, porque cabe menos heresia ali.
[viii] Compare-se Roland H. Bainton, Hunted Heretic: The Life and Death of Michael Servetus, 1511-1553 (Beacon Press, Boston, 1953), publicado por ocasião do quarto centenário da execução de Serveto na fogueira, na calvinista Genebra.
Transcrito aqui em Salto, 15 de Dezembro de 2020
[Trecho transcrito de meu livro Breve História da Igreja Antiga: Dos Primórdios ao Fim do Império Romano no Ocidente (MindWare Education. Kindle Edition, 2018)
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