Comprei ontem (22.12.2020) um desses livros que é muito difícil parar de ler. O conteúdo é fantástico e o estilo atraente e engajante. Chama-se The Psychology of Money: Timeless Lessons on Wealth, Greed and Happiness. O autor é Walter Housel. Tem 20 capítulos, que eu vou resumir, enquanto leio. Tenho certeza de que este é um dos livros que eu vou ler até o fim. (A maioria não leio até fim: paro no meio ou leio capítulos ou pedaços “saltando como pulgas”, como dizia o Rubem Alves.)
Aqui quero comentar uma coisa de que em 77 anos de vida, incluindo mais de sete anos vivendo nos EUA, sendo tradutor juramentado Inglês/Português, eu nunca havia me dado conta. Vou dizer qual é, em um minuto.
Sempre tive muito interesse na questão do Acaso, em especial, na questão da Sorte e do Azar. Há muito tempo [em 1995, um quarto de século atrás] escrevi um artigo sobre isso [embora com uma ênfase diferente da que Housel adota em seus livro], que, junto com o meu artigo sobre o tempo, é o texto mais reimpresso, copiado na Internet, que eu jamais escrevi. Seu título é “Desemprego, Informática, Sorte e Azar”. [Ele está transcrito neste blog imediatamente antes deste artigo que escrevo agora.] Sempre me acreditei uma pessoa de muita sorte — e outras pessoas, em especial minha tia Alice (mãe de meu primo Anello Sanvido) foi a primeira a me dizer isso, de forma muito convincente, mesmo que tenha sido numa linguagem típica de gente de Campinas: “Você nasceu com o tundá virado pra Lua”. “Tunda”, sem acento, é sova, surra. “Tundá”, com acento, é, especialmente para os campineiros, aquele lugar em que criança normalmente apanha…
Mas estou deixando meu assunto de lado. Minha descoberta de ontem é que a língua inglesa não tem uma palavra só que seja sinônima de azar. Sorte é luck. Pode-se chamar azar de má sorte (bad luck) — mas não é a mesma coisa. No livro de Housel, em que o segundo capítulo é totalmente dedicado de forma muito competente à questão do papel do acaso no processo de dar certo — muito certo, ficar bilionário — ou muito errado — muito errado, perder tudo, falir, quebrar — na vida financeira, ele discute sorte e azar. Mas os chama de luck and risk (risco). Risco e azar não são a mesma coisa. Procurei mentalmente uma palavra melhor. Não achei. Hazard não traduz bem azar — traduz melhor risco. Mas o que eu procurava é uma palavra (não mais de uma) em Inglês que traduzisse bem azar. Uma palavra que captasse o sentido de bad luck. Fumar é um health hazard — é um risco para a saúde. Mas risco, aí, não é o que a gente comumente entende por azar. Fumar é um risco para a saúde, hoje sabemos com certeza. O prejuízo à saúde, se alguém fuma, não é uma questão de azar. A questão que Housel quer enfatizar no segundo capítulo é que nem todo bilionário se tornou bilionário por causa de seu conhecimento, de sua competência, da correção pragmática de suas escolhas, decisões e ações. E nem todo fracassado financeiro fracassou por causa de sua ignorância, de sua incompetência, do erro pragmático de suas escolhas, decisões e ações.
O acaso quase sempre está presente, em maior ou menor grau. Os primeiros (os biliardários), em geral, tiveram o bafejo da sorte, e os fracassados, o mau hálito do azar. (Às vezes alguns tomam enormes riscos, e a coisa dá certo; outros se arriscam e perdem… Aqui se vê por que risco não é palavra que traduz corretamente o termo azar.
Housel aponta (com uma ênfase diferente) algo que eu havia dito bem no começo, em meu artigo, já mencionado. Quando algo dá muito certo para a gente, em especial na área financeira, em geral atribuímos nosso sucesso à sabedoria de nossas ações; quando dá muito errado para a gente, em geral nessa mesma área, em geral atribuímos o fracasso ao azar. Com os outros, invertemos: a riqueza de um Bill Gates ou de um Jeff Bezos atribuímos em grande medida à sorte: estavam no lugar certo na hora certa; o fracasso financeiro em alto estilo de um Eike Batista, atribuímos à burrice e à incompetência, não ao azar. Em nenhum desses casos estamos corretos, ou, pelo menos, não totalmente certos. Bill Gates e Jeff Bezos certamente tiveram sorte, mas também tiveram conhecimentos, competências, e capacidade de tomar decisões certas na hora certa; e Eike Batista talvez fosse quase tão inteligente e esperto quanto Gates e Bezos, mas deu muito azar.
Isso acontece não só na área financeira. Acontece em todas as áreas de nossa vida. Até mesmo no amor. Nem o bem sucedido, nem o fracassado, são exatamente o que parecem. O acaso em regra teve um papel muito maior do que reconhecemos. Mas não parece ser racional ou científico atribuir sucesso e fracasso ao acaso, o primeiro à sorte (pelo menos em — grande? — parte; o segundo ao azar). Ou a comportamentos desonestos, no primeiro caso, e honestos demais, digamos, no segundo. Mesmo quando há desonestidade ou descumprimento da lei, no processo de enriquecimento, é forçoso reconhecer que no caso de alguns, a coisa é protegida pela sorte, e esses comportamentos não são descobertos e punidos. E, em outros casos, dá azar, as pessoas são descobertas, punidas, presas, perdem a fortuna que estavam a amealhar, abortando o processo de enriquecimento. Ainda por cima caem no opróbrio.
Vejam o filme Match Point, de Woody Allen, a que sempre me refiro.
Em Salto, 23 de Dezembro de 2020
Categories: Liberalism
Excelente reflexao. Minha opiniao sem nenhum embasamento cientifico e’ de que e’ da natureza humana procurar o conforto. Veja bem – quando algo da’ certo (ou muito certo) e’ confortante crer que fomos os responsaveis. Ao contrario, quando algo da’ muito errado, e’ confortante crer que alguma forca externa a nos foi responsavel, e o “azar” e’ um otimo candidato, seguido pelas “outras pessoas incompetentes”.
O ser humano e’ rapido para assumir credito do sucesso e mais rapido ainda para “assign blame” ao fracasso.
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Obrigado pela contribuição, Otávio. Continue aparecendo.
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