De Jesus a Paulo e até Nós: Curso de Bart D. Ehrman (Parte 2)

Anteontem, 27.5.2023 (das 14 às 19h) participei da primeira parte de um curso online com Bart D. Ehrman, o conhecido scholar do Novo Testamento, reverenciado por muitos (por mim, entre eles) e detestado por outros, que não conseguem apreciar e admirar talento quanto o talento é colocado em defesa de ideias e propostas com as quais eles não concordam. O curso, de dez horas, seria, como de fato foi, ministrado em dois dias. Ontem, 28.5.2023, no mesmo horário, cursei a Segunda Parte, também com cinco módulos de 50 minutos e a mesma estrutura.

Hoje vou tentar resumir as principais ideias que Ehrman apresentou e defendeu no curso inteiro. Haverá uma pequena sobreposição com o que escrevi no artigo anterior, sobre a Primeira Parte do curso.

O tema do curso foi “Jesus e Paulo: A Grande Divisão” (Jesus and Paul: The Great Divide). A grande pergunta a ser respondida era: Quem foi o verdadeiro fundador do Cristianismo: Jesus ou Paulo?

A estrutura do curso foi a seguinte:

  1. Quem era Jesus (na opinião do próprio Jesus)?
  2. Qual a mensagem teológica de Jesus?
  3. Qual a mensagem ética de Jesus?
  4. Como entender Jesus historicamente, como judeu de sua época?
  5. Perguntas e Respostas sobre a Primeira Parte
  6. Quem era Jesus (na opinião de Paulo)?
  7. O que Paulo pregou acerca da natureza e da missão de Jesus?
  8. O que Paulo pregou sobre a conduta ética exigida do cristão?
  9. Como se comparam os pontos de vista de Jesus e Paulo sobre essas perguntas?
  10. Perguntas e Respostas sobre a Segunda Parte

O fecho do curso foi: diante do fato de que Paulo respondeu às três perguntas básicas de forma claramente diferente daquela em que Jesus respondeu a elas, quem fundou o Cristianismo que nos foi legado na tradição da Igreja, Jesus ou Paulo? Como decidir isso hoje, e o que fazer, diante da resposta que dermos?

Ehrman não ocultou seu ponto de vista, mas afirmou, ao final, que quem não concordasse com o ponto de vista dele, deveria estudar com profundidade o assunto e decidir qual a resposta correta e o que fazer diante dela. Enfatizou, porém, que a resposta de cada um não deve ser aquela que lhe traz mais conforto, mas, sim, aquela que mais se conforma à evidência histórica disponível no Novo Testamento (e mesmo fora dele). Ehrman chegou, até mesmo, a dar indicação de livros que discordam da resposta dele e a criticam, para que os alunos, ao tomar sua decisão, possam ler também autores que pensam diferentemente dele (na verdade, de forma diametricamente oposta).

No que segue vou procurar resumir as principais teses de Ehrman nos oito módulos de conteúdo (isto é, deixando de fora os módulos de Perguntas e Respostas). O resumo será feito em minhas palavras, com base em minha lembrança do que Ehrman disse. Só em dois lugares (indicados) vou apelar para os slides que ele distribuiu, mas não projetou.

1. Quem era Jesus (na opinião do próprio Jesus)?

As fontes que Ehrman usa para responder a essa pergunta são os três primeiros Evangelhos, ou seja, Mateus, Marcos e Lucas. Embora no Novo Testamento eles apareçam nessa ordem, eles não foram escritos nessa ordem. Marcos foi escrito, primeiro, por volta dos anos 70/75, e os outros dois, mais ou menos ao mesmo tempo, por volta do ano 80/85, havendo, portanto, cerca de 10 a 15 anos entre o Evangelho de Marcos e os Evangelhos de Mateus e Lucas. Há evidência de que o Evangelho de Mateus foi um escrito um pouquinho depois do de Lucas.

Ehrman considera basicamente estabelecido que Mateus e Lucas usaram Marcos como fonte para escrever seus Evangelhos, mas também tiveram fontes próprias, que não estiveram acessíveis para Marcos. Ele considera que Marcos também teve sua fonte (ou suas fontes) próprias. Ehrman não acredita que nenhum dos três tenha convivido pessoalmente com Jesus e, portanto, possa ter incluído em seu Evangelho material que ele próprio viu ou ouviu pessoalmente. Todos os três, inclusive Marcos, se baseiam em fontes, que eram, no caso dos três, coleções de histórias sobre Jesus e sobre os ensinamentos que Jesus teria proferido em diversas ocasiões, e, no caso de Mateus e Lucas, o próprio Evangelho de Marcos.

Embora os três Evangelhos Sinóticos discordem em vários pontos, eles concordam acerca do fato de que Jesus era Nazareno (isto é, era filho de pessoas que moravam em Nazaré). Na verdade, Ehrman acredita que Jesus nasceu mesmo em Nazaré, a história de que ele tenha nascido em uma manjedoura em Belém sendo apenas uma tentativa de mostrar que Jesus nasceu na cidade considerada como sendo o local de nascimento do Rei David. (As genealogias conflitantes de Mateus e de Lucas também são, em ambos os casos, tentativas meio canhestras de mostrar que Jesus também era descendente do Rei David – de longe o mais querido dos reis pelo povo de Israel).  

Assim sendo, não há dúvida, com base no relato dos três primeiros Evangelhos, de que Jesus era judeu, filho de pais judeus, que seguiam a religião judaica seriamente, tendo levado Jesus para ser circuncidado, ensinando-lhe as Escrituras Judaicas (o que os cristãos chamam de Velho Testamento), que guardavam o Sábado e procuravam cumprir fielmente os demais mandamentos das Leis Judaicas (que incluíam bem mais do que os Dez Mandamentos, embora estes fossem a base, acreditavam os judeus, para as demais leis incluídas no Pentateuco). Quando Jesus chegou à idade adulta, deixou-se batizar por João Batista, que era um profeta judaico, que pregava a necessidade de arrependimento dos pecados e do batismo, como forma de remissão de pecados, porque o fim dos tempos, com a chegada do Messias e do Reino de Deus, era iminente.

[A propósito, o termo “Cristo” é um termo grego que quer dizer “Ungido”, que traduzia um termo hebraico, com o mesmo sentido, que era aplicada ao Rei de Israel, quando o país tinha reis – algo que não tinha por muitos séculos, desde o Cativeiro Babilônico. Chamar Jesus de Jesus Cristo, portanto, é uma tentativa de revelar a crença de que Jesus era o Messias que havia de vir, que, no caso do povo do primeiro século de nossa era, seria o novo Rei dos Judeus, que livraria o seu povo da tutela de outros povos, restaurando a autonomia do povo judaico. Jesus Cristo quer dizer, portanto, Rei Jesus. A inscrição que supostamente foi colocada na cruz em que Jesus foi crucificado, INRI, Jesus Nazareno, Rei dos Judeus, reflete, de maneira irônica, o fato de que o rei esperado dos judeus estava ali crucificado, e que, portanto, a esperança de liberdade e autonomia política, vindas pela mão de Jesus de Nazaré, haviam caído por terra. Ressalte-se ainda que, para os judeus daquela época, o Messias, que seria o novo Rei de Israel, não era compreendido como Deus ou como um ser divino. Ele seria um homem, enviado por Deus, para cumprir a vontade de Deus.]

Sendo judeu, Jesus de Nazaré, segundo os relatos dos Evangelhos Sinóticos, não se considerava divino, muito menos igual a Deus. A expressão que ele mais frequentemente usava para se referir a si próprio era “Filho do Homem”, expressão de sentido duplo, que significava, de um lado, simplesmente um ser humano, “nascido de mulher”, como se dizia, e, portanto, igual a todos os outros seres humanos. De outro lado, porém, a expressão “Filho do Homem” também tinha, para os adeptos das tendências mais apocalípticas do Judaísmo (que acreditavam que o fim do mundo era iminente), o sentido de alguém sobrenatural, que vivia no Céu, e que seria enviado por Deus, nos últimos tempos, para introduzir e conduzir os últimos dias e o Julgamento Final. Essa figura, segundo se cria, não seria “nascida de mulher”, e, portanto, não se identificaria com Jesus. 

O batismo de João Batista era para a remissão de pecados. Logo, se Jesus se acreditasse divino, ele não teria ido a João Batista para ser batizado porque ele, por ser divino, não teria pecados que precisassem ser remidos.

No conhecido episódio em que Jesus pergunta aos seus discípulos “Quem dizem os homens que eu sou?”, e qem ue as respostas, exceto a de Pedro, foram bastante sem sentido, Pedro confessa sua crença de que Jesus era o Cristo, isto é, o Messias, que estava por vir, e que seria o novo Rei de Israel. O fato de que Pedro também tenha dito que Jesus era “o Filho do Deus vivo” simplesmente significava que Pedro acreditava que ele tivesse sido escolhido por Deus para esse papel. Jesus recomendou a Pedro que ficasse calado e não revelasse aos outros o que ele havia acabado de dizer para o próprio Jesus.

O próprio Jesus, em nenhum momento disse, segundo os Evangelhos Sinóticos, que ele era o Messias que havia de vir, nem que ele seria o novo Rei de Israel, nem, muito menos que ele fosse Deus, ou igual a Deus, ou mesmo divino – nem mesmo que ele seria o Filho do Homem no sentido cósmico e apocalíptico  já mencionado.

2. Qual a mensagem teológica de Jesus?

A mensagem que Jesus pregou foi basicamente a mesma mensagem apocalíptica (ou “apocalipsista”) de João Batista: o fim deste mundo está próximo, na verdade iminente, e Deus vai inaugurar o seu Reino. Para estar bem com Deus, e vir a participar do seu Reino, os judeus, povo escolhido de Deus, precisam se arrepender de seus pecados (desobediência à Lei de Deus, dada aos judeus), e ser batizados, pois a finalidade do batismo é remir pecados – a água, que envolve a pessoa, sendo o símbolo de que sua natureza mais íntima está sendo lavada, purificada, pela remissão de seus pecados.

Contrário ao que acreditam alguns, Jesus não pregou a revogação da Lei. Pregou a necessidade de cumpri-la, como todos os judeus ortodoxos acreditavam. Mas isso já é parte da mensagem ética de Jesus, que será discutida na próxima seção.

Aqui basta dizer que, nos Evangelhos Sinóticos, Jesus nunca diz que, para alguém ser salvo e vir a fazer parte do Reino de Deus, que está para ser inaugurado, era necessário acreditar que ele era o Filho de Deus, que ele iria morrer crucificado, como se fosse um cordeiro que se leva para o matadouro, nem que ele iria ser ressuscitado, nem que ele ele seria levado aos céus, depois de ressuscitado.

Quando alguém lhe perguntou o que deveria fazer ser salvo, ele disse que a pessoa deveria cumprir os mandamentos que ela conhecia muito bem.

3. Qual a mensagem ética de Jesus?

Como se disse na seção anterior, a ética de Jesus é baseada no cumprimento da Lei de Deus. Fazer a vontade de Deus era entendido por ele como cumprir os mandamentos que Deus deixou para os homens. Só que ele deu uma interpretação inovadora, e radical, ao que era entendido como cumprimento da lei.

Nas famosas “antíteses” – “Ouvistes o que foi dito aos antigos … Eu, porém, vos digo”, Jesus não está revogado os mandamentos da Lei de Deus: está, isto sim, lhes dando uma interpretação radical.

“Não matarás” não quer dizer apenas que não devemos tirar a vida de uma outra pessoa (embora inclua isso). Por que alguém chega ao ponto de querer tirar a vida de uma outra pessoa? Porque tem raiva dela. A causa que nos leva a matar é a raiva, o ódio. Logo, quem tem a vontade de matar uma pessoa, porque sente raiva e ódio dela, em seu coração já fez algo equivalente a matar, sem ter a coragem de ir adiante e tirar a vida da outra pessoa. É a remoção dessa vontade, calcada nesse sentimento ruim, que Deus deseja que eliminemos de nossa vida.  

O mesmo tipo de intepretação deve se aplicar aos demais mandamentos, como, por exemplo, “Não adulterarás”. Por que alguém chega ao ponto de cometer adultério, vindo a manter relações sexuais com o cônjuge de uma outra pessoa? Porque teve sentimentos de cobiça e atração sexual (tesão) em relação a essa pessoa. Mesmo que não venha a manter relações sexuais com ela, o pecado, no entender de Jesus, já foi cometido. Isso não quer dizer que, já que o pecado já foi cometido “in pectore”, não tenho nada a perder cometendo-o exteriormente também. Não. Não é isso. O que é preciso entender é que a eliminação do adultério só se dará se as emoções, os sentimentos, a vontade das pessoas for alterada, tornar-se uma vontade regenerada, nascida de novo, e ela não cobiçar e desejar o cônjuge dos outros.

Jesus radicalizou a interpretação do que significava o cumprimento da Lei de Deus: era ir além das exterioridades e mudar os sentimentos e a vontade. Mas não revogou a Lei de Deus, dada ao povo judeu. Ele foi apenas um judeu mais radical, querendo reformar o Judaísmo do seu tempo.

4. Como entender o Jesus histórico como um judeu de sua época?

Jesus era um judeu do seu tempo e de sua terra. Acreditava nas tendências apocalípiticas do seu tempo, de que o fim deste mundo estava próximo e que Deus iria inaugurar o seu Reino. Para entrar nesse Reino, os judeus teriam de ter seus pecados perdoados e, para que isso acontecesse, precisavam ser batizados, como ele próprio o foi.

Jesus não tinha a intenção de criar uma nova religião. Ele queria reformar o Judaísmo de sua época, radicalizando o que se entendia como cumprir a Lei e fazer a vontade de Deus. Embora a Lei Judaica fosse constituída pelo Decálogo e por uma enormidade de pequenas leis e regulamentos que se acreditavam ser derivados do Decálogo, Jesus procurou demonstrar que a essência da Lei era amar a Deus sobre todas as coisas e amar ao próximo como a si próprio. “Mas quem é o meu próximo?”, perguntou o esperto. O meu próximo, disse Jesus, através da Parábola do Bom Samaritano, é quem precisa de mim, seja ele amigo ou inimigo, seja ele judeu ou não-judeu, seja ele quem for. O amor a Deus não se expressa lendo os escritos sagrados, orando, indo à sinagoga ou ao templo, fazendo sacrifícios, guardando zelosa e minuciosamente o Sábado. O amor a Deus se expressa quando a pessoa se torna o próximo da pessoa que precisa dela, quem quer que seja, e qualquer que seja a sua necessidade. Ser o próximo de alguém é se comportar para com essa pessoa com o mesmo amor que a gente gostaria que Deus cuidasse de nós.

5. Quem era Jesus (na opinião de Paulo)?

Jesus nunca escreveu nada. O que sabemos dele vêm das histórias coletadas acerca dele, que relatam o que ele fez e disse, que vieram a compor o Novo Testamento. Essas histórias estão reunidas dos Evangelhos Sinóticos e no Evangelho de João.

Paulo escreveu bastante. Mas Paulo não conheceu o Jesus histórico, pessoalmente. Nunca o viu. O livro de Atos relata que Paulo teria tido uma visão na Estrada de Damasco em que Jesus teria aparecido para ele, embora já tivesse morrido há cerca de três anos.

No Novo Testamento há treze cartas que são atribuídas a Paulo. Mas a crítica bíblica atual acredita que apenas sete dessas cartas foram realmente escritas por Paulo: Romanos, 1º Coríntios, 2º Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1º Tessalonicenses e Filemon. São consideradas pseudoepígrafas ou dêutero-paulinas estas seis cartas: Efésios, Colossenses, 2º Tessalonicenses, 1º Timóteo, 2º Timóteo e Tito.

O que Paulo revela saber sobre o Jesus histórico é muitíssimo pouco. Aqui transcrevo o que Ehrman levantou sobre o conhecimento que Paulo revela do Jesus histórico e apresentou em um slide que eu traduzi:

  • Era nascido de mulher (Gál 4:4)
  • Era judeu (Gál 4:4)
  • Ele tinha irmãos, um dos quais se chamava Tiago (1
  • Ele teve doze discípulos (1 Cor 15:5)
  • Ele exerceu seu ministério junto aos judeus (Rom 15:8)
  • Ele foi “entregue” (traído?) (1 Cor 11:23)
  • Ele predisse sua morte sacrificial (1 Cor 11:23-25)
  • Ele foi crucificado (passim)
  • Ele recomendou / determinou que as pessoas não se divorciassem (1 Cor 7:10; cf. Mar 10:11-12), e que os membros das igrejas pagassem os seus ministros  (1 Cor 9:13-14; cf. Luc 10:7)

Só isso.

Para realçar quão chocante é o pouco que Paulo revela conhecer do Jesus histórico, eis o resumo que Ehrman faz, em um de seus slides, de que afirmações que Paulo não faz acerca de Jesus (e que eu traduzi):

  • Que ele nasceu de uma virgem
  • Que sua mãe se chamava Maria
  • Que ele foi batizado por João Batista
  • Que ele foi tentado
  • Que ele fez exorcismos
  • Que ele fez curas milagrosas
  • Que ele ressuscitou pessoas
  • Que ele fez outros milagres (multiplicar os pães e peixes, por exemplo, andar sobre as águas, etc.)
  • Que ele pregou que o Reino de Deus estava próximo
  • Que ele proferiu um Sermão na Monte
  • Que ele contou várias parábolas
  • Que ele fez vários discursos
  • Que ele fez reivindicações acerca de quem ele era
  • Que ele discutiu com os Fariseus
  • Que ele viajou até Jerusalém
  • Que ele entrou triunfalmente em Jerusalém
  • Que ele expulsou os vendilhões do Templo
  • Que ele orou em Getsêmani
  • Que ele foi presoQue ele foi julgado perante o Sinédrio
  • Que ele foi julgado perante Pilatos
  • Que ele foi preterido a Barrabás pela multidão
  • Que ele foi açoitado e que várias pessoas zombaram dele

Ehrman explica por que Paulo não teria dito nada acerca dessas afirmações contidas nos Evangelhos Sinóticos: todas suas cartas foram escritas ANTES de que qualquer Evangelho tivesse sido escrito. Mas os autores dos Sinóticos usaram fontes. Será que Paulo não teria tido acesso a essas fontes? Se teve, por que não menciona essas informações que certamente estariam incluídas nas fontes? Talvez ele não tivesse acesso a essas informações das fontes. Mas será que as pessoas com quem ele teve contato e que haviam tido conhecimento pessoal de Jesus não lhe disseram essas coisas? Talvez ele achasse que seus leitores já soubessem dessas coisas – mas sendo gentios, eles dificilmente teriam sabido dos detalhes da vida do Jesus histórico. Ehrman afirma não saber qual é a resposta mais adequada. Pode ser que Paulo não tenha mesmo tido acesso a essas informações, ou que, tedo tido, mas não as tenha considerado relevantes para os seus propósitos, que estão concentrados na morte e na ressurreição de Jesus. Para Paulo Jesus era o Filho de Deus que foi encarnado, e ao final foi morto e ressuscitado por Deus, que o levou para sua companhia, e que um dia voltará, para julgar os vivos e os mortos.

6. O que Paulo pregou acerca da natureza e da missão de Jesus?

A primeira coisa que se deve dizer sobre o ponto de vista de Paulo é que a missão de Jesus não foi proclamar o fim dos tempos e a chegada do Reino de Deus e conclamar os judeus a se arrependerem de seus pecados, pedir perdão por eles e serem batizado.

A segunda coisa que se deve dizer é que, para Paulo, a salvação não vem pelo cumprimento da Lei. Os seres humanos não só não cumprem a lei, eles não conseguem cumprir a lei por causa dos pecados que cometeram e a raça humana cometeu, desde Adão.

Para Paulo, Jesus é parte do plano de salvação da humanidade, tanto dos judeus como dos gentios (não-judeus). Ele é o Novo Adão. Ele representa a possibilidade de uma nova criação.

Na verdade, Jesus, para Paulo, é um ser preexistente que Deus trouxe ao mundo, encarnando nele e considerando-o seu Filho, para que ele fosse morto pelos pecados dos homens, tanto judeus como gentios.

Pecar, para Paulo, é um ato de desobediência a Deus, é desobedecer a vontade de Deus para nós. E por causa do pecado original, de Adão (que Paulo às vezes designa como Primeiro Adão), o restante dos seres humanos ficou incapacidade de voltar a obedecer a Deus. Ao desobedecer a Deus humanos contraem uma dívida, como se fosse, para com Deus, que são incapazes de pagar – e, se Deus não intervier, todos seremos condenados à morte por causa dessa dívida / desse pecado.

Para Paulo, a morte de Jesus, em quem Deus se encarnou, fazendo com que Jesus fosse o Filho de Deus, ou o próprio Deus encarnado, é o pagamento da dívida que os seres humanos contraíram para com Deus pelo sua desobediência à sua vontade.

Que Deus não tenha deixado Jesus morto, mas o tenha ressuscitado, é a demonstração, ou o recibo, por assim dizer, que Deus dá, em comprovação do fato de que ele aceita o pagamento da dívida que Jesus fez por nós através de seu sacrifício na cruz. Ele, que era sem pecado, morreu, como se pecador e mesmo criminoso fosse, para que, com sua morte, nossa dívida fosse quitada e nossos pecados fossem remidos.

A morte e a ressureição de Jesus representam o cumprimento vicário, em nosso lugar, da lei que expressava a vontade de Deus. Agora a lei já está cumprida de uma vez por todas e tanto os judeus como os gentios, estão desobrigados de cumpri-la, como forma de conquistar a salvação. O preço de nosso livramento do salário do pecado, que é a morte, já foi pago.

O pagamento jã fo feito. Nada mais há a pagar. Estamos livres do salário do pecado que é a morte eterna.  

Mas nós, os seres humanos, temos de aceitar o pagamento de nossa dívida que Jesus fez. E essa aceitação é feita pela fé, que é a confiança, quiçá a certeza, de que estamos perdoados.

Paulo usa outros modelos mentais para explicar quem, no seu entender, era Jesus, qual era a sua a missão, e como ela foi exercida. Mas esse modelo judicial é o mais frequentemente usado por ele e o mais importante.

7. O que Paulo pregou sobre a conduta ética que é exigida do cristão?

Mas se a lei já foi cumprida, vicariamente, por nós, temos nós, ainda, a obrigação de agir moral e eticamente? Por que Paulo é tão insistente em conduta correta, se a lei já foi cumprida em nosso lugar?

Talvez Lutero tenha interpretado Paulo corretamente, quando diss, e que nós não só podemos, como devemos pecar, para que a graça divina superabunde, pois os pecados foram antecipadamente perdoados.

8. Como se comparam os pontos de vista de Jesus e Paulo sobre essas perguntas?

Para concluir, é evidente que Jesus e Paulo pregam mensagens diferentes, que eles representam duas religiões diferentes – embora haja pontos de ligação entre elas.

Para ambos, o fim do mundo estava próximo. Nisso Paulo era tão apocalíptico quanto Jesus.

Mas Jesus pregava a salvação – entrada no Reino de Deus – através do cumprimento da lei, do arrependimento, e do perdão dos pecados, através do batismo.

Para Paulo a salvação é a vida eterna que nos é graciosamente concedida pela morte e ressurreição de Jesus. Basta que aceitemos essa graça. Cumprida vicariamente por Cristo, a Lei está revogada, e não hã mais diferença entre judeu e gentio, homem e mulher, escravo ou senhor.

São duas religiões diferentes e incompatíveis.

Os teólogos liberais alemães do século 19, Adolf von Harnack entre eles, e de forma especial, optaram pela religião de Jesus. Na verdade, com Harnack foi o primeiro historiador do Cristianismo a enfatizar as diferenças teológicas e éticas entre a mensagem de Jesus e a de Paulo. Ele chegou a chamar a mensagem de Jesus de Cristianismo, e a mensagem de Paulo de Catolicismo, enfatizando que os dois representavam religiões diferentes.

A igreja cristã medieval e igreja reformada optaram, de forma diferente, pela religião de Paulo. A chamada Reforma Radical optou pela religião de Jesus.

Nós, hoje, temos de escolher se somos “jesuínos” ou “paulinos” em nosso Cristianismo (e, caso optemos por ser paulinos, se na versão católica ou na versão reformada).

Em Salto, 29 de maio de 2023

ADENDO:

Descrição oficial do curso fornecida no processo de venda

COURSE OVERVIEW

Did Paul and Jesus Have the Same Religion?

This course addresses one of the most controversial issues of early Christianity: Did Paul and Jesus have the same religion? Should they be considered the “co-founders” of Christianity? Or were the teachings of Paul at odds with the proclamations of Jesus, making Paul himself the founder of the new faith? Few questions can be more significant for understanding the origin of the Christian faith, and the answers are by no means simple.

Virtually everyone can agree that Jesus’ life and teaching stand at the foundation of the Christian faith. No Jesus, no Christianity. But Paul hardly ever mentions Jesus’ words and deeds. For him, the entire point of Jesus’ life was his death and resurrection. And so was Paul a follower of Jesus’ own teachings? And, conversely, should Jesus even be considered a Christian?

In short, is it right to say that Paul transformed the Jewish religion OF Jesus to the Christian religion ABOUT Jesus? Or is it more complicated than that…

KEY ISSUES EXPLORED IN THIS COURSE

• How can scholars know what Jesus really said and did if all we have are later accounts written about him, decades after his life, by people who didn’t know him and who described his words and deeds in light of their own beliefs?

• What did Paul, writing before the Gospels, actually know about Jesus’ life, about his words, deeds, and experiences? Why did he say so little about it? Did he assume his readers already knew all about it? Did he think that Jesus’ life and teachings didn’t matter for salvation? Did he think they were irrelevant for the problems Christians were facing?

• Was Paul’s view of Christ as a pre-existent divine being the same as Jesus’ own view of himself and his mission?

• Jesus preached an apocalyptic message that God would soon destroy all who were opposed to him and bring a new, blessed kingdom to earth. How did that affect his understanding of salvation? Is Jesus’ call for repentance and a return to God the same as Paul’s gospel of Jesus’ death and resurrection?

• Jesus instructed his followers to keep the Law and to live for others in order to enter the kingdom. How does that compare with Paul’s view that a person is made right with God apart from the law?

• If Jesus was right, that a person could enter the kingdom by behaving the ways God demanded, why would he have to die? If Paul was right, that only belief in Jesus’ death and resurrection could bring salvation, why wasn’t that the focus of Jesus’ own teachings?

• Since Paul claimed that a person could be saved apart from keeping the law, does that mean he advocated “lawless” behavior? How can he insist on ethical behavior? Does God care if a person keeps the Law?

[Compartilhado do material de divulgação.]



Categories: Liberalism

2 replies

  1. Caro Prof. Eduardo Chaves,

    Desde que me inscrevi na sua Newsletter, a propósito de comentar sobre meu falecido sogro, Álvaro Érix Ferreira, tem sido um prazer receber seus ensaios em meu e-mail.

    Me chamou bastante a atenção seu texto sobre o curso de Bart D. Ehrman (este e a parte 1).

    No dia 29 último fiquei tão curioso que, ao invés de comprar um dos livros dele pela internet e aguardar um dia ou dois, não esperei e baixei a versão pdf da versão traduzida de “Quem Escreveu a Bíblia?”. Confesso que não gosto muito de ler livros em uma tela, contudo a curiosidade foi maior que o gosto e, aproveitando que esse quadrimestre estou livre de carga didática (também deixando de lado o parecer de um projeto para a FAPESP e a análise de um capítulo da dissertação de um aluno), terminei a fascinante leitura das quase 400 páginas ontem mesmo.

    Engraçado é que no último sábado fomos à Missa na Paróquia São Charbel aqui de Campinas, onde nos casamos e nossos filhos foram batizados, e, como de costume, minha esposa Cristiane me censurou por não fazer reverência e tão pouco o sinal da cruz quando o sacerdote passa desfilando com um exemplar da Bíblia acima dos ombros. Tinha comigo que não o faço em respeito aos livros que não entraram no cânone. Sempre tive uma ciência raza disso por conta de reportagens que li e documentários que assisti. Todavia, através da sua Newsletter conheci o prof. Bart D. Ehrman e fiquei impressionado com a profundidade e seriedade com que ele analisa questões tidas como sagradas e inquestionáveis pela grande maioria das pessoas. Foi uma leitura muito prazerosa sem dúvida, principalmente a análise da veracidade/falsidade das epístolas. Citando o próprio Ehrman em “Quem Escreveu a Bíblia?”

    “…Grande parte dela é tediosa para seres humanos normais, mas fascinante para acadêmicos anormais.”

    Me incluo no segundo tipo de seres com certeza. Hoje consegui o pdf do livro “Como Jesus se tornou Deus?”. Todavia, preciso segurar a curiosidade e dar atenção para meus deveres para com a universidade e assim a leitura ficará para o próximo final de semana. Escrevo para lhe agradecer a introdução desse pensador nada ortodoxo.

    Um abraço,

    Reinaldo.

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    • Caro Reinaldo:

      Que bom receber e uma resposta, e, em especial, uma resposta deste quilate.

      Gosto muito de ler Bart Ehrman. Ele trata de questões complicadas e difíceis de uma forma natural. Não sei se você viu uma frase curtinha dele, em resposta a uma pergunta, que também transcrevi no Facebook.

      “Erros e contradições na Bíblia (na área científica, histórica, geográfica, ou acerca de fatos comuns do dia-a-dia) não devem levar ninguém a abandonar a fé cristã — a menos que sua fé cristã se limite à crença de que a Bíblia é inerrante e infalível em qualquer área, mesmo em áreas que nada têm que ver com religião.”

      Precisamos nos encontrar qualquer hora dessas.

      Um grande abraço. (E, por favor, me chame de Eduardo, não de Professor Eduardo Chaves. Ou, se preferir, vá direto para Edu…)

      Eduardo

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