Sobre os Poderes da Mente Humana – PARTE 1

Começo escrever agora, aos 42 minutos do dia 20.1.2024, madrugada de um sábado. Acordei, de forma plena, faz alguns minutos, mas lembro-me de ter ficado por um tempo, cuja duração não consigo determinar exatamente, naquele lusco-fusco entre dormindo e acordado, em que você parece estar consciente, ou semiconsciente, pensando sobre algumas coisas bastante específicas, mas em que você parece também estar parcialmente sonhando, num outro mundo… Nesse estado, eu me lembrava de ter vindo dormir mais cedo ontem, 19.1.2024, uma sexta-feira, porque o dia foi um dia fisicamente cansativo para mim. Acordei por volta das 6h da manhã, no quarto de uma confortável pousada no sul do Estado de Ohio, no município de Logan, chamada Hocking Hills State Park Lodge. Ficamos na pousada até a hora do check-out obrigatório, 11h da manhã. Nevava relativamente forte. Pegamos o carro e começamos a voltar para Cortland, Ohio, onde estou hospedado na casa da minha filha mais velha. Mas não viemos direto. Fomos fazer umas trilhas no parque, em lugares maravilhosos, totalmente cobertos de neve, com vegetação intensa, mas relativamente seca por causa do Inverno, e rochas enormes, formando cavernas, ou, mais frequentemente, semicavernas, desfiladeiros (pequenos canyons e gorges), etc. Ficamos, acredito, umas três horas andando, com medo de escorregar na neve, ou que de uma estalactite caísse sobre nossa cabeça (havia alguns blocos de gelo enormes no chão, aqui e ali, caídos das rochas ou das árvores). Foi tudo muito lindo, tiramos muitas fotografias, mas foi algo cansativo, ao qual não estou acostumado. Por isso resolvi vir dormir mais cedo.

Deitei-me, não me lembro bem que hora era (acredito que era por volta de 23h), e peguei logo no sono. Depois de algum tempo saí do estado de sono mais profundo ou pesado e entrei nesse estado de sonho em que eu pareço estar meio sonhando, meio acordado. No sonho desse meio-sono, eu estava escrevendo numa tela que não reconheço como nenhuma de minhas telas. Mas lembro-me bem do assunto sobre o qual estava escrevendo e dos autores cujo pensamento girava em minha cabeça. E esses autores saíram das páginas de um livro que comecei a ler antes de dormir, porque só tive acesso a ele depois de chegar em casa: estava na caixinha do correio da casa da minha filha. O título do livro é C. S. Lewis & Philosophy as a Way of Life, e quem o escreveu foi Adam Barkman. Minha cópia é encadernada, bonita, e tem 620 páginas. Lembrei-me, ao constatar isso, de que minha tese de doutoramento, defendida em 8 de Agosto de 1972, mais de cinquenta anos atrás, também tinha 620 páginas. Minha tese foi sobre o filósofo escocês David Hume, que viveu no século 18 na Escócia, na Inglaterra e na França (onde ficou amigo de Voltaire, Diderot, d´Alembert, Rousseau, etc.) Seu título foi David Hume´s Philosophical Critique of Theology and its Significance for the History of Christian Thought.  Na Introdução do livro que chegou ontem, o autor, Barkman, faz referência a um outro livro, que ele usou para escrever o seu, que me chamou a atenção, por causa do assunto destacado no título: God and the Reach of Reason: C. S.  Lewis, David Hume and Bertrand Russell. O autor desse livro é Erik Wielenberg. Esse livro, evidentemente, trata de uma temática que se sobrepõe à da minha tese. David Hume está presente nos dois. Bertrand Russell, por sua vez, é por muitos considerado o David Hume do século 20, por causa de seu empirismo cético e de sua crítica à religião e aos costumes. Russell era um dos meus autores favoritos, quando escrevi minha tese. C. S. Lewis eu não conhecia bem, nessa época, embora tenha dois livros dele que adquiri em 1964, três anos antes de vir para os Estados Unidos. Mas ele tem ocupado constantemente as minhas preocupações intelectuais, teológicas e filosóficas, desde 2011. Em resumo, essas eram as coisas que giravam na minha mente antes de eu cair no sono.

A ideia focal que dava unidade aos meus pensamentos,  no sonho, lembro-me bem, dizia respeito aos poderes da mente humana. Esse foi um assunto que sempre me preocupou, desde que comecei a ler Hume, nos idos de 1967,  e que voltou a me preocupar depois que voltei a dedicar atenção a C. S. Lewis, doze ou treze anos atrás. O poder principal de nossa mente parece ser pensar. Mas, para pensar, a mente precisa de conteúdos: pensar sobre o quê? Esses conteúdos, segundo Hume, vêm principalmente de nossas experiências sensoriais, tendo origem nas coisas que vemos (visão), ouvimos (audição), cheiramos (olfação), degustamos (gosto), e sentimos com as mãos ou outras partes do corpo (tato). Hume foi influenciado por ideias empiristas, que tiveram origem lá na Grécia Antiga, ideias essas que afirmavam que nada chega até a nossa mente a não ser através de um dos nossos cinco órgãos dos sentidos. Nihil in intelectu quod non prius fuerit in sensu: nada existe na mente (no intelecto) sem que tenha passado antes por um dos órgãos dos sentidos. Esta é a máxima principal dos empiristas. A percepção sensorial é, para Hume, fundamental para nosssa atividade intelectual porque, sem ela, não seremos capazes de pensar, porque nossa mente, através de sua faculdade intelectual, que é a que pensa, não terá matéria prima sobre a qual pensar, e, assim, nós não teremos conteúdos sobre os quais possamos exercitar nosso poder mental de pensar. Quem pensa, pensa sempre sobre alguma coisa. Para Hume, nossa mente pensa sobre ideias que foram introduzidas nela pela nossa experiência sensorial. Os sentidos são, por assim dizer, as portas e as janelas da nossa mente: por eles entram na nossa mente as ideias que nos permitem pensar. Não temos, ao nascer, nenhuma ideia em nossa mente: ideias inatas, segundo Hume e outros empiristas, simplesmente não existem. Todas as nossas ideias são, em última instância, dependentes de nossa experiência sensorial.

Aqui, porém, o que parecia simples e até viável começa a se complicar. Nossas experiências sensoriais são, muitas vezes, extremamente rápidas, efêmeras, voláteis, fugazes. Você está assistindo um jogo de futebol no campo, um jogo importante,  uma final de campeonato que seu time está disputando, e você se distrai por um segundo e seu time faz um gol: o gol decisivo da partida e do campeonato – e você não vê! Ou você vê e, em seguida, em conversa, que rapidamente se torna discussão, com seus amigos, fica em dúvida sobre o que você de fato viu: o jogador que fez o gol estava impedido, ou arrumou a bola com o braço, ou removeu o adversário da jogada de forma não permitida? Hoje a gente pode rever a jogada, logo em seguida, no telão do estádio, ou na telinha do celular. Ou pode deixar para conferir com calma em casa, nos replays, que hoje aparecem de todos os ângulos, possíveis e impossíveis. Mas antigamente não havia nada disso. Você se distraiu e perdeu o gol do ano, ou da década, ou quiçá do século, e é isso: você nunca mais vai ser capaz de vê-lo. Ou, se você viu, mas não atentou para alguns detalhes, que outros viram, ou afirmam ver, não há como dirimir a dúvida. A experiência se foi. Mas ficou alguma coisa dela: a memória. No entanto, a memória, como a experiência nos ensina, não é muito confiável. Hoje em dia, pelo menos, ela pode ser facilmente desmentida pelos fatos, refutada por um replay. Mas antigamente, era complicado dirimir as dúvidas suscitadas por memórias diferentes de um mesmo evento.

Uma das razões pela qual a memória é fraca é que as nossas memórias são, segundo Hume, cópias de nossas sensações sensoriais. Elas não têm o mesmo detalhamento, a mesma força, clareza, nitidez e vivacidade que as sensações. Por isso, elas nos são úteis, na verdade indispensáveis. Mas não podemos confiar nelas – embora elas sejam tudo que temos. Esse fato está na gênese do ceticismo de Hume em relação ao nosso conhecimento empírico: o conhecimento baseado nas impressões sensoriais, que é quase tudo que temos, são pouco confiáveis. Como as impressões sensoriais fogem rápido de nossa mentet, e, pelo menos na época de Hume, não era possível captá-las e preservá-las em algum tipo de meio ou material, sempre devemos ter uma certa desconfiança delas. E nossa desconfiança deve aumentar quando as memórias de que se está tratando não são originalmente nossas, mas de terceiros. Pois os terceiros também não têm mais acesso às suas experiências sensoriais originais, mas apenas às suas memórias, como é o caso conosco, e nossa experiência nos mostra que, como no nosso caso, as memórias dos outros podem ser falhas ou mesmo totalmente falsas. E nossa experiência também nos ensina que, muitas vezes, os outros tentam deliberada e intencionalmente nos enganar, levando-nos a acreditar em algo que eles inventaram, do qual nem sequer tiveram nenhuma experiência sensorial. Isso pode ser lamentável, mas sabemos que é verdade. Até nós mesmos, que Deus nos perdoe, somos tentados, de vez em quando, a “inventar umas verdades”, como dizia Voltaire, sem nelas colocar aspas ou alguma advertência, não é mesmo?

Por falar em Deus, Hume nos lembra de que nossa mente não só retém cópias de nossas sensações sensoriais simples, como é capaz de criar (inventar) ideias compostas que não correspondem a nada que nós tenhamos observado sensorialmente. Vemos um bicho grande, como um cavalo. E vemos uma ave grande, como uma águia ou um condor. E criamos a ideia de um cavalo alado, um bicho em quase tudo semelhante ao cavalo mas só que capaz de voar, com asas gigantes, proporcionais ao seu tamanho… A faculdade de nossa mente que nos torna capazes de inventar objetos e, consequentemente, realidades que inexistem é a imaginação. Assim, além dos órgãos dos sentidos, e das experiências sensoriais que eles nos proporcionam, podemos, através de nossa imaginação, inventar ideias de seres que nunca existiram, como cavalos alados, minotauros, mulas que falam, ou mulas sem cabeças, peixes que engolem gente e depois de três dias as vomitam vivas na praia, ou, mais complicado, ideias de pessoas que morreram e, depois de alguns dias, voltaram a viver… Sabendo que muita gente inventa histórias que nunca aconteceram para enganar os otários, devemos tomar cuidado excepcional, recomenda-nos Hume, quando alguém nos relata um acontecimento que envolve experiências ou fatos que nunca vivenciamos, que jamais vimos acontecer antes… Se alguém nos relata que, em algum lugar distante, havia alguém que curava doentes, fazia com que paralíticos voltassem a andar, cegos a ver, mudos a falar, etc., precisamos exercer máxima precaução antes de acreditar, porque essas coisas, embora raramente aconteçam, de vez em quando acontecem. Mas se alguém nos relata que viu alguém que, tendo tido a perna amputada, a recuperou, voltando a crescer até ficar perfeita, ou que vi alguém que já estava morto e enterrado sair do túmulo e voltar a andar, conversar, comer, dormir, a precaução deve ser total: só devemos acreditar se a possibilidade de que quem nos relata esteja enganado, ou tentando nos enganar, estiver totalmente fora de cogitação… Hume nunca negou que milagres fossem  possíveis. Ele admitia a sua possibilidade. Só que, como filósofo que era também historiador, ele procurou mostrar que, se houver um relato de que um milagre aconteceu, mas você não foi testemunha pessoal do fato, você só deve acreditar que se trata de um milagre verdadeiro se a não-crença o envolver na aceitação de algo ainda mais miraculoso… um milagre ainda maior! Ou seja: só acredite que algo que você não presenciou é um milagre se, não crendo, você tiver de acreditar em algo mais miraculoso ainda…

Enfim… Se não temos ideias inatas, e todas as nossas ideias são oriundas da experiência sensorial, como fica a ideia de Deus, um ser eterno, sem princípio, sem fim, presente em todos lugares ao mesmo tempo, onisciente, infinitamente bom, etc. Afinal de contas, nunca ninguém observou um ser desse, porque ele, além de tudo, é imaterial, e, por conseguinte, invisível, inaudível, incheirável, intocável, etc. Hume concluiu que é complicado. Nunca se admitiu ateu, mas não escondeu as dificuldades envolvidas em não sê-lo.

Relacionando esses pensamentos a C. S. Lewis, como é que Lewis, que é o defensor mais famoso do Cristianismo no século 20, consegue a convencer o homem secular e científico da atualidade a manter a sua crença em Deus, caso ele já a tenha, ou a vir a aceitar essa crença, caso ele seja incrédulo até agora?

Eram essas as ideias que me giravam na cabeça enquanto eu meio que dormia, sonhando, ou meio que pensava, de uma forma meio instável, mas que, no sonho, me parecia bastante convincente.

No meio-sono eu dizia a mesmo que precisava anotar essas ideias, para não perdê-las, ao acordar, mas, ao mesmo tempo, sabia que, se eu abrisse os olhos, a tela que estava à minha frente iria desaparecer e eu não conseguiria manter um relato cogente do que estava pensando…

Chose de loque, como diria o Jô Soares. Mas eu paro por aqui. Resolvi sair da cama e escrever esse relato. Amanhã – isto é, hoje mais tarde – pretendo ler mais do livro do Barkman, quando estiver mais lúcido e menos sonolento… E, quem sabe, até comprar o livro de Wielenberg

Até lá…

Foi assim que vim a redigir essas mal traçadas linhas, que transcrevo aqui, desde já.

Em Cortland, 20 de janeiro de 2024.

PS de 10h30 da manhã: Já comprei o livro do Wielenberg.



Categories: Liberalism

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