A Vida Matrimonial de Karl Barth

ADMISSÃO INICIAL, À GUISA DE PREÂMBULO:

Nunca gostei de Karl Barth. Nem de suas ideias, nem da pessoa. Das ideias não gosto porque, teológica e politicamente sou um liberal radical, o que, para mim, significa que soaisu mais liberal do que os próprios. Na verdade, considero-me um libertário anárquico, nas duas áreas.

Quanto a ideias teológicas, passei direto do conservadorismo quase fundamentalista para o liberalismo mais radical que eu encontrei em meados do século passado: o liberalismo de Bultmann, com sua proposta de desmitologizar a mensagem evangélica. Sim, considero Rudolf Bultmann um liberal e nem de longe um neo-ortodoxo como Barth. Assim, saltei por cima da chamada Neo-Ortodoxia, também chamada de Teologia Dialética. Tive uma certa simpatia por Emil Brunner, mas mais porque ele defendia o direito de existir da Teologia Natural do que naquelas áreas em que ele concordava com Barth.

Quanto às pessoas, sempre achei o Barth um grosso, disposto a arremeter de forma tosca contra aqueles que eram seus amigos, como Bultmann e Brunner. Ele conseguiu hostilizá-los de tal maneira que os outros dois B’s nunca mais quiseram conversar com ele, apesar dos esforços de amigos mútuos.

Ao resolver pesquisar o assunto deste artigo era essa a minha posição em relação a Barth e suas ideias. A posição relação às ideias dele, não mudou em nada. Mas em a posição em relação à pessoa dele, confesso, abrandou um pouco. O homem, por causa de suas ideias relativamente rígidas, se colocou diante de uma sinuca de bico. Ao redor dos quarenta anos, ele, casado e com cinco filhos, já relativamente famoso, se apaixonou por outro mulher. A sinuca de bico dele era: Sendo quem ele era, tendo ele as ideias que tinha, ele não conseguia nem se separar da mulher com quem estava casado, nem, talvez muito menos, jogar fora a paixão que, pela segunda vez lhe caía em mãos. Segunda vez porque ele, antes de se casar, teve uma outra paixão fulminante, mas seu pai, radicalmente conservador, o forçou a abrir mão da paixão para a segurança de um casamento tranquilo, mesmo que sem amor. Desta vez, ele concluiu, ele não iria abandonar o amor e a paixão. Mas também não tinha coragem de abandonar o casamento. Solução salomônica: ficou com as duas coisas, trazendo sua grande paixão (que era sua assistente) para dentro de sua casa. Resolveu o seu problema e deixou que as duas resolvessem o problema da convivência entre elas. Sua solução o obrigou a, até certo ponto, viver uma vida para dentro das paredes de sua casa e outra, fora. Mas era o que ele, sendo quem era, e pensando o que pensava, conseguiu fazer. Não se separar nem de uma nem da outra. Razoável. Mas não tenho dúvida de que ele, como se dizia quando eu era menino, sofreu pacas.

Imaginando o sofrimento dele, fiquei com certa simpatia pela pessoa. E coloco a culpa nas ideias que ele herdou e das quais não conseguiu se desprender. Ideias que estão ainda por aqui no universo evangélico e católico.

A QUESTÃO EM FOCO, PROPRIAMENTE DITA

Vira e mexe, nos últimos tempos, pelo menos de 2017 para cá [1], encontro artigos mencionando ou discutindo um episódio, que muitos consideram vexatório e mesmo escandaloso, na biografia de Karl Barth (1886-1968): o fato de que, depois de estar casado por cerca de treze a quinze anos com Nelly Hoffmann (1893-1976; o casamento foi em 1913), e de ter cinco filhos com ela (o segundo dos quais, Markus, foi meu professor de Novo Testamento no Seminário Teológico Presbiteriano de Pittsburgh [2]), Barth se apaixonou por outra mulher. A mulher era Charlotte von Kirschbaum (1899-1975), que era uma pessoa encantada pela Teologia, em si, e grande admiradora dele, Barth (em relação ao qual ela era treze anos mais nova – nem tanto assim, admitamos, para quem é trinta e dois anos mais velho do que a mulher, como eu). Ela, von Kirschbaum, provavelmente por volta de 1926-1928, passou a ser Assistente de Barth no plano acadêmico e editorial. A partir de 1929, porém, ela passou a viver com Barth e sua família, em regime literalmente integral, em condições parcialmente detalhadas abaixo. Isso se deu quando ele entrava em seus quarenta anos e ela tinha entre vinte e sete e vinte nove anos.

Dando um salto à frente, para tranquilizar aqueles barthianos que se descuidam das questões biográficas, e que pode, a esta altura, estar preocupados de que Barth tenha se deixado iludir por uma secretariazinha bonita, mas ingênua e simplória, Charlotte von Kirschbaum veio a se tornar uma teóloga reconhecida por seus próprios méritos, tendo publicado vários livros, em assuntos que passavam longe dos interesses de Barth. O mais importante, porém, é que seu trabalho, a partir desse período (1927-1929), é reconhecido por muitos autores e biógrafos de Barth, como sendo equivalente ao trabalho de uma coautora de tudo que Barth escreveu desse momento até perto da morte dele, em 1968. (Von Kirschbaum faleceu apenas em 1975, mas ficou incapacitada, por doença, a partir de 1966. Mesmo assim, teria tido quase quarenta anos de coautoria com o maior teólogo do Século 20). Embora não registrada de maneira formal e oficial, essa coautoria da maior parte do que Barth escreveu de 1927-1929 em diante, até 1966, em especial da Kirchliche Dogmatik (Church Dogmatics), foi, de certa forma, admitida e reconhecida pelo próprio Barth, com palavras bastante enfáticas, conforme se pode ver na nota [3].

Esclareça-se que a convivência de tempo integral entre von Kirschbaum e Barth se deu, como dito, a partir de 1929, quando ela, em grande parte por decisão dele, à qual ela e a mulher de Barth anuíram, passou a viver integralmente no seio da família Barth, ao lado de Nelly Hoffmann e dos cinco filhos de Karl Barth (que chamavam von Kirschbaum de “Tia Lollo”). Ali ela permaneceu, durante quase quarenta anos, até 1966, dois anos antes da morte de Barth, quando, por causa de sua condição de saúde, precisou ser internada em uma clínica especializada. Uma palavra deve ser dita acerca do fato de que von Kirschbaum era companhia infalível de Barth em suas viagens mais importantes e longas. E todo mundo se referia a ela como a Assistente do Barth [4].

Eu ousaria dizer – e aqui começo a entrar em área meio pantanosa — que, (a) exceto pelo elemento “paixão” (hoje incontestavelmente comprovado), que Barth e von Kirschbaum vieram a sentir e de fato vivenciaram, como provam as cartas entre eles: e (b) exceto pelo fato de que von Kirschbaum foi literal e inteiramente integrada à família (a ponto de, por determinação de Barth, executada por sua mulher, von Kirschbaum ter sido enterrada, quando morta, naturalmente, no mausoléu da família Barth, onde ele já estava enterrado, e onde, em seguida a ela, Nelly Hoffmann-Barth encontrou seu descanso definitivo, ao lado dos dois – exceto por esses dois fatos, a história, até aqui, mesmo que não possa ser considerada exatamente comum e corriqueira, provavelmente não teria causado mais do que um franzimento de testa e um enviesamento de sobrancelhas nos leitores do pasquim chamado Folha de S. Paulo, fosse Barth uma pessoa comum.

Conspira contra o caráter comum do episódio o fato de que o principal personagem da história é considerado, por muitos, o maior teólogo cristão do Século 20, e, quiçá, um dos cinco maiores teólogos da História do Pensamento Cristão, ao lado de Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, João Calvino, e Frederico Ernesto Daniel Schleiermacher. O próprio Papa parece ter externado ponto de vista (alguns questionam) de que Barth foi o maior teólogo da Igreja depois de São Tomás de Aquino, o teólogo oficial da Igreja Católica [5]. Barth, no entanto, enquanto vivo, considerava Schleiermacher maior do que ele [6]. Desconhecemos o que ele possa ter vindo a pensar depois de morto.

Os fatos provavelmente não teriam alcançado proporção de escândalo maior que alcançaram, se Karl Barth, como João Calvino, antes dele, não inspirasse, em um segmento significativo de seus admiradores e seguidores, uma verdadeira devoção, de tal modo que, não fossem eles protestantes, seus nomes, para essas pessoas, certamente viriam precedidos de “São”: São João Calvino e São Karl Barth. Para seguidores desse tipo, a notícia de que Barth, depois de casado há vários anos, e de ter tido cinco filhos com essa mulher, ter se apaixonado por outra, só pode ser invencionice de invejosos, rumor espalhado por gente mal-intencionada que não tem mais o que fazer – algo quase equivalente à suposta paixão de Jesus de Nazaré por Maria de Magdala… Enfim, Fake News. E muitos quebraram a cara afirmando isso, quando os próprios filhos de Barth resolveram divulgar as cartas dos três membros da Trindade Barthiana um para o outro.

Mas até aí, e mesmo reconhecendo o que eu registro no parágrafo anterior, a situação não deveria ter gerado tanta controvérsia, tanto “denial”, tanto insulto…

O pior, de certo modo, está no fato de que, mesmo apaixonado por sua competente Assistente, Barth, alega-se, poderia ter agido de forma diferente. O pior, portanto, foi a forma que Barth escolheu para lidar com uma situação admitidamente difícil.

Primeiro, Barth poderia ter tentado esconder a paixão, na esperança de que ela viesse a passar.

Segundo, não conseguindo, ele poderia ter confrontado sua mulher com um discreto pedido de divórcio, com uma pensão legal – que seria desagradável, mas nem tanto (pelo menos hoje).

Mas não: Barth não fez nenhuma dessas duas coisas. Ele convidou von Kirschbaum a trabalhar com ele, como sua Assistente, comunicou à sua mulher que ele estava apaixonado por sua Assistente, e, pior de tudo, comunicou também que ele a estava trazendo para viver em sua casa, em família, ao lado da sua mulher e de seus filhos.

Ou seja: Barth decidiu que seria, aparentemente, e para quase todos os fins práticos, um quase bígamo. (Explico adiante por que uso o qualificativo “quase”). E o que ele decidiu fazer, ele fez. Presumivelmente von Kirschbaum foi consultada por ele se ela “topava o arranjo”, e teria concordado. Ela poderia muito bem ter exigido que ele se divorciasse da mulher e se casasse com ela. Isso seria comum. Mas ela não fez isso, pelo que consta. Mas Hofmann-Barth presumivelmente não foi seriamente consultada. Se foi, o que ela preferia provavelmente não foi levado em consideração. Ela foi, isto sim, confrontada com decisões consumadas de um par que já havia discutido a questão e tomado uma decisão. Hoffmann-Barth poderia muito bem ter exigido que, se seu marido quisesse ficar com a outra, ele que saísse de casa e fosse morar com a Assistente em outro lugar. Mas por qualquer conjunto de razões que seja, Hoffmann-Barth não teve cacife ou coragem de firmar posição de confronto. Ela, com ou sem luta, concordou com tudo. Oportunamente parece ter ficado até amiga de von Kirschbaum. Há fotos das duas trabalhando juntas, sorridentes, como boas amigas.

Em suas inúmeras viagens, Barth, frequentemente, levava von Kirschbaum com ele, pois afinal de contas ela era sua Assistente, e Hoffmann-Barth ficava em casa, cuidando dos filhos, dos afazeres domésticos e do domicílio da Tríade (antes falei em Trindade – os dois termos valem). Em alguns casos, como na temporada que ele passou no Seminário Presbiteriano de Princeton, há registro confirmado de que, quando notificado de que o Seminário lhe havia reservado dois quartos, um para ele e outro para sua Assistente, informou a instituição, sem hesitação ou receio de uma má repercussão no ambiente puritano de Princeton, que um só bastava, porque ele e ela ficariam hospedados no mesmo quarto. (Na casa de Barth o único acesso ao quarto de von Kirschbaum era a partir do escritório de Barth). Ou seja, para fora, isto é, diante de terceiros, ele parece ter encarado a situação com a mais absoluta naturalidade, como se fosse a coisa mais normal do mundo um homem famoso (de meia idade, mas vivo) dormir no mesmo quarto que sua jovem Assistente.

A situação ficou ainda mais complicada quando transpiraram registros de que Barth estava convencido de várias coisas.

Primeiro, de que sua paixão para com von Kirschbaum era inelutável, que ela era, para ele, impossível de conter e resistir, e que, portanto, ele não era capaz de abrir mão dela.

Segundo, e mais delicado, que a união dele com a segunda mulher era da vontade de Deus e que os demais arranjos (todos ficarem morando em uma mesma casa, sem separação ou divórcio) seriam a forma menos complicada de organizar uma situação inerentemente complexa.

Com esse segundo ponto, aqueles que já estavam escandalizados, ficaram muito mais escandalizados. Afinal de contas, para muitos deles a distância entre a Bíblia e a teologia de Barth era pequena. Algo parecido, como já ressaltei, com o que acontece com os calvinistas ferrenhos, para quem Calvino dizia a mesma coisa que a Bíblia, só que de forma mais sistemática, e a Confissão de Fé de Westminster dizia a mesma coisa que as Institutas de Calvino, só que de forma mais resumida. No fundo, tudo, literalmente tudo, está coberto pela inspiração divina, e esta fica garantida pelas doutrinas da Bíblia como Palavra de Deus, e as consequentes doutrinas de sua inerrância e infalibilidade.

Quoi faire ?

Primeiro, é preciso registrar, pois o fato tem alguma relevância, que Barth havia sido apaixonado, na juventude, por uma outra moça, Rösy Münger (1888–1925), mas que sua família o proibiu de se casar com ela, obrigando-o a se casar Nelly Hoffmann, escolhida por seus pais. Ele assentiu, mas esse fato decretou que o seu casamento fosse, desde o início, um casamento sem amor, e, aparentemente, com algum rancor.  Consta que ele carregou em sua carteira, para o resto da vida, uma foto de Rösy Münger, e que a contemplava com frequência, chegando a chorar nesses momentos de contemplação [7].

Segundo, sem ou com algum amor, Barth e Nelly Hoffmann tiveram cinco filhos, mas, aparentemente, sem grande entusiasmo, o relacionamento sexual sendo apenas o meio necessário para a propagação da espécie, no plano geral, e para a continuidade do sobrenome do chefe da família, no caso particular, tendo esse relacionamento sexual cessado, depois da concepção do quinto filho, por não haver nenhuma outra motivação para ele [8]. O desejo sexual, identificado pela tradição original com o pecado original, é, por incrível que pareça, relativamente fácil de matar.

Terceiro, assim sendo, quando Barth se apaixonou, e, no devido tempo, começou a ter um relacionamento sexual com von Kirschbaum [9], era quase como se ele tivesse se divorciado informalmente e casado de novo informalmente, não tendo ele sido realmente um bígamo, em um dos sentidos importantes do termo, porque ele não manteve um relacionamento sexual concomitante com as duas. Pelo menos é o que tudo indica [10].

Quarto, é preciso não esquecer que no Velho Testamento, que descreve uma cultura em que a poligamia era admissível, o Pai da Fé, que gerou as três grandes religiões monoteístas do mundo, também gerou filhos com mais de uma mulher, com o consentimento (na verdade, mais do que isso) da primeira mulher, e sem se separar dela, tanto que, depois de ter um filho com a segunda, veio a ter um filho com a primeira, em um ato que aparentemente contou com a colaboração do próprio Yahweh, pois tanto Abrahão como Sarah, sua primeira mulher, já teriam ultrapassado o ponto em que seria viável produzir um filho. O fato, sugere a Bíblia, foi milagroso – ou seja, contou com a ajuda divina.

Dados esses quatro considerandos, que, de certo modo, atenuam um pouco o inesperado e inusitado da conduta de Barth, é preciso levar em conta estes três pontos seguinte.

  1. Na visão protestante, diferentemente do que acontece na visão católica, o casamento não é um sacramento (um “meio de graça”), mas, sim, um contrato entre duas pessoas (para o qual se invoca a proteção divina), que se comprometem fazer o que for que se comprometam a fazer, nada impedindo que se comprometam a ficar casados por um tempo limitado ou, como é mais frequente, até que um dos nubentes bata as botas;
  2. Na visão protestante, diferentemente do que acontece na visão católica, o casamento não é indissolúvel, o que significa que o que foi contratado pode ser descontratado, de comum acordo ou sendo demonstrada causa relevante e pertinente, esse desfazimento do casamento sendo diferente da anulação que é admitida pela Igreja Católica em situações bem mais restritas;
  3. Quer me parecer que, em algumas circunstâncias, um casal protestante pode recombinar, informalmente, o que foi contratado, para permitir que um dos cônjuges, ou ambos, arrumem um outro parceiro, e que as coisas sejam satisfatoriamente resolvidas sem necessidade de recorrer à dissolução legal do casamento, tudo sendo decidido e resolvido “interna corporis”, como se pode dizer, sem recursos às instâncias formalmente constituídas (à la Barth, por assim dizer).

Se eu estou correto, o “escândalo” gerado em função do que ocorreu com Barth é infundado, e só se explica em função de dois fatos:

Primeiro, a quase santidade atribuída a Barth por alguns de seus seguidores;

Segundo, a aceitação, na categoria de Vontade de Deus, e por conseguinte, de pronunciamentos inerrantes e infalíveis, de algumas passagens da Novo Testamento, sobre separação, divórcio, outro casamento, etc., que me parecem estar na mesma categoria de supostos mandamentos de que a mulher fique calada na igreja, que ela não corte o cabelo, que ela obedeça sem questionamento ao seu marido (porque é inferior a ele, pois ele é o cabeça do casal, por ter sido criado primeiro, a mulher sendo apenas sua ajudante, por ter ela sido criada a partir do corpo dele, etc.), deve depender exclusivamente dele para entender questões complicadas de doutrina, etc. – princípios esses que a maioria mais sensata das igrejas protestantes de hoje já, compreensivelmente, deixou de aceitar como mandatórios (ou, pelo menos, de pôr em prática).

Eu não critico Barth, embora, na posição dele, não viesse a tomar a mesma decisão. Meu desacordo com ele, porém, é mais teológico do que propriamente moral. Acho que ele agiu com a decência moral que lhe era possível manter diante de seus pontos de vista teológicos. Cresceu no meu conceito. Teria crescido mais se tivesse revisto seus postulados teológicos em relação à Bíblia e ao que ela diz acerca de casamento, divórcio, novo casamento, etc. e ele tivesse se divorciado da mulher e casado com Charlotte von Kirschbaum.

Em 19 de Fevereiro de 2024

NOTAS


[1]       Esse ano (2017) foi aquele em que a questão foi clara e abertamente posta em um artigo. Eis o que diz a Wikipedia em Inglês, em seu verbete “Karl Barth”: “Em 2017, Christiane Tietz examinou cartas íntimas escritas por Karl Barth, Charlotte von Kirschbaum, e Nelly Hoffmann-Barth, que discutem o relacionamento complicado que existiu entre essas três pessoas ao longo de 40 anos [65]. As cartas entre von Kirschbaum e Barth, escritas de 1925 a 1935 [66], que foram divulgadas ao público, deixam evidente a existência de ‘um amor profundo, intenso e avassalador entre esses dois seres humanos’, durante o longo período em que Charlotte von Kirschbaum viveu na mesma casa que Barth e sua mulher Nelly Hoffmann [67]. Nessas cartas, Barth descreve um conflito permanente entre seu casamento e suas afeições por von Kirschbaum: ´Sendo como eu sou, eu nunca poderia, e ainda não posso, negar, seja a realidade do meu casamento, seja a realidade do meu amor. É verdade que eu sou casado, e, portanto, marido, e que também sou pai e sou avô. Mas também é não menos verdade que eu amo. E eu reconheço que é verdade que esses dois fatos não combinam. É por isso que nós, depois de alguma hesitação no início, decidimos que não deveríamos tentar resolver o problema com uma separação, seja de um lado, seja do outro´ [68]. Quando Charlotte von Kirschbaum morreu em 1975 [ela foi a segunda a morrer, Barth o primeiro, em 1968, e Hoffmann-Barth a última, em 1976], a mulher de Barth não teve dúvida em enterrar von Kirschbaum no jazigo da família, ao lado de Barth. Nelly Hoffmann-Barth morreu no ano seguinte, e foi enterrada no mesmo local.” https://en.wikipedia.org/wiki/Karl_Barth. NOTAS: [65] Wyatt Houtz, “A Bright and Bleak Constellation: Karl Barth, Nelly Barth and Charlotte von Kirschbaum”, PostBarthian, 9 October 2017. [66] ] Wyatt Houtz, “A Bright and Bleak Constellation: Karl Barth, Nelly Barth and Charlotte von Kirschbaum”, PostBarthian, 9 October 2017. [67] Christiane Tietz, “Karl Barth and Charlotte von Kirschbaum”, Theology Today, 1 July 2017, Vol. 74 (2): pp.86–111. [68] Karl Barth, Vorwort, xxii n. 3, Letter of 1947 cited by Christiane Tietz, “Karl Barth and Charlotte von Kirschbaum”, Theology Today, 1 July 2017, Vol. 74(2), p.109. [A tradução do Inglês é minha.] É curioso registrar que em 1963, cinco anos antes da morte de Barth, quando os três ainda eram vivos, completaram-se cinquenta anos do casamento de Karl Barth e Nelly Hoffmann. Resta saber se houve alguma comemoração, se não de Bodas, pelo menos de algum Jubileu de Ouro. Christiane Tietz, que revelou os fatos, é uma renomada professora universitária e pesquisadora alemã, na área da Teologia Sistemática, nascida em 1967, e que trabalha, hoje, em na Suíça (Zurique). Ela publicou, em Alemão, em 2019, uma biografia de Barth, que, na tradução para o Inglês de 2021, tem o título de Karl Barth: A Life in Conflict (Oxford University Press, London, 1921, tradução para o Inglês de Victoria J. Barnett). O título original em Alemão é Karl Barth: Ein Leben im Widerspruch, e foi publicado pela editora C. H. Beck. Em Alemão o livro tem 528 páginas, na tradução, 468. O preço em Inglês é proporcionalmente mais barato, e parece ter relação com o número de páginas.

[2]       Quando Barth morreu, em 10.12.1968, eu estava estudando em Pittsburgh, no quinto trimestre de meu Mestrado, e, na ocasião, fazia um curso sobre o tema “O Batismo no Novo Testamento”, com Markus Barth (1915-1994). Como a morte de seu pai ocorreu às vésperas do recesso do Natal, o curso meticuloso de Markus Barth não foi prejudicado.

[3]       A Wikipedia em Inglês afirma, no verbete dedicado a Charlotte von Kirschbaum, que, embora ela não seja oficialmente reconhecida como coautora do Opus Magnum de Karl Barth, Kirchliche Dogmatik (KD), Barth explicitamente reconheceu e admitiu, no Prefácio do volume III/3 (o sétimo volume da obra, publicado em 1950, e dedicado ao tema “O Criador e sua Criação”), que ele nunca teria escrito a obra, pelo menos no ritmo em que ela veio a ser escrita, sem a colaboração de sua Assistente. Diz ele, nesse Prefácio: “Não gostaria de concluir este Prefácio sem expressamente chamar a atenção dos leitores desses sete volumes já publicados para aquilo que eles e eu devemos aos vinte anos de trabalho inconspícuo, ao meu lado, de Charlotte von Kirschbaum. [O primeiro volume da KD, volume I/1, dedicado ao tema “A Palavra de Deus”, foi publicado em 1932, sendo de presumir que sua elaboração tenha sido iniciada em 1929-1930.] Ela dedicou nada menos do que sua vida e o melhor de seus poderes intelectuais a essa obra – não menos do que eu próprio o fiz. A obra não teria progredido, como progrediu, dia a dia, e eu dificilmente ousaria enfrentar o futuro que eu teria pela frente, não fosse a contribuição dela. Eu sei o que realmente significa ter uma assistente.” [As ênfases em negrito foram acrescentadas por mim]. Vide o verbete “Charlotte von Kirschbaum”, na Wikipedia, em https://en.wikipedia.org/wiki/Carlotte_von_Kirschbaum. [A tradução do Inglês é minha.] Para citar a opinião de um terceiro, George Hunsinger, Hazel Thompson McCord Professor de Teologia Sistemática no Seminário Presbiteriano de Princeton, onde Barth passou uma temporada, e Diretor do Center for Karl Barth´s Study dao seminário, de 1997 a 2001, afirma: “Como estudante em posição única e privilegiada de Barth, von Kirschbaum foi também sua crítica, sua pesquisadora, sua conselheira, sua colaboradora, sua companheira, sua assistente, sua porta-voz, e sua confidente. Charlotte von Kirschbaum foi indispensável para Barth. Ele não teria sido quem foi, e não teria feito o que fez, sem ela.” [Ênfase em negrito acrescentada por mim.] George Hunsinger, resenha de S. Seliger, Charlotte von Kirschbaum and Karl Barth: A Study in Biography and the History of Theology, apud a Wikipedia em Inglês, em https://en.wikipedia.org/wiki/Karl_Barth. [A tradução do Inglês é minha.] É raro encontrar uma afirmação tão clara e contundente acerca da influência de alguém considerada menor sobre uma estrela de primeira grandeza. Citando três fontes, o artigo da Wikipedia em Inglês não hesita em descrever von Kirschbaum virtualmente em termos de igualdade, como colega acadêmica e não como assistente de Barth. Afirma o artigo: “Charlote von Kirschbaum foi colega acadêmica de Barth na área teológica durante mais de três décadas.” As fontes invocadas são as seguintes (declinadas, pela ordem, nas notas 61, 62 e 63 na consulta da data de hoje, 19.2.2024):  Suzanne Selinger (1998), Charlotte Von Kirschbaum and Karl Barth: A Study in Biography and the History of Theology; Stephen J. Plant, “When Karl met Lollo: the origins and consequences of Karl Barth’s relationship with Charlotte von Kirschbaum.” Scottish Journal of Theology, 72.2 (2019): 127-145; e Susanne Hennecke, “Biography and theology. On the connectedness of theological statements with life on the basis of the correspondence between Karl Barth and Charlotte von Kirschbaum (1925–1935).” International Journal of Philosophy and Theology, 77.4–5. [A tradução da curta frase é minha.]

[4]       Acrescento aqui uma observação sobre um assunto que me irrita. Na escrita do mundo acadêmico, quando não se menciona o nome completo, é praxe mencionar apenas o sobrenome. Karl Barth, quando seu nome não é escrito por extenso e inteiro, é Barth, nunca Karl. Charlotte von Kirschbaum também recebe, sem exceção, essa forma de tratamento: na ausência do nome completo é sempre von Kirschbaum, nunca Charlotte. No entanto, a mulher – digamos original – de Barth, que só era “dona de casa e mãe” (ou, como se diz em Inglês, “a homemaker and mother”, na ausência do nome completo (Nelly Hoffmann, ou, às vezes, Nelly Hoffmann-Barth, hifenado), é chamada simplesmente de Nelly, nunca de Hoffmann ou Hoffmann-Barth, que é seu sobrenome, o primeiro de solteira, o segundo de casada. Procurei evitar essa deselegância (no mínimo: de fato é uma discriminação exibida, sem a menor consciência, pelos hábitos do mundo acadêmico).

[5]       Compare-se o verbete “Karl Barth” na Wikipedia em Inglês, em https://en.wikipedia.org/wiki/Karl_Barth. As notas 43 e 44 [na data de hoje, em 19.2.202], que fazem referência às obras de Wyatt Houtz (“The Life of Karl Barth: Early Life from Basel to Geneva 1886-1913 – Part 1)”, in no blog PostBarthian, e Timothy Gorringe, Karl Barth: Against Hegemony (Oxford University Press, p.316), indicam que teria sido o Papa Pio XII que fez a afirmação. A nota 45 [na mesma data], porém, observa que a biografia de Barth no Center for Barth Studies, conforme se pode verificar em https://barth.ptsem.edu, atribui ao Papa Paulo VI a afirmação (e não ao Papa Pio XII).

[6]       Pelo menos é isso que eu depreendo do capítulo de Barth sobre Schleiermacher no Capítulo 11 de seu notável Die protestantische Theologie im 19. Jahrhundert: Ihre Vorgeschichte und ihre Geschichte (Evangelischer Verlag, Zurique, 1946, 3. Auflage, 1960 (que é a edição que eu tenho). Há tradução para o Inglês de onze capítulos desse livro, feita por Brian Cozens, e publicada pela SCM Press, de Londres, em 1959, com o título de From Rousseau to Ritschl. Felizmente, o capítulo sobre Schleiermacher está incluído na tradução.

[7]       Vide no blog PostBarthian, de Wyatt Houtz, o artigo “Rösy Münger and Karl Barth: A Tragic Love Story”, em https://postbarthian.com/2018/04/16/rosy-munger-karl-barth-tragic-love-story/. Compare-se, também, o livro de Suzanne Selinger, Charlotte von Kirschbaum and Karl Barth: A Study in Biography and The History of Theology (The Pennsylvania State University Press, University Park: 1998), p. 5.

[8]       O costume, entre famílias de nível cultural e socioeconômico mais elevado, de o casal interromper as relações sexuais quando alcançava o número desejado de filhos era, até a invenção da pílula anticoncepcional e outros métodos contraceptivos razoavelmente eficazes, relativamente comum. Livros que cobrem a biografia e a história do Presidente americano Franklin Delano Roosevelt e sua mulher Anna Eleanor Roosevelt revelam que eles cortaram as relações sexuais, por decisão dela, após a concepção do sexto filho. Não é difícil encontrar referências ao fato na literatura – até porque os dois, a partir desse momento, embora continuassem casados, parecem ter se desobrigado do dever da fidelidade conjugal, produzindo alguns casos escandalosos, de parte a parte – ela até mesmo com pessoas do mesmo sexo.

[9]       Não há nenhum vídeo, nem mesmo uma foto, dos dois na cama, mas acreditar que eles se abstiveram de uma vida sexual em respeito a Frau Hoffmann-Barth, é algo que exige a credulidade da Velhinha de Taubaté, com a devida vênia de Luís Fernando Veríssimo.

[10]     Também aqui não há provas, e nem sequer testemunhos de menor credibilidade.



Categories: Liberalism

Leave a comment