O Parentesco e Seus Graus

Sábado, anteontem (22.4.2023), postei uma foto em que minha mulher [Paloma] e eu [Eduardo] ladeamos a criaturinha mais linda e charmosa que encontrei nos últimos tempos: uma parentezinha minha [Anne], que vai fazer cinco anos no final deste mês. Digo “uma parentezinha” porque tenho alguma dúvida sobre como designar, de forma mais precisa, o parentesco que nos liga. Mas de que somos parentes não tenho a menor dúvida… Como, de outra forma, poderia ela ser tão linda, inteligente e cativante? [Desculpem a imodéstia, se não pessoal, familiar…]

Mesmo com alguma dúvida, eu me arrisquei, no texto que descreveu a foto, a dizer, sem fazer nenhuma pesquisa, que a Anne é minha “prima em terceiro grau”.

Explico e justifico meu raciocínio.

  • A Anne (a criaturinha) é neta de minha prima Anelice (que é chamada Anelice porque seus pais eram Anello e Alice — conheço uma Analice, mas Anelice a minha prima é a única).
  • A Anelice é, no meu entender, minha legítima e inquestionável prima em primeiro grau, porque não há há prima com maior proximidade que possa atravessar nosso caminho. Ela é filha da minha querida e saudosa tia [Alice], irmã mais velha (na verdade, única irmã a sobreviver até a idade adulta), de minha igualmente querida e saudosa mãe [Edith], não havendo, portanto, nenhum grau de primitude [desculpem-me o neologismo] que se situe entre ela e mim (não “entre ela e eu”, como dizem algumas pessoas que se pretendem cultas; vide abaixo].
  • A Anelice, que felizmente está vivíssima, e continua sempre linda, tem, por sua vez, duas lindas filhas, Lídia e Luíza, também felizmente vivíssimas, que eu, por conseguinte, considero minhas primas em segundo grau.
  • Uma das filhas da Anelice, a mais nova [Luiza], é mãe da referida criaturinha mencionada no primeiro parágrafo, a vivicíssima Anne [estou abusando de neologismos: vivicíssima é o superlativo+ de vivíssima].
  • Logo, a Anne, sendo neta de minha prima em primeiro grau, e filha de minha prima em segundo grau, é minha prima em terceiro grau.

Ponto final. QED (Quod erat demonstrandum). Assim procede o meu raciocínio. Parece-me perfeito.

Quanto à minha dúvida número dois, a relacionada a saber qual é o parentesco (se é que há algum) entre a Paloma, minha mulher (também legítima e inquestionável) e a Anne, eu, no texto que descreveu a foto, para não dizer bobagem, não me arrisquei a dizer que a Anne é igualmente prima em terceiro grau da Paloma, mas estaria disposto a dizer isso, se desafiado. O argumento é simples: se a Anne é minha prima em terceiro grau, e eu sou casado com a Paloma, segue-se, logicamente, que ela também é prima em terceiro grau da Paloma. Reconheço que pode ser levantada a objeção de que entre a Anne e a Paloma há mais um intermediário, acrescentando um grau, que sou eu, que já sou (assim argumentei) primo da Anne em terceiro grau. Assim, seria possível argumentar que a Anne é da Paloma, quem sabe, prima em quarto grau, ou em terceiro grau e meio, ou, talvez, prima em terceiro grau por intermédio da lei (in law, como se diz nos Estados Unidos, quando o parentesco não é de sangue mas, sim, em decorrência de casamento).

Hoje cedo (24.4.2023) resolvi fazer uma rápida pesquisa e o principal artigo que encontrei contraria o meu entendimento (a referência é fornecida ao final). Mas contraria de uma forma que não me convenceu. Vejo-me, assim, como professor de Lógica que sou (sou porque já fui, como diria o Rubem Alves), na obrigação de refutar a tese alternativa. A explicação e argumentação do artigo seguem mais ou menos esta linha de raciocínio:

  • O que deve ser descrito em graus (melhor seria dizer degraus) de distância ou afastamento é o parentesco, em geral, não os tipos particulares de parentesco (como irmão ou primo), pois, entre outras razões, não existem graus, além do primeiro, para certos tipos de parentesco, como pai e mãe, nem filho e filha: não há pai em segundo grau, nem filha em segundo grau.
  • O parentesco pode ser considerado em linha vertical ou em linha horizontal, bem como em linha reta ou em linha transversal (na verdade, em linha quebrada em degraus, não literalmente transversal).
  • Os parentescos na linha vertical são, em direção ascendente (para cima, por assim dizer), como pai e mãe, avô e avó, bisavô e bisavó, trisavô e trisavó, tetravô e tetravó, etc., e, em direção descendente (para baixo, por assim dizer), como filho e filha, neto e neta, bisneto e bisneta, trineto e trineta, tetraneto e tetraneta, e assim por diante.
  • Os pais são parentes, em linha vertical reta e direção ascendente, em primeiro grau, os avós, em segundo grau, e assim por diante, e os filhos são parentes, em linha vertical reta em direção descendente, em primeiro grau, os netos, em segundo grau, e assim por diante.
  • Os parentescos em linha horizontal reta, também chamados de parentescos em colateral (no caso não se faz menção a se a linha horizontal tem direção, ou seja, se progride para a direita ou regride para a esquerda), são apenas os irmãos (irmãos e irmãs, naturalmente), só havendo as distinções “irmãos plenos” (de pai e mãe), “meios-irmãos” (só de pai ou só de mãe), além dos proverbiais “irmãos de criação”, “irmãos do coração”, etc., mas não vou discuti-los.
  • Em um parêntese, esclareço, porque me diz respeito, que também há “pai do coração” e “mãe do coração”. Essa categoria me é cara, porque sou “pai do coração” de duas lindas jovens que me são muito queridas. “Pai ou mãe do coração” é o marido da mãe, ou a mulher do pai, que não é o pai, ou a mãe, do filho / da filha no sentido biológico, mas apenas no sentido afetivo – SE, naturalmente, houver o necessário afeto, mas este frequentemente existe, da mesma forma que também pode inexistir afeto entre os que são pai/mãe e filho/filha no plano biológico. E pai ou mãe do coração é parente de primeiríssimo grau: não fica na frente do pai ou mãe no plano biológico, mas também não fica atrás. Fim do parêntese.
  • Os problemas surgem quando a linha é transversal (ou quebrada em degraus, isto é, não exatamente reta). Eu considero que irmãos plenos, de pai e mãe, ou mesmo os meios irmãos, são parentes em primeiro grau. Mas o principal artigo que consultei considera que, ainda que plenos, irmãos são parentes apenas em segundo grau, porque é preciso, em um primeiro passo, subir um degrau em linha reta, para chegar aos pais, que seriam os parentes em primeiro grau, e, em seguida, descer um degrau em linha transversal, para chegar aos irmãos, que seriam, por conseguinte, parentes apenasmente (como diria Odorico Paraguaçu) em segundo grau… Logo, irmãos, ainda que plenos, não seriam parentes em primeiro grau. Entendo a lógica, mas alguma coisa na minha mente questiona a linha de raciocínio utilizada ou, mais provavelmente, as premissas de que o autor, explícita ou implicitamente, se vale.

Como ficaria o meu parentesco com a Anne, nessa linha de raciocínio? No meu entender, como demonstrado, somos primos em terceiro grau. Mas esse não é o caso, segundo o autor consultado. Nosso parentesco, segundo ele, é via minha mãe, que é minha parente em primeiro grau; minha tia Alice, irmã de minha mãe e mãe da Anelice, seria, segundo o autor do artigo, minha parente em terceiro grau, não em segundo, porque ela só é parente de minha mãe por causa do meu avô/minha avó, que, eles sim, são os meus parentes em segundo grau nessa cadeia, minha tia Alice sendo parente somente em terceiro grau; a Anelice, mãe da Luiza, filha da tia Alice, seria, portanto, minha parente em quarto grau [não devendo se dizer que seja minha prima em primeiro grau, embora, em termos de primitude, ela seja a primeira parente que tenho, nessa linhagem]; a Luiza, filha da Anelice e mãe da Anne, seria minha parente em quinto grau; e a Anne, finalmente, seria minha parente apenas em sexto grau – o que é, convenhamos, muito distante para o meu gosto e para a afeição que eu dedico à dita criaturinha… Nesse raciocínio, nem ouso especular qual seria o grau de parentesco da Paloma com a Anne, if any – algo que considero quase um crime, dado o grau de afeição que se gerou entre as duas. [A Anne fez um desenho, envolvendo a ela própria (a si própria, como diriam os Portugueses), a mim e à Paloma, e a Paloma era a maior figura de todas, e eu a menorzinha delas, menor até mesmo do que a figura que representa a ela própria, a autora do desenho, que é um tico de gente. Mas deixemos isso para lá… Esse problema eu pretendo resolver em outra ocasião.]

Como já mencionei, acho esquisita a linha de raciocínio do autor do artigo que consultei, mesmo que entenda a sua lógica. A lógica dele implica o seguinte, que o autor do artigo explicita em um PS: “Reparem que não existe parente em linha colateral [horizontal] em primeiro grau. Meu irmão, que é meu parente mais próximo em linha colateral [horizontal], é meu parente em segundo grau.” Acho isso esquisito, como já frisei. Pensar que meus queridos irmãos, Flávio, Priscila e Eliane, são meus parentes apenas em segundo grau, é algo que me repugna, mesmo que seja algo a que a lógica do autor dê sustentação. Mas não é só esse o argumento. Acho ilógico e absurdo que o parentesco em linha colateral (horizontal) comece com o segundo grau, não existindo parentes em primeiro grau nesse plano.

Para concluir, vou citar um trecho do artigo, porque é elucidativo e corrobora o meu argumento. Diz o autor (cujo nome não é declinado, para que eu possa lhe dar o devido crédito):

“Saiu na Folha de hoje (12/06/07): ‘Frei Chico disse ontem que há um Roberto na família. É um primo em segundo ou terceiro grau, casado com uma prima nossa, em segundo grau.’ […] O que é um primo em terceiro grau? E em segundo grau? Já encontrei em jornais de grande circulação no Rio e no Nordeste termos como ‘primo cruzadinho’, ‘primo de alma’ e ‘tio de ajuda’! Do ponto de vista jurídico, esses termos não significam nada, e na prática não passam informação relevante ao leitor, já que possuem significados diferentes para cada pessoa (isso quando possuem algum significado). Mas a lei não pode ficar cega às relações de parentesco. Por isso ela define graus de parentesco de uma forma bem clara (e fácil de usar, diga-se). Para a lei, parentesco conta-se em linha reta (quando uma pessoa é descendente ou ascendente de outra, como pais, avós e bisnetos) ou linha colateral / transversal (quando duas pessoas têm um ascendente comum, como os irmãos, tios, sobrinhos e primos). Assim, meu pai é meu parente em primeiro grau em linha reta (minha mãe também!). Meu avô é meu parente em segundo grau em linha reta. Meu bisneto é meu parente em terceiro grau em linha reta, e assim por diante. Já meu irmão é meu parente em segundo grau em linha colateral. Por quê? Porque devo contar o número de graus até nosso ascendente em comum (nosso pai/mãe) e depois ‘descer’ até meu irmão. Até meu pai eu tenho um grau de distância. E do meu pai ao meu irmão há um outro grau. Logo, meu irmão é meu parente colateral em segundo grau. Já meu tio (que é irmão de meu pai/minha mãe) é meu parente colateral em terceiro grau. Por quê? Porque nosso ascendente comum é meu avô/minha avó. Tenho dois graus de separação até meu avô/minha avó, e meu avô/minha avó tem um grau de separação até meu tio. Logo, três graus de separação entre meu tio e mim. Já meu primo (filho de meu tio) é meu parente colateral em quarto grau: dois graus de separação entre mim e meu avô/minha avó – nosso ascendente em comum – e mais dois graus de separação entre meu avô/minha avó e meu primo. Logo, parente em linha colateral em quarto grau. Por isso, para a lei não existe primo em primeiro, em segundo, ou em terceiro graus (sic). Para a lei, primo é sempre em quarto grau. Já meu sobrinho é meu parente em terceiro grau (um grau de separação até nosso pai/nossa mãe, e dois graus de separação entre meu pai/minha mãe e meu sobrinho). Para evitar confusão, depois do quarto grau, é melhor usar o grau de parentesco empregando a definição jurídica ou a relação da pessoa com algum dos seus parentes de quarto grau. Por exemplo, em vez de falar que alguém é meu ‘primo em terceiro grau’ ou ‘primo cruzadinho’ (ninguém vai saber o que é isso), é melhor dizer que ele é neto de meu primo, ou que ele é meu parente em sexto grau.

[Ênfases acrescentadas por mim, Eduardo Chaves. (Da Folha de S. Paulo, seção “para entender Direito” [sic no que diz respeito ao uso das maiúsculas iniciais], no endereço [URL] http://direito.folha.uol.com.br/blog/parentesco-primo-de-segundo-grau-e-de-terceiro-grau).

[NOTA: Fiz algumas correções no Português, que não estava acentuado, e que continha alguns erros gramaticais, do tipo de “entre x e eu” ou “entre eu e x“, em vez do correto “entre x e mim” ou “entre mim e x“. Também mudei o uso, que faz o autor, da expressão “primo de n grau” para “primo em n grau”, mais de acordo com o vernáculo, em minha modestíssima opinião. O uso do autor acabou aparecendo até mesmo no URL do artigo: “parentesco-primo-de-segundo-grau-e-de-terceiro-grau”].

Para terminar, reitero o que foi citado no parágrafo em que transcrevi parte do texto do autor não nomeado… No entender dele, “para a lei não existe primo em primeiro, segundo ou terceiro graus: para a lei primo é sempre em quarto grau”. Acho isso esquisitíssimo — na verdade é uma aberração. Como pode haver “primo em quarto grau” se não há “primo em primeiro, segundo ou terceiro graus” – ou em quinto, sexto, ou sétimo graus?

É verdade que o autor qualifica sua afirmação com dois “para a lei”. Mas teria ficado melhor se ele houvesse dito que “do ponto de vista legal o parentesco entre primos é um parentesco em quarto grau”. Expressa assim, sua posição faria algum sentido, mas dizer que “para a lei não existe primo em primeiro, segundo ou terceiro graus” é, a meu ver, um absurdo. A lei pode disciplinar algumas coisas para determinados fins, mas não pode determinar que a Anelice não é minha prima em primeiro grau, a Luiza, prima em segundo grau, e a Anne, prima em terceiro grau. Não estamos discutindo herança aqui. Não estamos preocupados com a questão do parentesco no âmbito da lei brasileira atual. Estamos discutindo graus de proximidade e distância entre parentes, do ponto de vista sociológico, psicológico, afetivo, lógico e, por conseguinte, até mesmo filosófico.

Fica registrado o meu protesto.

Em Salto (Saltíssimo!), 24 de abril de 2023.

PS> Como evidência de que o afeto entre pais e filhos não biológicos pode se tornar altamente significativo, cito dois famosos exemplos históricos. Primeiro, o caso de John Stuart Mill, no século 19. Na primeira fase de sua vida, Mill foi solteirão inveterado, casando-se, já maduro, com Harriet Taylor, que tinha uma filha de seu primeiro casamento. Depois de cerca de dez anos de casamento, Harriet morreu e a filha dela, de seu primeiro casamento, passou o resto da vida de Mill convivendo com ele e sendo, além de sua filha afetiva, sua assistente, revisora, coautora, representante comercial, testamenteira legal e cuidadora de seu legado intelectual. O afeto entre os dois era tão real que gerou até comentários maldosos das inevitáveis más línguas. Segundo, o conhecido C S Lewis, no século 20, que também foi solteirão inveterado na primeira fase de sua vida, casou-se, já maduro, com Joy Davidman, americana, ex-atéia, ex-comunista, divorciada, etc., que já tinha dois filhos do primeiro casamento. Um desses filhos, o mais novo, Douglas Greshem, ficou tão ligado a Lewis, depois da morte da mãe, que também se tornou, além de seu filho afetivo, seu assistente e colaborador, cuidando de seu legado, depois da morte do irmão de Lewis, vindo a escrever uma linda biografia de seu pai afetivo e uma bela e inspiradora história do romance entre sua mãe e Lewis e da curta vida que eles puderam viver juntos.



Categories: Liberalism

Leave a Reply

Fill in your details below or click an icon to log in:

WordPress.com Logo

You are commenting using your WordPress.com account. Log Out /  Change )

Facebook photo

You are commenting using your Facebook account. Log Out /  Change )

Connecting to %s

%d bloggers like this: