Li, ontem (16.7.2021), no Facebook, um lindo texto do Rev. Robinson Grangeiro, de João Pessoa, PB. Ele é meu amigo no Facebook, mas não é alguém que eu acompanhasse de perto. Mas gostei do seu texto, especialmente da primeira frase, que lhe dá o tom, que afirma: “O caminho reto da gratidão deve ser percorrido com mais rapidez do que a senda tortuosa da reclamação”. Gostei tanto que até transcrevi a frase em meu perfil no Facebook, dando ao autor o devido crédito. Várias pessoas tem curtido esse dito de sabedoria.
O que me fez gostar dessa frase de forma especial? As razões são várias. Vou destacar apenas duas.
Primeiro, procuro ser (embora nem sempre o consiga) uma pessoa agradecida, até mesmo pelo que, à primeira vista, parece ser o lado ruim da vida. O verbo usado pelo Rev. Robinson Grangeiro é “deve ser“, que representa mais um imperativo do que um indicativo. Mesmo que nem sempre o sejamos, devemos procurar sempre ser agradecidos pelas coisas que nos acontecem.
Isso quer dizer que, ao sermos confrontados com algum acontecimento que afeta a nossa vida, nós, antes de nos enveredar pela “senda tortuosa da reclamação”, antes de encarar o acontecido como algo ruim, como azar (ou, para os mais religiosos, como provação, como teste, ou como punição), devemos procurar encontrar no acontecimento um lado positivo, de modo a poder encará-lo como algo bom, como sorte (ou, para os mais religiosos, como bênção ou como oportunidade de aprendizagem, de desenvolvimento do nosso caráter, de melhoria da qualidade de nossa vida).
Se tivesse tido o insight do Rev. Robinson Grangeiro, teria até escrito a frase na voz ativa e acrescentado um plural na parte final: “Devemos percorrer o caminho reto da gratidão com mais rapidez do que as sendas tortuosas da reclamação”…
A recomendação me conduz a Stephen R. Covey [24.10.1932 –16.7.2012 – ontem fez nove anos que ele morreu em uma queda de bicicleta — querem, aparentemente, algo mais besta?], autor de The 7 Habits of Very Effective People, e, através dele, a Viktor E. Frankl [26.3.1905 – 2.9.1997], autor de Man’s Search for Meaning. Entre uma causa, um acontecimento que nos atinge ou afeta, e o seu efeito, aquilo que esse acontecimento pode produzir em nós, há sempre um intervalo, que é o momento do livre arbítrio, em que podemos decidir como vamos reagir ao que nos aconteceu. O que algo que acontece produz em nós, o seu efeito, não é algo determinado a priori: somos nós que escolhemos qual será esse efeito. Podemos considerar o acontecido como coisa ruim, azar, punição, desastre, o fim do mundo, mas podemos também, alternativamente, procurar encontrar no acontecido alguma coisa boa, uma oportunidade de desenvolvimento que permita que fortaleçamos nosso caráter, que exercitemos virtudes que não temos tido muita ocasião de praticar, como a coragem, a fortitude, a serenidade, a paciência, que vejamos como podemos usar o acontecido como fonte de aprendizagem, como momento e ocasião que permite, possibilita, e enseja que tentemos ser pessoas melhores do que éramos antes. Há sempre um momento de liberdade em que podemos escolher a nossa reação e decidir o que vamos fazer diante do acontecido — isto é, determinar qual será o efeito que o acontecido produzirá em nós. O que parecia determinismo inevitável passa a ser autodeterminação e liberdade. A lição de Viktor E. Frankl é que o sentido das coisas, inclusive dos acontecimentos que nos atingem, como vir a estar preso em um campo de concentração nazista (algo que aconteceu com ele), não vem embutido e estampado nelas (as coisas) ou neles (os acontecimentos): somos nós que buscamos o seu sentido, algo que, no fundo, significa que somos nós que lhes atribuímos sentido. Se lhes atribuímos um sentido negativo, vamos nos ver como vítimas, vamos nos enveredar “pelas sendas da reclamação”, como diz o Rev. Robinson Grangeiro (e dessas sendas há um número incontável); mas se lhes atribuímos um sentido positivo, vamos nos ver como alguém que controla a própria vida, que imprime sentido ao que lhe acontece. É essa a atitude daquelas pessoas que Stephen R. Covey chama de “very effective people“.
Quando digo que “procuro ser uma pessoa agradecida”, sempre há um provocador que, conhecedor do meu passado, e desejoso de que eu admita que seja a Deus que o meu agradecimento é dirigido, me pergunta: “Agradecido a quem?”
Minha resposta tem sido que é possível ser agradecido de uma forma difusa, não específica, no sentido de ter uma atitude de gratidão perante a vida, sem necessariamente especificar a quem (ou a que entidade) se é agradecido… Algo do tipo “Grácias a la Vida”, como na música de Violeta Parra [1], interpretada tão bem por Joan Baez [2], por Mercedes Sosa [3] , e pelas duas, juntas… [4]. Mas essa questão, e a minha resposta, me trazem à minha outra razão para gostar da frase do Rev. Robinson Grangeiro.
Segundo, a frase em questão me leva a uma maneira, admitidamente liberal, de encarar a religião e a teologia.
A religião é, para mim, uma maneira de entender o mundo e uma forma de encarar a vida. A teologia é a tentativa de explicitar, sistematizar e defender esse Weltanschauung, em especial diante de visões alternativas.
A religião cristã, que se originou dentro do Judaísmo, entende o mundo como algo criado por alguém que, naturalmente, tinha conhecimento e poder para criá-lo, e, naturalmente, escolheu, dentro de sua liberdade e soberania, fazê-lo. Ao entender o mundo dessa forma, a religião judaico-cristã se opõe ao entendimento, que prevalece em visões de mundo materialistas, de que o mundo, em geral, o cosmos, e a Terra, em particular, surgiram de eventos aleatórios (explosões, colisões, bangs, etc.), e que a vida, em geral, e a vida humana, em particular, tenham evoluído da matéria também de forma aleatória, envolvendo, ao longo de um tempo longérrimo, de uma sucessão de acasos, sem qualquer plano ou projeto (design) inteligente.
Essa forma de entender o mundo se contrapõe não só ao materialismo, mas também ao chamado deísmo, porque ela não só postula e defende a ideia de um mundo criado mediante um design inteligente, mas também a ideia de um mundo sustentado e governado pela ação providencial de quem (ou da entidade que) o criou.
Essa forma de entender o mundo viu, inicialmente, o Criador como um ser que, embora tenha criado tudo, era “partisan“, cuidava apenas de um povo que havia escolhido para si… Era assim no Judaísmo. O Cristianismo, em grande medida influenciado pelo chamado Helenismo, universalizou essa visão do Criador, que passou a ser Criador e Cuidador de todos os povos.
Depende dessa forma de entender o mundo a forma de o ser humano encarar a sua vida: com um dom, uma dádiva, um presente, uma graça, pela qual ele deve ser grato e zelar. O Criador e Cuidador não é um ser material: é puro espírito. Suas criaturas humanas são seres materiais, mas não puramente materiais: seu corpo tem uma centelha do espírito do Criador, que representa a sua mente: intelecto, emoção, criatividade, vontade (poder de escolha e decisão), e capacidade de ação: escolher entre alternativas, fazer planos e projetos, e agir para transformá-los em realidade.
Nesse processo, nós, que não somos nem oniscientes nem, muito menos, onipotentes, não entendemos muitas coisas, nem conseguimos realizar muitas das coisas que gostaríamos de realizar. Diante de acontecimentos que podem parecer à primeira vista ruins, e de fracassos diante de empreendimentos que gostaríamos muito que fossem bem sucedidos, a visão cristã, agora sustentada numa terceira característica do Criador e Cuidador, além de sua sabedoria e do seu poder infinitos, entra em jogo: postula também a sua benevolência, igualmente infinita. Sustentados por essa visão, os cristãos são levados a dar graças até pelo que parece ruim e indesejado — buscando um sentido nesses acontecimentos que seja compatível com sua visão de mundo.
É basicamente assim que o cristão entende o mundo e encara a vida.
Nem todos os cristãos concordam nos detalhes. Há cristão que acha que a criação do mundo se deu em exatamente seis dias, literalmente da maneira como a descreve o livro de Gênesis, e que, com base nas genealogias e outros eventos, mencionados nos outros livros bíblicos, acha possível determinar o ano, o mês, o dia, e a hora em que o Criador deu o “pontapé inicial”, por assim dizer, no processo da criação: 23 de Outubro de 4004 AC, que teria sido um domingo, por volta das 9h da manhã… Foi a essa conclusão que chegou o Arcebispo James Usher da Igreja da Irlanda, no século 17 (em escritos que produziu de 1648 a 1654). Cristãos conservadores enfatizam o detalhe da “queda”, ou do “pecado original”, que tornaria necessário uma redenção para a qual Jesus teria sido a solução encontrada. E há centenas ou mesmo milhares de divergências, e tentativas de coibir essas divergências, rotuladas de heresias, através da adoção de uma ortodoxia (maneira correta) de entender a tradição…
Mas o básico, na minha forma de entender, está descrito atrás. Não é necessário acreditar que tudo aquilo que foi dito anteriormente seja literalmente verdadeiro. Tudo aquilo é uma forma de entender o mundo e de encarar a nossa vida nele que faz sentido, que dá significado à nossa vida.
Jó, cuja história (real, isto é, verdadeira, ou inventada, isto é, parabólica) é contada na Bíblia, era um homem rico e poderoso, que perdeu toda a riqueza e todo o poder que tinha. Mas não escolheu percorrer as “sendas tortuosas da reclamação”, da revolta, do desespero. Sua mulher, não: ela lhe recomendou que amaldiçoasse a Deus e se matasse. A resposta dele foi serena: “Nasci nu, sem nada, e sem nada vou morrer. O que eu tive, foi Deus quem o deu, e Deus houve por bem tirar de mim o que me havia dado. Bendito seja o nome do Senhor” [5]. A sugestão da mulher foi amaldiçoar; a resposta de Jó foi bendizer. Ao final da história Jó recupera tudo o que havia perdido, e obtém mais ainda. OK, é uma história. Mas é uma história que ilustra uma forma de entender o mundo e encarar a vida que tem feito sentido para milhões e milhões de pessoas, e que lhes dá serenidade e esperança para enfrentar os momentos difíceis que todo mundo, mais cedo ou mais tarde, enfrenta.
Por que não ser um estóico, como Sêneca, Cícero, Marco Aurélio, ou um cético mitigado, como Hume (que foi influenciado pelos estóicos)? Porque eles, apesar de terem encontrado a serenidade para enfrentar os momentos difíceis da vida, inclusive a morte, careciam da esperança. Para eles, a morte era o fim. Para os cristãos ela é vista como um recomeço — o começo de algo infinitamente melhor. Mesmo que a esperança venha a se mostrar, no devido momento, infundada, ela, aqui, mesmo sem as certezas dos Ushers da vida, nos conforta. Se for infundada, nós não estaremos lá para ficar decepcionados. Os comunicados de morte de entes queridos feitos por cristãos no Facebook demonstram a tristeza da perda, mas a serenidade, e mesmo a alegria, decorrente da esperança.
Essa esperança, como dizia Paulo Freire, é do verbo esperançar, não do verbo esperar, nem, muito menos, do verbo expectativar. Esse esperançar pode parecer um agarrar-se num fio muito tênue. Mas não é nada: é alguma coisa que conforta.
Em Salto, 17 de Julho de 2021
NOTAS
[1] Gracias a la vida, que me ha dado tanto,
Me dio dos luceros, que, cuando los abro,
Perfecto distingo lo negro del blanco,
Y, en el alto cielo, su fondo estrellado,
Y, en las multitudes, el hombre que yo amo!
Gracias a la vida que me ha dado tanto,
Me ha dado el oído que, en todo su ancho,
Cada noche y día grillos y canarios,
Martillos, turbinas, ladridos, chubascos,
Y la voz tan tierna de mi bien amado!
Gracias a la vida, que me ha dado tanto,
Me ha dado el sonido del abecedario!
Con él, las palabras que pienso y declaro
Madre, amigo, hermano y luz alumbrando,
La ruta del alma del que estoy amando.
Gracias a la vida, que me ha dado tanto,
Me ha dado la marcha de mis pies cansados…
Con ellos anduve ciudades y charcos
Playas y desiertos, montañas y llanos,
Y la casa tuya, tu calle y tu patio!
Gracias a la vida, que me ha dado tanto,
Me dio el corazón, que agita su marco,
Cuando miro el fruto, del cerebro humano,
Cuando miro el bueno tan lejos del malo,
Cuando miro el fondo de tus ojos claros.
Gracias a la vida, que me ha dado tanto,
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto,
Así yo distingo dicha de quebranto,
Los dos materiales que forman mi canto,
Y el canto de ustedes que es el mismo canto.
Y el canto de todos que es mi propio canto,
Gracias a la vida, gracias a la vida,
Gracias a la vida, gracias a la vida!
[2] https://www.youtube.com/watch?v=DFZxBvUMlG0
[3] https://www.youtube.com/watch?v=cIrGQD84F1g.
[4] https://www.youtube.com/watch?v=rMuTXcf3-6A.
[5] Jó 1:21; cp. 2:9,10.
Categories: Liberalism
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