[Publicado originalmente, em 3.10.2022, em meu blog Theological Space. ]
Ontem à noite (2.10.2022), noite da apuração da eleição presidencial em seu primeiro turno, eu ouvi um sermão, proferido pelo Rev. Sérgio Oliveira, de Pilar do Sul, localidade não muito distante aqui de Salto. Ele trabalha na Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPIB), atualmente no Presbitério de Sorocaba, residindo em Pilar do Sul. Ele pregou na IPI de Salto porque o pastor havia sofrido uma cirurgia, dois dias antes, e estava acamado. O texto usado para o sermão foi pequeno: os quatro primeiros versículos do capítulo 2 do livro de Atos dos Apóstolos, que abre a narrativa sobre o Dia de Pentecostes. Dizem eles, na [NTLH]:
1. Quando chegou o dia de Pentecostes, todos os seguidores de Jesus estavam reunidos no mesmo lugar.
2. De repente, veio do céu um barulho que parecia o de um vento soprando muito forte e esse barulho encheu toda a casa onde estavam sentados.
3. Então todos viram umas coisas parecidas com chamas, que se espalharam como línguas de fogo; e cada pessoa foi tocada por uma dessas línguas.
4. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, de acordo com o poder que o Espírito dava a cada pessoa.
A ênfase do pastor foi no sentido de que discípulos de Jesus de Nazaré esperavam, enquanto Jesus ainda estava vivo, que ele viesse a ser um Messias político, que libertasse o povo judeu da dominação exercida sobre ele (povo judeu) pelos romanos. Mas Jesus foi preso e crucificado. Com sua ressurreição, reanimaram-se suas esperanças de que Jesus fosse permanecer entre eles e liderar uma revolta contra os romanos que, vitoriosa, lhes restaurasse a independência e a liberdade. Jesus, porém, depois da ressurreição, foi levado para o céu e eles ficaram novamente perdidos. A Festa de Pentecostes foi a ocasião em que se revelou a eles todos que a natureza da missão de Jesus de Nazaré era diferente do que eles esperavam – diferente em três aspectos.
O primeiro aspecto é ressaltado exatamente no quarto versículo. “Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar, . . . de acordo com o poder que o Espírito dava a cada pessoa”. O poder do Espírito foi dado a todos, e todos começaram a falar “com o poder que o Espírito dava a cada pessoa”. O primeiro aspecto tem que ver com as distinções entre as pessoas, com a eliminação de preconceitos e a implantação da igualdade entre elas. Fica evidente aqui que, no movimento criado dentro do Judaísmo por Jesus de Nazaré, todos tinham o poder do Espírito e todos podiam igualmente falar, não havendo distinção entre as pessoas, entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, entre velhos e jovens, entre casados e solteiros ou viúvos, entre judeus e gentios, entre donos de escravos e escravos, entre gente culta e estudada e gente simples e sem cultura. Aceitos esses princípios defendidos por Jesus, enquanto ainda em vida, haveria uma reviravolta drástica dentro do Judaísmo do primeiro século da nossa era. Consta que o judeu homem típico orava todo dia dando graças a Deus por ser judeu e não gentio, homem e não mulher. Essas distinções todas foram abolidas pela mensagem de Jesus de Nazaré, conforme ficou revelado durante a Festa de Pentecostes.
O segundo aspecto é ressaltado nos versículos 1 e 2. Ele tem que ver que ver com a distinção entre o Sagrado e o Secular. No Judaísmo, o templo era um lugar sagrado, e dentro do templo havia o lugar mais sagrado de todos, o Santo dos Santos, em que apenas o sumo sacerdote tinha o direito de penetrar. Diz o Novo Testamento que, quando Jesus morreu, o véu do templo que separava o Santo dos Santos do resto to templo se rasgou de alto a baixo. A mensagem que Jesus de Nazaré pregava eliminou essa distinção entre os espaços sagrados e os espaços seculares. “Todos os seguidores de Jesus estavam reunidos em um mesmo lugar” – e o lugar não era uma sinagoga ou uma igreja (que nem existia ainda — todos ali eram judeus palestinos ou judeus helenistas (que moravam fora da Palestina mas vinham pelo menos uma vez ao ano até Jerusalém celebrar a festa. Com a morte de Jesus de Nazaré rompeu-se de vez com a sacralidade de determinados espaços: todo espaço é local adequado para o culto a Deus e a comunhão dos fiéis uns aos outros. Desnecessária se tornava a pessoa de um sumo sacerdote, e mesmo de um sacerdote, bem como a pessoa de um fariseu, um escriba, um levita, ou até mesmo um rabino. Cada um dos fiéis ali presente recebeu o poder do Espírito Santo e passou a ter direito de falar, louvar, de pedir alguma coisa a Deus (sem precisar fazer sacrifícios de animais ou de qualquer outra natureza) ou de simplesmente agradecê-lo por um pedido atendido ou uma bênção recebida. Todos, como definidos no primeiro aspecto, tinham direito de adorar e louvar a Deus em qualquer lugar, sem necessidade de um templo, de um altar, de um lugar para sacrifícios. É isso que Martinho Lutero, mais de quinze séculos depois, chamou de O Sacerdócio de Todos os Crentes. (Abro um parêntese para registrar que eu discordo de Lutero que todos os fiéis devem ser sacerdotes. Eu prefiro considerar mais aceitável a tese de “O Laicato de Todos os Fiéis. Eu prefiro que todos sejam iguais no laicato do que no sacerdócio, e que, se há de eliminar uma categoria, para que fiquem todos os iguais, que se elimine o sacerdócio e todos estaremos em igualdade… Fecho o parêntese.)
O terceiro aspecto é ressaltado no versículo 1. O Espírito veio a todos no dia de Pentecostes, que acontecia cinquenta dias depois da Páscoa. A Páscoa acontecia numa sexta-feira à noite e, no dia seguinte, dia que veio a ser considerado sagrado na semana, o Sabbath, onde as pessoas não trabalhavam, nem sequer se divertiam, mas só adoravam a Deus. O Dia de Pentecostes, quando o Espírito foi dado a todos, fora de um lugar sagrado, acontecia num Domingo, o dia depois do Sábado sagrado (50 dias depois da Páscoa), e, portanto, em um dia útil, um dia de trabalho, não de adoração e culto, firmando o princípio que todo dia é dia de adoração, de louvor, de pregação, de ação de graças.
Assim, se o primeiro aspecto aboliu distinções entre as pessoas, e o segundo aboliu distinções entre espaços sagrados e espaços seculares, o terceiro aboliu distinções entre tempos sagrados e tempos seculares, dias de trabalho e dias de descanso, adoração e louvor a Deus.
Esse novo espírito introduzido pela mensagem de Jesus de Nazaré começou a se perder rapidamente, à medida que, depois da tomada de Jerusalém, no ano 66, a destruição do templo, em 70, o movimento de Jesus de Nazaré se separou do Judaísmo (que se esparramou na chamada Diáspora, no mundo greco-romano fora da Palestina), começou a se ver como uma nova religião (voltada mais para os gentios do que para os judeus), que se reuniria em comunidades chamadas igrejas (não mais sinagogas), em locais chamados templos, em que as comunidades começaram a designar diáconos, anciãos, presbíteros, e bispos para governá-las, o domingo veio a substituir o sábado como o dia sagrado, as mulheres começaram a ser proibidas de exercer ofícios nas igrejas, de ensinar, e até mesmo de falar, começaram a ser vistas como inferiores e subordinadas aos seus maridos, por eles eram homens, criados diretamente por Deus, a partir do pó da terra, enquanto elas teriam sido criadas a partir do corpo deles, para indicar que eram meras ajudantes, em autonomia, sem autoridade… A partir do século quarto, então, a coisa ficou pior. A nova religião, agora firmemente considerada uma nova religião, o Cristianismo, se tornou religião lícita, em 313 AD, e, em 381 AD, se tornou religião oficial do Império Romano, em 381 AD. Quase todas as distinções que o Judaísmo adotava foram sendo reintroduzidas gradativamente. Até as Escrituras Judaicas foram incorporadas, como a primeira parte das Escrituras Cristãs…
Destaco.
Em primeiro lugar, as distinções entre as pessoas foram sendo reintroduzidas: diáconos, presbíteros, bispos, arcebispos, patriarcas, metropolitanos, cardeais, papas… A maioria dessas funções eram privativas de homens, sendo vedadas às mulheres; algumas dessas funções foram reservadas a homens celibatários, que foram proibidos de se casar; mulheres virgens começaram a ter um status especial no Cristianismo. Na Bíblia se diz apenas que o bispo seja marido de uma só mulher: mais tarde se decidiu que ele não podia ser marido de nenhuma mulher.
Em segundo lugar, o Cristianismo pobre, que precisava se reunir na casa das pessoas, ou nas catacumbas, ganhou ricas igrejas dos Imperadores Romanos, basílicas, catedrais, e os lugares sagrados começaram a ser de novo demarcados dos lugares seculares, chamados de profanos. Nesses lugares só homens oficialmente escolhidos e designados podiam oficiar.
E, por fim, em terceiro lugar, reintroduziram-se os dias santos: primeiro, os domingos de todas as semanas, depois os dias de festas tradicionais do Cristianismo, como o Natal e a própria Páscoa, e assim por diante, até que cada dia do calendário tinha seu santo – e as comemorações do santo do dia, como no caso das Festas Juninas…
Assim os elementos essenciais da mensagem que o Espírito Santo trouxe no dia de Pentecostes acabaram por se perder – e o Cristianismo se tornou uma religião como o Judaísmo e as demais religiões — e chegou até a perseguir outras religiões, em especial o Judaísmo, alegando que os judeus haviam matado o fundador do Cristianismo…
É preciso que tentemos recuperar a igualdade de todos os seres humanos, de todos os espaços, e de todos os tempos e momentos. Essa foi a mensagem do sermão.
Também não devemos nos esquecer – e esta (como várias outras) é uma contribuição minha, não do pastor – de que foi a partir do mesmo século quarto que se começou a definir um cânon – um conjunto especial – de livros a serem lidos pelos cristãos, deixando de fora do cânon um número enorme de livros que até ali eram lidos e discutidos com bastante proveito.
E também foi a partir do mesmo século quarto que começam a reunir, convocados pelos Imperadores Romanos, Concílios Ecumênicos, que definiram cânones, credos e confissões contendo aquilo que os cristãos podiam e deviam acreditar… Foi aí que começou a ideia de Recta Doctrina, Ortodoxia, e a consequente ideia, que tanto mal e sofrimento já causou dentro do Cristianismo, de Heresia – com a devida punição dos hereges.
O sermão me fez lembrar de um artigo que publiquei aqui recentemente sobre a importância da desigrejação (ou do desigrejamento) do Cristianismo. Eu deveria ter enfatizado naquele artigo, também, aquilo que mencionei nos dois últimos parágrafos e o que discuti no restante do artigo: a igualdade entre as pessoas e o abraçamento de qualquer tipo de pessoa no Cristianismo, todos os já mencionados e mais os que ainda são discriminados hoje, os gays, os bissexuais, os multissexuais, os transsexuais, os que se preferem manter solteiros ou mesmo virgens, sem a constituição de uma família convencional, sem esquecer os supostamente hereges; também a dessacralização dos espaços, com o abraçamento dos espaços seculares, em especial os locais de serviço e de lazer e a rua; e também a dessacralização dos tempos, dos momentos de adoração, louvor, oração e ação de graças, com o abraçamento dos momentos até aqui considerados profanos.
O Cristianismo é algo que se vive e que se pratica na companhia de qualquer pessoa (anyone), em qualquer lugar (anywhere), em qualquer momento (anytime), quando estamos fazendo qualquer tipo de coisa (anything), não só lendo a Bíblia, orando, pregando, cantando louvores, tomando uma ceia especial com pão e vinho. O balcão de um bar ou de uma padaria, em que se come um salgado, é, com a atitude apropriada, igual a uma cerimônia eucarística.
É possível explorar qual é essa “atitude apropriada” que caracterizaria a “postura cristã” – mas não é difícil encontrá-la nas páginas dos Evangelhos do Novo Testamento. Jesus não foi um subversivo político. Disse “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Mas Jesus foi um grande subersivo quando se tratava de religião. Comia com publicanos e pecadores, autorizou seus discípulos a colherem espigas no Sábado, embora a Lei Judaica os proibisse de fazer isso, não condenou uma mulher apanhada em adultério que os Fariseus queriam apedrejar…
Por fim: Jesus nasceu e morreu judeu, e não criou nenhuma nova religião. O que hoje chamamos de Cristianismo foi criado principalmente por Paulo. Jesus de Nazaré criou apenas, isto sim, um pequeno movimento subversivo, dentro do Judaísmo, que foi um espinho na carne dos Sacerdotes, Fariseus, Escribas, Levitas, que lideravam o Judaísmo, porque desconstruía a religião deles — deles e do próprio Jesus de Nazaré, que, com sua mensagem modesta, de conteúdo eminentemente ético, subverteu sua própria religião, a religião judaica.
Em Salto, 3 de Outubro de 2022 (com revisões acrescentadas em 2 de Abril de 2025.
Eduardo CHAVES
NOTA: Embora as ideias aqui expressas tenham sido inspiradas pelo sermão do Rev. Sérgio Oliveira, elas são minhas e não devem, sem o eventual endosso e a devida aceitação dele, ser atribuídas a ele. Pessoas com ideias criativas e inovadoras sofrem dentro da igreja. Não desejo, de modo algum, que minhas ideias, aqui expressas, sejam consideradas como se dele fossem, embora haja paralelos e, de vez em quando, pontos de contato, que não podem ficar em linhas paralelas. Eu, que me considero cristão, protestante e presbiteriano, estou no momento “inalcançável” por Tribunais de Inquisição Presbiteriana, que ainda persistem, porque estou desigrejado, não sou membro de nenhuma igreja. Essa é uma das vantagens de ser desigrejado: minhas “heresias” não podem ser punidas pela autonomeada “ortodoxia”.
Categories: Liberalism
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