A revista da Editora Ultimato, Edição 329, de Março-Abril de 2011, quatorze anos atrás, publicou, em sua seção “Colunas / Entrevistas”, uma entrevista com o Prof. Dr. Rev. Waldyr Carvalho Luz, então com 94 anos, pessoa conhecida no meio presbiteriano e mesmo evangélico brasileiro. O tópico da entrevista era “A Ordenação Feminina”.
O Prof. Waldyr exerceu vários cargos importantes ao longo de sua longa vida, talvez os dois mais importantes tendo sido o de Professor do Seminário Presbiteriano do Sul (SPS), em Campinas, pertencente à Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), e o de Professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Tive o privilégio de ser aluno do Prof. Waldyr no primeiro desses dois lugares e de ser seu colega no segundo deles. Ao lado de Rubem Azevedo Alves e Eliezer Rizzo de Oliveira, outros presbiterianos de boa cepa, éramos, na UNICAMP, professores mais antigos do que o Prof. Waldyr, e tínhamos nível acadêmico mais alto. Mas isso não significa grande coisa para quem conheceu o Prof. Waldyr pessoalmente.
A posição definitiva do Rev. Waldyr em relação à questão da Ordenação Feminina na Igreja é relativamente simples. Passo a resumi-la (usando partes de um artigo que escrevi sobre o assunto em 2022).
A questão da Ordenação de Mulheres para o exercício dos ministérios eclesiásticos é uma questão de usos e costumes, e, como tal, não deve ser decidida com base em textos bíblicos – ou seja, com base no que a Bíblia diz ou deixa de dizer sobre o assunto, tanto no Velho como no Novo Testamento. A questão em pauta, portanto, não faz parte da revelação que se acredita estar contida na Bíblia. Em relação a ela, cada Igreja e cada denominação faz o que achar melhor. Brigar sobre isso é perda de tempo.
O argumento básico é esse. E eu concordo 100% com o meu antigo mestre em relação a essa questão.
Para refutar o Prof. Waldyr em relação à questão da Ordenação Feminina, é preciso refutar essa sua tese. E, para isso, não adianta ficar citando versículo bíblico.
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O Prof. Waldyr reconhece e concede que a Bíblia começou a ser composta, por diversos autores, alguns dos quais nós nem somos capazes de identificar, com base em uma Tradição Oral, que foi gradualmente se consolidando em documentos escritos, há, possivelmente, uns três mil anos atrás, mais ou menos na época em que o povo de Israel se constituiu em um Estado, com a monarquia iniciada por Saul, sendo o ponto final desse processo mais ou menos o período que vai do final do século 1 até a primeira metade do século 2 de nossa era, quando o Novo Testamento estava basicamente concluída.
Como tal, a Bíblia que usamos hoje é um documento que reflete a sociedade, a cultura, os usos e costumes de um povo, o israelita, mais tarde chamado de judeu, que era, inegavelmente, patriarcal e machista (como, de resto, todos os demais povos daquela época e daquela região do mundo). Naquele mundo era crença comum que o homem era um ser superior à mulher. A tese da supremacia masculina em relação à mulher era, naquela época, e por muito tempo depois, indiscutível.
À vista disso, argumenta o Prof. Waldyr, não adianta ficar citando livro, capítulo e versículo da Bíblia, que incontestavelmente afirma que a mulher é apenas uma auxiliadora ou ajudante do homem, e que este, portanto, é o cabeça do casal ou o chefe da sociedade conjugal. À vista disso, não adianta citar versículos bíblicos que afirmam que certas funções, no lar, na sociedade, em geral, e nas instituições que a compõem, funções como educar, dirigir e governar, são privativas de homens e não podem ser exercidas por mulheres. Esse fato não deve nem sequer entrar na discussão. Ele é pacífico e concedido por todo mundo que se dispôs a estudar o assunto.
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Em decorrência dessa firme convicção da superioridade e da supremacia masculina, a Bíblia não proíbe e não censura certas “vantagens” ou “direitos” masculinos na época inquestionáveis, mas hoje inadmissíveis, como, por exemplo: (a) as propriedades e os demais bens de um casal devem ser controlados e administrados pelos homens, não pela mulheres (que, não raro, eram consideradas propriedades do marido, podendo até ser vendidas, trocadas, doada, ou cedidas, para evitar problemas, como Sara foi duas vezes); (b) os homens podiam legalmente ter várias mulheres, entre esposas (a poligamia era padrão), concubinas, e servas que lhes prestavam serviços sexuais (como parte de seus deveres domésticos, não como prostitutas), em especial quando era necessário produzir descendentes que não eram gerados pelas mulheres legais (que frequentemente pareciam ter dificuldades para engravidar em tempos bíblicos), não tendo as mulheres direitos iguais ou equivalentes; (c) os homens podiam se divorciar de suas mulheres, se não estivessem satisfeitos com elas, não tendo as mulheres o mesmo direitos, em iguais circunstâncias; etc.
Hoje em dia, nenhuma sociedade civilizada, pelo menos no Ocidente, adota esses usos e costumes, considerados primitivos. Na verdade, alguns desses “direitos masculinos” dos tempos bíblicos são hoje crimes, na maioria dos países. Se você é homem, tente viver, hoje, como o Rei Salomão vivia então, para ver onde você vai parar…
Para o Prof. Waldyr, as passagens bíblicas que determinam que a mulher casada deve obedecer ao marido e ser submissa a ele em tudo; ou que dizem que a mulher deve ficar calada na igreja, consequentemente não podendo explicar a Bíblia, ensinar, pregar, etc.; e, que, por conseguinte, proíbem as mulheres de exercer funções decisórias, executivas, pedagógicas ou proclamatórias dentro da Igreja, são exatamente da mesma natureza que aquelas listadas no penúltimo parágrafo (o parágrafo que começa com “Em decorrência”).
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O tempo passou, os usos e costumes, bem como os valores e direitos mudaram, as mulheres conseguiram igualdade de direitos com os homens, e, no século 20, “se liberaram”, e vieram a poder trabalhar fora de casa, exercendo quase qualquer cargo ou função disponível para os homens, como, por exemplo, os de Presidente República, Primeiro Ministro, General (ou Marechal) nas Forças Armadas, Presidente e Principal Executivo das maiores empresas do mundo, Professor Titular das principais Universidades do mundo, Cientista Chefe dos maiores Laboratórios de Pesquisa do mundo, etc.
Esses exemplos fui eu que reuni, mas segundo o Prof. Waldyr, em todas as áreas mencionadas alguns parágrafos atrás (no parágrafo iniciado com Para o Prof. Waldyr), a visão de mundo que um dia as considerava quase naturais não faz parte da revelação que se acredita estar contida na Bíblia. A visão de mundo que as justificou um dia faz parte, isto sim, do contexto cultural do mundo em que em que a Bíblia foi produzida, contexto cultural que, hoje, quase ninguém, no Ocidente, aceita mais – exceto os homens que dirigem e comandam a IPB. Não todos, mas a maioria deles.
É essa a posição do Prof. Waldyr. Punto y basta.
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No Brasil, a IPB é, dentre as igrejas protestantes tradicionais, a principal e mais importante igreja que, de braços dados com a Igreja Católica Romana, não admite que mulheres façam parte dos órgãos diretivos, decisórios, doutrinários e pedagógicos da igreja, nem podem exercer as funções de Pastor (Presbítero Docente), Presbítero (Presbítero Regente) e Diácono, e nem mesmo a função de Professor de Classe de Escola Dominical de Homens Adultos, ou que contenham, adultos do sexo masculino. Tirando as funções manuais (cuidar de jantares, limpezas, etc.), a única coisa mais significativa que as mulheres podem fazer na Igreja é ser professora de crianças ou de outras mulheres. O “órgão de classe” das mulheres nas Igrejas Presbiterianas se denomina “Sociedade Auxiliadora Feminina”. Além de cuidar de limpeza e comida – nessa área elas têm hegemonia – tudo o que elas podem fazer é auxiliar os homens. Essa seria a única função que Deus teria lhe reservado na lenda da criação: a de ser adjutora, ajudante, do homem.
Assim, quando foi publicada a Entrevista do Prof. Waldyr, ela caiu como uma bomba em cima de seus colegas presbiterianos, que, aparentemente, se sentiram não só traídos, mas também acuados e ameaçados, vendo sua “reserva de mercado” ficar em risco, pois o Prof. Waldyr era um professor de seminário e pastor conservador presbiteriano, membro da IPB, de ortodoxia e moral acima de qualquer suspeita, e ele estava a defender uma tese que, segundo a IPB, só era defendida por teólogos e pastores liberais – e, naturalmente, segundo alegavam, em alguns casos (cada vez mais frequentes) por “feministas” e seus aliados do sexo masculino, desejosos de aparecer. Feminista, para os teólogos e pastores da Igreja Presbiteriana, é qualquer mulher que gostaria de estar no lugar deles. Prof. Waldyr com toda certeza não se encaixava, nem de longe, em nenhuma dessas duas categorias: nem teólogo liberal nem amigo de feministas. (Uso o verbo no passado porque o Prof. Waldyr, que tinha 94 anos quando deu a entrevista, em 2011, faleceu em 2013, dois anos depois de dar a entrevista, faz quase doze anos).
A prova de que a Entrevista do Prof. Waldyr foi considerada uma ameaça pela IPB está no fato de que a Igreja decidiu, através do Comitê Executivo do Supremo Concílio (SE/SC) responder à entrevista – e não demorou em fazê-lo, divulgando a resposta pelo seu principal órgão de comunicação.
O Rev. Ludgero Bonilha Morais, no exercício de suas funções como Secretário Executivo do Supremo Concílio da IPB, achou-se no dever de cumprir e fazer cumprir as decisões da Igreja, que se posicionava de forma contrária à do Prof. Waldyr. E lançou, em Julho do ano seguinte ao da Entrevista do Prof. Waldyr, em 2012, uma edição especial do seu jornal oficial, Brasil Presbiteriano, que, em papel de imprimir do tipo A4, com espaço único, chega a nada menos do que dezoito páginas. (No jornal ocupou as quatro primeiras folhas por inteiro, em letra miúda).
Deram-se ao trabalho de tentar refutar em dezoito páginas a entrevista do Rev. Waldyr. Uma página era suficiente. Só bastava provar que todas aqueles usos e costumes retrógrados que o mundo ocidental hoje abandonou eram parte da revelação divina… E, em seguida, processar o Rev. Waldyr por heresia. Não tiveram, de um lado, capacidade; do outro, coragem.
Em Salto, 12 de Abril de 2025
Eduardo Chaves
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Eis as fotos das cinco páginas do artigo/entrevista do Prof. Dr. Rev. Waldyr Carvalho Luz, n revista da Editora Ultimato, Edição 329, de Março-Abril de 2011.





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