Rui, Janus e “O Papa e o Concílio”

Quando cheguei ao Seminário Presbiteriano de Campinas, em Fevereiro de 1964, um dos primeiros livros que comprei na Livraria do Seminário (que funcionava na Biblioteca, e, como esta, era chefiada pelo Rev. Waldyr Carvalho Luz) foi O Papa e o Concílio, 3ª edição, em dois volumes e capa dura, publicado pela Editora Elos, do Rio de Janeiro. O livro, infelizmente, não traz a data de publicação. A razão para ser esta uma de minhas primeiras compras, na área de livros, ao ir para o Seminário, foi que meu pai mencionava esse livro com frequência em seus sermões, associando-o ao nome de Rui Barbosa. Cheguei até a pensar, por um tempo, que Rui fosse o seu autor. Ao comprar o livro, e folheá-lo, percebi que o autor era alguém que usava o pseudônimo Janus, e que Rui era o tradutor do livro para o Português. (O livro, por alguma razão, fala em “versão” e não “tradução” por Rui). A razão da constante associação do livro à pessoa do Rui, aqui no Brasil, se devia não só ao fato de que ele traduziu a obra, mas também ao fato de que ele escreveu uma longa e erudita Introdução à obra, que é um verdadeiro curso de História da Igreja. Na edição que comprei, a Introdução de Rui ocupa todo o primeiro volume (pp. 17-332), ou seja, nada menos do que 315 páginas.

Apesar de ter o livro por 54 anos, nunca me interessei por lê-lo – até ontem. Diferentemente de livros publicados atualmente, que contêm uma breve história do livro, seu Sitz im Leben, uma breve biografia do autor, etc., a edição que eu tenho tem um “Prefácio do Tradutor” (Rui), de doze páginas (pp. 5-16), escrito em 20 de Abril de 1877, no Rio de Janeiro. Vivíamos ainda no Império, quando o Prefácio foi escrito. Mas o Prefácio não dá as informações que eu queria. Assim, procurei na Wikipedia e achei um artigo de Djacir Menezes, intitulado “Rui, Janus e O Papa e o Concílio”, disponibilizado no site da Biblioteca Digital da Fundação Getúlio Vargas (http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rcp/article/viewFile/60084/58412).

Para os que são tão ignorantes quanto eu era acerca do autor desse artigo, eis o que diz a Wikipedia: “Djacir Lima Menezes (Maranguape, Ceará, 16 de novembro de 1907 – Rio de janeiro, 1996) foi um intelectual, sociólogo, jurista, economista e filósofo brasileiro [que trabalhou na Universidade Federal do Rio de Janeiro, e na Faculdade de Economia, Administração, Atuária e Contabilidade da Universidade Federal do Ceará” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Djacir_Menezes). Ele tirou a principal dúvida que eu tinha: quem realmente foi Janus, o autor de O Papa e o Concílio? “Janus”, dado como o autor, era pseudôniomo de um famoso teólogo e historiador católico do século 19, que se chamava, na realidade, Johann Joseph Ignaz Von Döllinger (1799-1890) – um autor, segundo descobri, bastante famoso em sua época, por ter liderado a batalha contra o dogma da Infalibidade Papal no Concílio Vaticano I, dogma que foi aprovado sob pressão do Papa Pio IX (1846-1878). O artigo sobre ele na Wikipedia descreve, resumidamente, sua longa carreira como importante teólogo “Liberal” / “Modernista” da Igreja Católica Romana, ao longo de boa parte do século 19 (https://en.wikipedia.org/wiki/Ignaz_von_Döllinger). Fiquei admirado que nunca tivesse lido ou ouvido nada sobre dele antes. Quanto eu penso no Modernismo Católico do século 19, geralmente penso em Alfred Loisy e George Tyrrell, que sobreviveram até o século 20. Como Loisy, Döllinger foi excomungado pela Igreja Católica. A excomunhão de Döllinger teve lugar em 1871, pelo Arcebispo de Munique, sendo Papa Pio IX. Loisy foi excomungado em 1908, pelo Papa Pio X (1903-1914), numa forma extremamente radical, chamada vitandus, que, além de excomungar, aplica uma tentativa de isolamento ao excomungado, ordenando aos fieis que não se associem a ele (exceto no caso de parentes próximos). Tyrrell, que era jesuíta, não chegou a ser excomungado, tendo sido expulso da Sociedade de Jesus em 1906.

Mas voltemos a Döllinger, o Janus, autor de O Papa do Concílio.

Fui procurar na Amazon e achei dois livros interessantes. Um é uma biografia de Döllinger, escrita recentemente: The Pope and the Professor: Pius IX, Ignaz von Döllinger, and the Quandary of the Modern Age, de Thomas Albert Howard. O outro é uma biografia de Pio IX, publicada neste ano de 2018: The Pope Who Would Be King: The Exile of Pius IX and the Emergence of Modern Europe, de David I. Kertzer. Não comecei a ler nenhum dos dois livros ainda…

O que me parece curioso em tudo isso é o seguinte: quando a gente tem uma biblioteca boa em casa, às vezes você começa a passear por ela, olhar os livros, tirar um da estante e folhea-lo, etc. Se acha algo interessante, deixa-o fora da estante, colocando seja lá onde for que você ponha os livros em que está interessado no momento. Eu sempre tenho pelo menos uns dez livros mais ou menos empilhados / esparramados ao meu redor. No momento, tenho todos os principais livros de Martin Seligman – cerca de dez ou onze. Ontem à noite (na verdade, já hoje de madrugada) peguei os dois volumes de O Papa e o Concílio e li uns pedaços, em especial da Introdução de Rui Barbosa – e isso me levou a comprar os dois livros que acabei de mencionar no parágrafo anterior (ambos em formato e-book/Kindle). E esse conjunto de “browsings” me levou a querer escrever este artigo, que vou publicar em dois dos meus blogs: História da Igreja e Chaves Space. No fundo, as questões de O Papa e o Concílio são questões políticas para qualquer país católico – mas são questões da História da Igreja, área que sempre foi uma de minhas favoritas para investigação e leitura. Registro que fiquei admirado com o conhecimento que Rui Barbosa tinha dessa área. Dá-me vontade de preparar uma série de palestras sobre o assunto: O Brasil e a Igreja Católica no Final do Império: Reações aos Novos Dogmas Proclamados ao Redor do Concílio Vaticano de 1870”. O principal dogma foi o da Infalibilidade Papal. Mas o da Concepção Imaculada de Maria também foi aprovado / declarado nessa época, também por Pio IX.

By the way, há quatro dogmas “marianos” na Igreja Católica:

  1. O de que Maria é Mãe de Deus (Theotokos) e não só de Jesus (Dogma da Maternidade de Deus);
  2. O de que Maria não só era virgem antes do nascimento de Jesus como continuou perpetuamente uma virgem (Dogma da Virgindade Perpétua de Maria);
  3. O de que Maria também foi concebida sem pecado (Dogma da Concepção Imaculada de Maria);
  4. O de que Maria também foi assunta aos céus (Dogma da Assunção de Maria).

Em São Paulo, 21 de Agosto de 2018.



Categories: Biografia, Biography, Catholic Church, Igreja Católica

2 replies

  1. Excelente texto. A pouco tempo soube destes livros de Janus e tambem me causou impacto saber que Rui Barbosa havia prefaciado, ou traduzido os titulos. Nunca imaginei ser Rui Barbosa um católico tão esclarecido já que a Igreja Católica faz tudo para que os fieis fiquem na ignorância. Tambem não conhecia esses dogmas marianos e fiquei chocada com eles. Grata pelo esclarecimento.

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    • Grato pelo comentário, Ana Lúcia. É sempre proveitoso quando os leitores reagem os textos publicados, em especial quando o comentário vem acompanhado de um elogio, que sempre motiva a gente a continuar… 🙂

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