Coloco, no título, o termo “Clássico” antes do termo “Moderno”, porque o Clássico, histórica e logicamente, vem antes do Moderno. Mas na retórica (a arte de persuadir pelo falar bem) e na matética (a arte de aprender, especialmente sem ser ensinado), geralmente é bom começar com o depois para só então buscar o antes, procurando-o, se for preciso. Assim começo.
1. O Jeito Moderno de Ser e de Ver o Mundo
A Modernidade tem sua tríade de valores: o Útil, o Eficaz, e o Eficiente. Útil é o que nos ajuda a descobrir o que queremos e, assim, a definir nossos objetivos (sejam eles quais forem). Eficaz é conjunto dos meios (também, sejam eles quais forem) que nos permitem alcançar os objetivos que definimos. E Eficiente é o que nos ajuda a economizar recursos no caminho para os nossos fins, isto é, o que nos permite atingir nossos objetivos com a menor quantidade possível de recursos — em regra para que sobrem recursos que nos permitam definir e perseguir outros objetivos. (Alguém já disse, com muita verdade, e com uma economia impressionante de palavras, não me lembro quem foi que disse, mas não esqueci o que disse, que, em relação a meios e recursos: eficaz é fazer a coisa certa; eficiente é fazer a coisa certo; e efetivo é fazer certo a coisa certa.)
Ontem, lendo a resenha de um livro, tive esse lampejo sobre a essência da Modernidade. O livro se chama Ideas Have Consequences, e seu autor é Richard M. Weaver (1910-1963 — mais um indivíduo importante que morreu em 1963, e antes da hora: tinha 53 anos apenas; outros que me ocorrem são C. S. Lewis (1898-1963), Aldous Huxley (1894-1963) e John F. Kennedy (1917-1963), que morreram, todos os três, no mesmo dia, do mesmo mês, do mesmo ano: 22.11.1963). Weaver tem várias coisas em comum com Lewis, a principal delas sendo uma razoável antipatia pela Modernidade, e um enorme desprezo pelo que ela representa, e o que ela está fazendo do nosso mundo e da nossa vida.
Uma coisa que eu já sabia antes de ler a resenha do livro de Weaver é que a Modernidade só defende o uso da Racionalidade no plano dos meios e dos recursos, considerando impossível empregá-la na escolha de fins e na definição de objetivos. Como David Hume (1711-1776) já havia assinalado, em pleno século 18, em que o culto da Racionalidade florescia, a razão é, e é bom que seja, a escrava de nossas paixões e de nossos sentimentos. São nossas paixões e nossos sentimentos que determinam os nossos objetivos e os nossos fins. A nossa razão é apenas técnica, instrumental, operando no plano dos meios e dos recursos — nunca no plano dos objetivos e dos fins. E ela, a razão, é, por conseguinte, incapaz de adjudicar entre os diversos objetivos e fins possíveis. A escolha entre eles nada tem que ver com a razão: essa escolha é ditada pelas nossas paixões e pelos nossos sentimentos — que são determinados por fatores extra-racionais, subjetivos, sem qualquer objetividade. A ciência, que é um quefazer moderno, também é uma atividade racional, quando bem executada, mas ela também é impotente no plano dos objetivos e dos fins: ela só opera no plano dos meios e dos recursos, onde, convenhamos, tem demonstrado relativo sucesso na resolução de quebra-cabeças e na solução de problemas.
Dentro da forma moderna de ver o mundo, não existe verdade objetiva, nem bem moral absoluto, nem beleza que esteja fora dos olhos de quem contempla.
2. O Jeito Clássico de Ser e de Ver o Mundo
O Classicismo, ou a forma clássica de ser e de ver o mundo, que foi predominante, no Mundo Antigo e até mesmo no Mundo Medieval, isto é, que prevaleceu até o início do Período Moderno, era o oposto dessa forma moderna ser e de ver o mundo. Ele se construiu em cima de sua própria tríade de valores: a Verdade, o Bem e a Beleza. Eram chamados de “Os Transcendentais”.
Para entender a Modernidade — o “depois’ — é necessário contrastá-la com o Classicismo — o “antes”.
Repito o que já disse: embora haja consideráveis diferenças entre a Filosofia Antiga e a Filosofia Medieval, e mesmo entre as diversas correntes que constituíram uma e outra, é possível detectar uma certa tendência básica que eu estou designando de “Classicismo” — mas que poderia ser denominada, com eu o farei, de “Filosofia Clássica” (isto é, a Filosofia anterior à Filosofia Moderna), e que engloba elementos básicos e essenciais de uma e de outra, isto é, tanto da Filosofia Antiga (dos Gregos e Romanos) como da Filosofia Medieval (tipicamente Cristã — agostiniana, em um primeiro momento, tomista, depois). (A Filosofia Nominalista de William de Ockham, no final da Idade Média, eu já considero parte da transição para a Modernidade.)
Para a Filosofia Clássica, em primeiro lugar, a existência daquilo que na Filosofia Moderna se convencionou chamar de “mundo exterior”, a saber, a realidade que fica fora da nossa mente, claramente não é um problema. Para ela, é pacífico que existe um mundo fora de nossa mente, e que esse mundo é objeto real de nosso conhecimento. Quando falamos em conhecimento empírico é de conhecimento desse mundo exterior que estamos falando — não do conteúdo do que habita em nossa própria mente, como ideias, impressões, sensações, e quetais. Ninguém achava que algo tão óbvio como essa tese precisasse ser demonstrado ou provado, porque esse fato — e para os clássicos não há dúvida de que era um fato — não havia se tornado um problema (como se tornou a partir de René Descartes, 1596-1650, o pai da Filosofia Moderna).
Para a Filosofia Clássica, em segundo lugar, essa realidade externa à nossa mente contém basicamente dois tipos de entidades: objetos (coisas) e fatos (o estado em que as coisas estão). Assim, objetos são coisas e fatos são estados de coisas. Tanto objetos como fatos existem, na realidade: eles são descobertos, não constituídos ou construídos pela nossa mente. O pecado capital da Filosofia Moderna está contido na afirmação de George Berkeley (1685-1753), um bispo, que afirmou que esse est percipii: ser é ser percebido, ou seja, um objeto ou um fato só é, ou só existe, se é percebido pela nossa mente através de nossos órgãos sensoriais. Uma explosão no meio de uma floresta virgem e totalmente inabitada, que não seja vista ou ouvida por ninguém, simplesmente não é ou não aconteceu, por que para ser ela teria tido que ser objeto da percepção da alguém. (Para remediar esse absurdo o bispo nos garantiu que Deus observa tudo o tempo todo, e essa seria a única justificativa para a gente acreditar que o mundo continuou a existir enquanto tiramos uma soneca.)
Além disso, e em terceiro lugar, para a Filosofia Clássica o mundo exterior é objetivamente ordenado. A realidade não é composta meramente de objetos e fatos isolados uns dos outros. Objetos e fatos se vinculam uns aos outros, através de várias relações, dentre as quais a principal é a relação de causalidade: um objeto ou um fato causa um outro objeto ou um outro fato, que passa a ser o seu efeito. As relações dos objetos e dos fatos entre si também não são constituídas e construídas pela nossa mente: elas fazem parte da realidade. (Não assim para David Hume, já mencionado. Para ele nós só observamos um fato ‘a’ e logo ali mesmo, em seguida, em “contiguidade espaço-temporal”, observamos o outro fato, ‘b’, mas não somos capazes de observar ” ‘a’-causando-‘b’ “. E, ao presumir causalidade, nós cometemos a falácia do “post hoc ergo propter hoc“: foi depois disso, logo, foi por causa disso. Tomei a vacina e não peguei o Covid; logo foi a vacina que me fez imune.
A relação de causalidade, para a Filosofia Clássica, existe objetivamente na realidade: um evento realmente causa outro, e isto é um fato que pode ser constatado. A causalidade raramente é auto-evidente, em geral precisa ser investigada, mas isso não quer dizer que seja impossível constatá-la. A realidade não é composta apenas por “fatos atômicos” — fato ‘a’ e fato ‘b’ em “contiguidade espaço-temporal”, por exemplo — mas também por fatos complexos — ” fato-‘a’-causando-fato-‘b’ “, por exemplo. A relação de causalidade, portanto, não é redutível à relação de contiguidade espaço-temporal que a nossa mente, por hábito e costume, infere entre uma coisa e outra, entre um fato e outro. A realidade comporta também as relações entre os objetos e os fatos, entre si, e, por conseguinte, a relação — ou o nexo — causal.
Isto significa que o mundo possui ordem, e que essa ordem existe independentemente do ser humano e mesmo que o ser humano não a detecte. Não é o ser humano que impõe ordem à realidade, como presumia Emanuel Kant (1724-1804), que disse que David Hume o despertou de sua “sonolência dogmática”. A realidade já é ordenada, cumprindo ao ser humano apenas descobrir a ordem que já existe. É esse fato que possibilita o conhecimento — e, em última instância, a ciência.
A realidade, para a Filosofia Clássica, portanto, contém objetos e fatos, tanto atômicos como complexos. Esses fatos, como visto, são estados de coisas que existem, na realidade: são descobertos, não constituídos. Conquanto possa haver estados de coisas imaginários, fictícios, inventados, fake, eles não devem ser descritos como “fatos imaginários”. Fatos são coisas reais. Um fato inventado ou fake não é um tipo especial de fato: ele simplesmente não é um fato.
Para a Filosofia Clássica, em quarto lugar, a verdade é uma relação de correspondência ou adequação entre o juízo (ou a afirmação) de uma pessoa e o objeto ou fato sobre o qual esse juízo foi emitido. Se o juízo emitido por um sujeito corresponde ao objeto ou fato sobre o qual foi emitido, ele é verdadeiro; se não existe essa correspondência entre o juízo emitido e a realidade, o juízo é falso. A realidade não é nem verdadeira nem falsa: ela simplesmente é. São nossos juízos acerca da realidade que podem ser verdadeiros ou falsos — e que têm de ser ou um ou outro (tertium non datur) e não podem ser ambas as coisas (verdadeiros e falsos), ao mesmo tempo. Parece elementar, como diria Sherlock Holmes ao Dr. Watson: a afirmação que “o mordomo assassinou o seu senhor” só é verdadeira se, e somente se, o mordomo houver assassinado o seu senhor; se o mordomo não fez isso, a afirmação é simplesmente falsa. Eu disse que parecia elementar. Mas de vez em quando até o óbvio precisa ser declinado.
Para a Filosofia Clássica, em quinto lugar, temos evidência da verdade ou da falsidade de nossos juízos através principalmente dos sentidos, pela percepção sensorial. E aquilo que nos é dado na percepção é nada mais, nada menos do que a realidade, propriamente dita, os objetos e os fatos que compõem o mundo externo a nós (e as relações entre eles). Embora seja notório que às vezes nos enganamos em nossa percepção, a essa constatação não se dá importância muito grande na Filosofia Clássica. Erros de percepção, em regra, são facilmente corrigidos.
Para a Filosofia Clássica, em sexto lugar, numa tese agora mais controvertida, é possível, partindo dos sentidos, descobrir fatos sobre a realidade que transcende os sentidos: a chamada realidade transempírica ou suprassensorial (ou, ainda, aquilo que comumente se chama de “sobrenatural”). Em geral, acreditava-se, no Mundo Clássico, que era possível descobrir fatos acerca de Deus (por exemplo) pela chamada “via natural”, ou seja, apenas refletindo sobre os fatos descobertos pelos sentidos. Thomas de Aquino (1225-1274), monge dominicano e professor na Universidade de Paris, acreditava ter produzido cinco provas da existência de Deus sem se basear em nenhuma revelação: só observando a realidade empírica e refletindo sobre ela.
Para a Filosofia Clássica, em sétimo lugar, o conhecimento é o conjunto de juízos verdadeiros e evidenciados nos objetos e nos fatos que compõem a realidade (sensorial ou suprassensorial). Para que haja conhecimento é necessário que haja um sujeito, que conhece, e algum objeto ou fato, que é conhecido.
A Filosofia Clássica não tem dúvida alguma de que tenhamos conhecimento da realidade: ela é plenamente confiante no conhecimento humano. Na verdade a confiança é tanta que ela pode falar, sem embaraço, em milagres. No período que antecede à Modernidade não há maiores problemas no conceito de milagre. Um milagre é um evento que, se ocorrer, suspende ou até mesmo viola a ordem objetiva existente na realidade. Para a Filosofia Clássica, milagres, se de fato existem, acontecem no nível da realidade, e não apenas no nível de nosso conhecimento da realidade. Sua definição de milagre envolve referência ao plano ontológico e metafísico, não apenas epistemológico. Milagre não é apenas um nome para nossa ignorância da ordem (como diria Baruch Spinoza, 1632-1677, mais tarde): o milagre é uma suspensão ou violação da ordem objetiva existente na realidade, realizada por quem pode e deseja suspendê-la ou violá-la. Por isso é que se acreditava que milagres eram de suma importância: se de fato existem, eles provam alguma coisa. Falar em milagres, porém, não quer, dizer, necessariamente, acreditar neles, ter certeza de que eles aconteceram no passado e ainda acontecem. Se realmente aconteceram ou ainda acontecem, ou não, é uma outra questão. Nem todos os filósofos pré-modernos acreditavam que milagres aconteceram ou aconteciam. Mas não tinham dificuldade alguma com o conceito.
Para a Filosofia Clássica, em oitavo lugar, a educação é o processo através do qual a criança vem — sendo levada pela mão de outrem ou de moto próprio — a conhecer e a descobrir o que existe e o que acontece na realidade, e por que os objetos e os fatos são como são e não de uma outra forma.
Para a Filosofia Clássica, em nono lugar, e por fim, na hierarquia das atividades intelectuais e das profissões, o cientista está longe de ficar no degrau mais alto, o píncaro, o pináculo: ele se dedica a algo que é importante mas que fica longe de ser o mais importante: descrever e explicar a realidade empírica, sensorial, observável pelos sentidos. Toda vez que ele tenta ir além desse limite ele se demonstra um tolo, às vezes um tolo extremamente arrogante, porque a realidade é muito mais ampla do que aquilo que pode ser observado e explicado pela ciência. A ciência, dentro dos seus limites, é útil. Além deles, é vã.
A implicância de C. S. Lewis com cientistas arrogantes decorre desse fato. Quem não entende o que aqui foi exposto não consegue entender, entre outros fatos, a irritação de C. S. Lewis com a Modernidade nem a sua crítica da ciência que tenta extrapolar os seus limites. O filósofo se preocupa com a realidade em toda a sua amplitude, inclusive com a realidade empírica, observável. Mas não só. Ele se interessa por tudo o que existe e se pergunta até por que outras coisas, outros tipos de universo, não existem — se é que não existem.
Em Salto, 9 de Dezembro de 2021 [Levemente editado em 31.12.2021, com um novo editor, “MarsEdit”. Fantástico.]
Categories: Classical Philosophy, Modern Philosophy
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