A Pessoa, suas Ideias, e sua Obra

Vou escrever este breve artigo para colocar no papel algo que me parece fácil de entender, mas que nem todo mundo entende.

Uma coisa é uma pessoa: sua personalidade, seu temperamento, seu caráter (que inclui seus valores), e até mesmo sua aparência.

Outra coisa são suas ideias, o fruto do que ela pensa, o conjunto dos pensamentos que ela aceita, em que ela acredita, que ela considera verdadeiros.

E, ainda, por fim, uma terceira coisa é sua obra, aquilo que ela pode ter produzido e deixado para a posteridade, na forma de livros, artigos, cartas, músicas, filmes, instituições que funda, prédios que constrói, coisas que inventa e produz, etc.

Bill Gates, por exemplo, é uma pessoa, facilmente identificável, que tem diversas ideias (sobre como ficar rico, sobre como melhorar o mundo, por exemplo), e que produziu uma obra inegável (que inclui a Microsoft Corporation, a Bill & Melinda Gates Foundation, alguns livros e artigos, depoimentos, etc.).

É lícito presumir que haja certa ligação entre essas três “coisas” (é difícil encontrar um melhor termo para designá-las). Em regra, o que uma pessoa pensa é influenciado (condicionado, determinado, causado), pelo menos em parte, pelo tipo de pessoa que ela é. No entanto, o que ela é, a partir de um certo momento, é influenciado (condicionado, determinado, causado) por aquilo que ela pensa, isto é, pelas ideias que ela tem (ou porque as concebeu e gerou, ou porque as recebeu de terceiros). E essas duas “coisas”, o que uma pessoa é e o que ela pensa (suas ideias) acabam por influenciar (condicionar, determinar, causar) a obra que ela deixa para a posteridade (se é que deixa alguma).

A ligação, portanto, quando existe, geralmente é de “duas mãos” (vai e vem, ida e volta) e, não raro, é tênue, frágil e até mesmo discutível.

A pessoa, em si, é uma entidade que possui um corpo e uma mente (que pode ser dividida em intelecto, alma, espírito, etc.). Quando a pessoa morre provavelmente tudo isso (seu corpo e sua mente, com seus diversos componentes) morre com ela. Se alguma dessas partes da pessoa sobrevive à sua morte, ninguém foi capaz de provar até hoje (na minha modesta opinião).

As ideias de uma pessoa, se essas ideias são concebidas de forma subjetiva, como o conteúdo de sua mente) provavelmente também deixam de existir, quando a pessoa morre — a menos que a dita pessoa tenha se encarregado de registrá-las em livros, artigos, cartas, blogs, fotografias, filmes, ou de alguma outra forma. Ou seja, as ideias de uma pessoa, embora sejam, inicialmente, algo subjetivo, concebido e gerado por sua mente, podem ser tornar coisas objetivas, disponíveis por muito tempo depois de sua morte — ou até para sempre. Não nego (muito pelo contrário) que a pessoa sobrevive através das ideias que ela teve e que, tendo-as, de alguma forma, registrado, deixou para a posteridade, ao morrer. (Karl Popper descreve o mundo de realidades físicas como Mundo 1, o mundo de realidades mentais ou psicológicas, como Mundo 2. Ele inova ao postular a existência de um Mundo 3, composto de ideias, que tendo sido parte, um dia, do Mundo 2 de alguém, foram de alguma forma registradas (em papel, meios magnéticos, ópticos, etc.), e, assim, se tornaram objetivas, disponíveis para pessoas que não conviveram diretamente com o autor dessas ideias.

Às vezes a própria pessoa não escreve ou registra quase nada sobre si própria, mas outras pessoas o fazem por ela, escrevendo relatos, depoimentos, biografias, fazendo filmes de curta ou longa metragem sobre ela, etc.   Sócrates viveu há quase 2.500 anos, e nunca escreveu nada. Jesus de Nazaré viveu há cerca de dois mil anos, e também nunca escreveu nada. Mas sabemos um bocado de coisas sobre ambos porque Platão, em seus Diálogos, deixou vários relatos sobre Sócrates e os evangelistas do Novo Testamento fizeram o mesmo acerca de Jesus. Outros autores do Novo Testamento, como Paulo, se referem a Jesus, mas não exatamente com o intuito de fazer sua biografia. Mas, de alguma forma, seu entendimento ou sua visão de Jesus ficaram preservados para a posteridade através de suas cartas, tendo, talvez, se tornado mais importantes do que a narrativa biográfica dos três Evangelistas Sinóticos.

Assim sendo, podemos vir a conhecer não só as pessoas de carne e osso, durante a vida delas, como podemos vir a conhecer, até mesmo depois da morte dessas pessoas, as ideias que elas pensaram, e até mesmo as obras que elas realizaram, e que produziram impacto e efeitos não só sobre seus contemporâneos como sobre a posteridade — embora as duas coisas, o impacto e os efeitos das obras de uma pessoa estejam sempre abertas a debate.

O processo de escrever a biografia de uma pessoa é relativamente complicado, e, devemos reconhecer, bastante diferente, no caso de pessoas que estão vivas e no caso de pessoas que já estão mortas há bastante tempo. Quando se trata de escrever uma biografia de alguém que ainda está vivo, é possível, em princípio, entrevistar o biografado, entrevistar seus amigos e seus inimigos, etc. Quando se trata de escrever uma biografia de alguém que já morreu há muito tempo, tudo o que resta a ser investigado e examinado são evidências, que incluem as obras (livros, artigos, cartas, blogs, etc.) deixadas pelo biografado.

A primeira tese que quero defender é a de que é possível detestar uma pessoa (enquanto pessoa) e gostar muito das ideias e da obra dela. E vice-versa: é possível gostar muito de uma pessoa (novamente, enquanto pessoa) e não gostar das ideias e da obra dela. O difícil – o grande desafio – é decidir até que ponto é possível considerar uma pessoa independentemente do que ela pensa, sem levar em conta as suas ideias e a sua obra.  

A questão, já levantada atrás, que me interessa, mas que é difícil (talvez impossível) de resolver possui estas duas faces:

  • Até que ponto uma pessoa é o que é em função das ideias que tem, que ela criou e desenvolveu, ela mesma, ou que, tendo sido criadas e desenvolvidas por terceiros, ela veio a aceitar e adotar como se suas fossem?
  • Até que ponto uma pessoa tem as ideias que tem (que cria e desenvolve ou que ela aceita e adota) em função daquilo que ela é (deixando suas ideias de fora)?

Não tenho a menor pretensão de resolver essa questão, nem mesmo a intenção de tentar resolvê-la um dia. Vou deixá-la no ar, por assim dizer.

Há pelo menos duas figuras do século 20 cujas ideias filosóficas e cuja obra (filosófica, e, em um caso, também literária e cinematográfica) eu admiro muito: Ayn Rand e Karl Popper. No entanto, de tudo o que conheço de suas biografias (e conheço bastante), essas duas pessoas são, na minha opinião, detestáveis. Não gostaria de ser, ou de ter sido, amigo (nem mesmo vizinho) delas, se tivesse tido a chance. Mas que obra maravilhosa (na minha opinião) essas pessoas deixaram através de seus livros e de seus outros escritos – frutos de suas ideias. (Como se vê por essa afirmação, eu acho que consigo distinguir a pessoa, em si, de suas ideias, e não gostar da pessoa, mas gostar bastante das ideias, ou vice-versa.)

Mais perto de nós, e mudando de área, gosto muito da obra musical e poética do Chico, do Vinícius, do Toquinho – mas não gosto de nenhum dos três como pessoas. Para ser preciso, há uma hierarquia nesse meu desgostamento: pela ordem, da pessoa do Chico eu gosto menos, quase nada; da pessoa do Vinícius gosto um pouco; e da pessoa do Toquinho até chego a gostar um bocado (quando comparado com a afeição que sinto pelos outros dois).

Digo essas coisas porque li um dia desses algo escrito por alquém que eu admiro e respeito, no sentido de que ele (quem estava escrevendo) ficava implicado com pessoas que, em toda e qualquer ocasião, sempre que surge uma oportunidade, criticam João Calvino, entre outras razões, por causa de seu papel na morte (por execução em fogo lento) de Michel Serveto e sua perseguição de Sébastien Castellion (que criticou severamente Calvino por seu papel indiscutível e incontestável na execução do pobre Serveto (de quem eu nem gosto muito, ao contrário do que acontece com Castellion — com quem eu adoraria ter convivido). Como eu sou uma dessas pessoas — eu me atribuí a missão de, dentro de minha alçada, não deixar que o mundo se esqueça desse triste papel de Calvino, ou que diminua a importância e a gravidade do que ele fez — achei necessário esclarecer algumas coisas.

A primeira é essa que acabei de ressaltar. A crítica a Calvino por seu papel na morte de Serveto e na perseguição de Castellion afeta a pessoa de Calvino, não necessariamente suas ideias (certamente não todas elas, apenas  algumas delas, mas as que são afetadas são centrais), nem a importância de sua obra como um todo e o papel que ele acabou por ter nas Reformas Religiosas do século 16, tanto em Genebra, na Suíça “Romande”, como no mundo (tendo ido para a Inglaterra, a Escócia e a Irlanda, e, de lá, vindo para o Brasil).

Da mesma forma que detesto Ayn Rand e Karl Popper, como pessoas, detesto Calvino, como pessoa, como gente, como ser humano. Detesto Lutero, também, embora bem menos, pois Lutero tinha um pouco mais de humanidade em si, apesar do seu papel mortífero no aniquilamento do movimento dos camponeses alemães e do que ele fez com Karlstadt (Andreas Rudolf Bodenstein von Karlstadt), que era seu amigo, seu orientador no Doutorado, seu chefe na Universidade, e que era, acima de tudo, uma pessoa de alma pura e de competência intelectual indiscutível. Já que falei em Calvino e em Lutero, devo dizer também que acho Zuínglio, apesar de algumas das boas ideias que teve, um babaca (desculpem a gíria) que jogou fora a chance de ser uma figura importante da Reforma Protestante, quiçá a mais importante, para ir se meter a brincar de guerreiro nos conflitos com os católicos. Deu no que deu. Não chegou sequer aos 50 anos. Heinrich Bullinger eu acho que tentou ser um equilibrista em cima do muro. Mas não ignoro que ele foi um avalista de Calvino — e das barbaridades que Calvino aprontou em Genebra (pois Calvino não carrega apenas a culpa de ser o responsável pelo assassinato de Serveto, dentro da Confoederatio Helvetica). A culpa dele é muito mais ampla.

Senti-me movido a escrever isso porque, no último mês, tenho lido quase que só livros de e sobre Sébastien Castellion. Castellion foi uma grande figura humana e um formidável intelectual. Como disse atrás, se eu tivesse vivido na França e na Suiça do século 16, teria adorado ser seu amigo. Gosto da pessoa. Gosto das ideias. Gosto do que ele tentou fazer, mesmo colocando sua vida em risco. No entanto, ele acabou sendo um indivíduo que teve sua vida arrasada porque ousou enfrentar Calvino, criticando a postura deste no caso de Serveto… Da mesma forma que Karlstadt teve sua vida arrasada porque ousou se mostrar mais capaz e competente do que o desajustado Lutero.

Tanto Karlstadt como Castellion acabaram sendo socorridos por pessoas que residiam na cidade de Basiléia (Bâle, Basel), na junção da Suíça, da Alemanha e da Holanda, onde reinava (por assim dizer) o holandês, Erasmo – um outro homem segundo o meu coração. Todos os três, os meus três indivíduos favoritos nas Reformas Religiosas do século 16, morreram em Basileia: Erasmo, Karlstadt e Castellion. E isso se deu por obra e graça de um deles, Erasmo, cuja cidade que tipifica os seus ideais humanitários e cosmopolitas socorreu os outros dois, incorrendo na ira, primeiro de Lutero, e, depois, de Calvino.

No caso de Ayn Rand e Karl Popper, eu não gosto das pessoas, mas gosto das suas ideias. No caso de Calvino eu não gosto da pessoa, nem de boa parte de suas ideias (as que ele e muito mais gente considerava e ainda considera as mais importantes). Mas admiro sua capacidade intelectual e aquilo que ele foi capaz de produzir, em termos de livros e de outros aspectos de sua obra (como L’ Académie de Genève, hoje Unigenève – L’ Université de Genève, onde Piaget trabalhou).

Acho que Calvino, a despeito do que afirmam os calvinistas mais ferrenhos, fez mais mal do que bem à humanidade com suas ideias, com sua visão de ortodoxia, com sua convicção de que hereges devem ser banidos, perseguidos ou mesmo mortos. Calvino defendeu uma imagem de Deus em que este não é benigno, misericordioso, tardio e irar-se e de grande clemência, um pai bondoso. Deus, para Calvino, é, isto sim, sim, um monarca soberano e majestoso, todo poderoso, zeloso de seu poder arbitrário (“sou porque sou”, “quero porque quero”), que não pode ser descrito sequer como justo, porque ele teria decretado, desde antes da criação do mundo (e do homem), que o ser que ele iria criar o desobedeceria, e transmitiria sua culpa a todos os seus descendentes. Diante disso, o próprio Deus, o criador, teria definido um Plano B, no caso de o Plano A não dar certo, como não deu. Mas esse Plano B não iria contemplar todo mundo: só iria contemplar, arbitrariamente, um certo número dos descendentes do primeiro casal (o segmento dos “eleitos”). E a escolha depende apenas do arbítrio de Deus.

Os demais, o segmento dos “não-eleitos”, vale dizer, dos condenados, seriam punidos por toda a eternidade, apenas por constituir aqueles descendentes do primeiro casal que, arbitrariamente, foram preteridos e rejeitados por Deus — não em virtude de algo que eles fizeram, ou iriam fazer, mas porque Deus assim o decidiu e determinou em sua soberania.

Por que não poderiam ser salvos todos, ou, pelo menos, ter todos oportunidade igual de alcançar a salvação, seja crendo, seja fazendo boas obras, sendo de alguma outra forma? Ou, então, por que o primeiro casal precisou pecar? O primeiro casal poderia ter sido livre para pecar, mas nunca ter escolhido pecar. A resposta de Calvino foi que o primeiro casal pecou porque Deus, em seu insondável alvedrio e sua infinita soberania, assim o desejou e assim determinou, desejando e determinando também, em seu Plano B, que nem todo mundo seria salvo, ou teria igual chance de ser salvo, mas apenas os eleitos, os escolhidos por ele. Essa é a doutrina da dupla predestinação proposta por Calvino, da qual os calvinistas ferrenhos se recusam a abrir mão. Não consigo entender como alguém pode adorar um Deus assim.

O Deus da visão teológica de Calvino não é Pai. Não é bom, não é magnânimo. Nem sequer é justo. É, isto sim, poderoso – majestática, majestosa e soberanamente poderoso — na verdade, onipotente. Ele pode fazer o que quiser e o que ele fizer será considerado bom. Foi por causa dessa sua ideia de Deus que Calvino se sentiu obrigado a vingar a sua autoestima e a sua suposta honra feridas por Serveto, pedindo a sua condenação à morte… Assim, cometeu um crime contra alguém cujo único erro foi discordar de Calvino. E, o que é pior, considerou esse seu crime (dele, Calvino) uma virtude: como se o que ele estivesse fazendo não fosse vingar a sua autoestima e sua honra, mas, sim, defender a soberania (e não a magnanimidade) de Deus (como bem acentuou Pierre Bayle, em passagem já citada no meu Facebook hoje [22.7.2023 – leiam o artigo anterior neste blog para referência].

É isso.

Em Salto, 22 de Julho de 2023 (pequenas revisões em 29.5.2024).



Categories: Liberalism

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