Hoje cedo acordei com minha veia sensível (vale dizer, romântica, literária) exacerbada. Moro em um sítio. Quando abri a porta e vi o dia lá fora, fiquei impressionado com a beleza da natureza. Lembrei-me de Bilac — Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918) : “Criança, não verás nenhum país como este…”. Bilac chamou o poema de “A Pátria”. Não gosto do título. Preferiria que tivesse lhe dado o título de “A terra em que nasceste…”, ou, então, um pouco mais chinfrim, “A Natureza”.
“Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
Criança! não verás nenhum país como este!
Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!
A Natureza, aqui, perpetuamente em festa,
É um seio de mãe a transbordar carinhos.
Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos,
Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos!
Vê que luz, que calor, que multidão de insetos!
Vê que grande extensão de matas, onde impera
Fecunda e luminosa, a eterna primavera!
Boa terra! jamais negou a quem trabalha
O pão que mata a fome, o teto que agasalha…
Quem com o seu suor a fecunda e umedece,
Vê pago o seu esforço, é feliz, e enriquece!
Criança! não verás país nenhum como este:
Imita na grandeza a terra em que nasceste!”
Olhando o céu, a luz do Sol, as árvores, o gramado, encontrei o meu amigo de todos os dias. Um joão-de-barro solitário. Há vários anos que, ao me levantar, saio para respirar um pouco o ar puro deste pedaço de Paraíso. E, desde que comecei a fazer isso consciente e intencionalmente, lembro-me do joão-de-barro. Inicialmente eram dois, provavelmente um casal. Ciscavam, sempre, em volta da casa e da piscina. Quando eu saía de casa, para destrancar os portões, os dois me acompanhavam até o portão e voltavam comigo. Não se assustavam comigo, não tinham medo da minha presença. Quando se cansavam, voavam. Às vezes um voo rasteirinha.
Um dia um deles apareceu só. Não sei se era ele ou era ela. Mas, para mim, não faz diferença. Vou me referir a ele no masculino genérico, como sempre fiz quando não é possível ou desejável determinar o sexo ou o gênero das coisas. E desse dia em diante, ele, o joão-de-barro, sempre cumpriu só seu ritual de meu acompanhante na ronda pela parte do sítio, cercada por um alambrado, que circunda a parte do sítio onde nós moramos. Não creio que haja divórcio entre os joões-de-barro. O meu joão-de-barro deve ter se enviuvado.
Sempre que o via sozinho, ocorria-ma a ideia de que havia um texto, provavelmente um poema, que era relevante nesse contexto, mas não me lembrava qual. Hoje, ao ver meu joão-de-barro, eu imediatamente me lembrei, como em uma revelação. Era o poema “Os Cisnes”, de Júlio Mário Salusse (1872-1948, principalmente as duas estrofes finais).
“A vida, manso lago azul, algumas
Vezes, algumas vezes mar fremente,
Tem sido para nós, constantemente,
Um lago azul sem ondas, e sem espumas.
Sobre ele, quando, desfazendo as brumas
Matinais, rompe um sol vermelho e quente,
Nós dois vagamos indolentemente,
Como dois cisnes de alvacentas plumas.
Um dia um cisne morrerá, por certo:
Quando chegar esse momento incerto,
No lago, onde talvez a água se tisne,
Que o cisne vivo, cheio de saudade,
Nunca mais cante, nem sozinho nade,
Nem nade nunca ao lado de outro cisne!”
É isso. Na minha mente, o cisne viúvo deveria se casar com o meu joão-de-barro remanescente. Pode até ser que os remanescentes sejam do mesmo sexo. Não faz mal. Como não faz mal a diferença no tamanho deles. Nem a diferença de idade. O meu joão-de-barro é puro século 21, e o cisne, provavelmente, nasceu no fim do século 19 ou no começo do 20.
Em Salto, n’O Canto da Coruja, 3 de Agosto de 2024. Mês em que muita coisa aniversaria. Dezesseis anos!
Categories: Liberalism
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