Gestão do Conhecimento, Gestão do Esquecimento e Gestão da Ignorância – Parte 1

[NOTA de 2024.12.11]

“Quem guarda, tem”. Minha mãe costumava me dizer isso para incutir em mim o hábito de guardar bem as coisas que me são importantes ou de que eu posso vir a precisar no futuro. Desenvolvi o hábito. Um problema é que às vezes guardo as coisas tão bem que, quando preciso delas não consigo encontrá-las. Mas há um problema ainda maior. Existem tantas coisas que acho importante ou útil guardar (sou arquivista e relicário por natureza, com genes herdados dos dois lados da família) que às vezes há coisas que eu guardo, e guardo tão bem, que, depois de um algum tempo, não só me esqueço de onde as guardei, mas me esqueço das próprias coisas que guardei, e, por conseguinte, tenho guardadas, em algum lugar ignorado. Com o surgimento de coisas digitais (textos, por exemplo), o problema ficou exponencialmente pior. Neste caso, é como se essas coisas guardadas e esquecidas não existissem – até mesmo nunca tivessem existido, a menos que o acaso me faça reencontrá-las. O que vou apresentar abaixo é algo assim. Procurando uma coisa (a tese de uma orientanda minha, de mais de vinte anos atrás), encontrei, uma pasta chamada “KnowMgt”. Esta é uma abreviação plausível para “Knowledge Management”, Gestão do Conhecimento, um assunto que me interessa desde que eu fiz meu doutorado nos anos 1970-1972, mais de cinquenta anos atrás. Copiei a pasta para um diretório novo (para manter o antigo intocável – sou uma pessoa cautelosa) e a abri. Achei um monte de mensagens minhas e de muitas outras pessoas (algumas bem conhecidas), do ano de 2004-2006 (cerca de 20 anos atrás) sobre o tema “Gestão do Conhecimento em Ambientes de Aprendizagem”. Essas mensagens circularam em uma Mesa de Debates Virtuais que foi promovida pela Sociedade Brasileira de Gestão do Conhecimento (e gerenciada por Lourdes Martins) em que eu apresentei a mensagem inicial. Participaram dessa mesa muitas pessoas importantes e conhecidas, como Cláudio de Moura Castro, André Saito, Sérgio Storch, Wilson Azevedo, e outros – todas elas pessoas que eu tive prazer de conhecer ao longo da vida. O Sérgio Storch, que foi um dos fundadores da “Rede JuProg”: Judeus Brasileiros Progressistas, isto é, uma rede de judeus de esquerda, morreu durante a pandemia. Fomos colegas durante quatro anos no primeiro (e único) Conselho Estadual de Informática (CONEI) do Estado de São Paulo, criado em 1987 e que durou até 1990, quando o Governador Orestes Quércia deixou o governo do Estado de São Paulo – e eu deixei de trabalhar, emprestado pela UNICAMP, no governo do Estado, depois de cinco anos. Para dizer a verdade, não me lembrava de ter participado dessa ilustre Mesa de Debates – até que comecei a reler as mensagens, e, daí, muita coisa que estava enterrada na memória foi desenterrada… Este caso acabou sendo um daqueles casos em que a gente acha por acaso alguma coisa que nem sabia que estava perdida. Resolvi transcrever algumas das minhas mensagens aqui. Não todas: apenas as que ainda me parecem importantes, úteis ou interessantes. Se mexer no texto original, informo o leitor acerca do fato. Eduardo Chaves. 11 de Dezembro de 2024. Cerca de 20 anos depois.

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[MENSAGEM ESCRITA DE 26.04.2006 A 06.05.2006]

Vou me arriscar a discutir a questão da conceituação da gestão do conhecimento sem me referir à volumosa literatura que existe sobre esse tema. Vou me valer apenas, de um lado, de minha experiência como filósofo, por muitos anos envolvido com a epistemologia (teoria do conhecimento), e como educador, também por muitos anos envolvido com a questão de como é que as pessoas, que nascem ignorantes e incompetentes, conseguem vir a conhecer, isto é, a se “designorantizar”, e a se tornar competentes, isto é, a se “desincompetentizar”, e, de outro lado, de meu conhecimento da literatura filosófica sobre o conhecimento. Também fui, durante vários anos, professor de Gerenciamento de Sistemas de Informação na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP), tendo sido um dos membros de uma equipe de três que criou o Mestrado nessa área naquela universidade. Colocando tudo isso num liquidificador, vamos ver no que dá…

Há momentos em que me pergunto se a gestão do conhecimento é algo mais do que o antigo gerenciamento da informação –  e, se é, no que consiste esse mais?

A impressão que tenho é que a gestão do conhecimento é, sem dúvida, algo mais do que o gerenciamento da informação – e que o mais, no caso, é o gerenciamento de competências. Assim teríamos: gerenciamento da informação + gerenciamento de competências = gestão do conhecimento.

Obviamente haverá quem estranhe essa forma de colocar as coisas. Mas vou tentar justificá-la.

Certamente já houve quem tenha dito que a gestão do conhecimento abrange:

  • Os chamados meios de informação e de conhecimento, que são as diferentes formas em que as informações e os conhecimentos (visuais, sonoros, escritos, etc.) são registrados, armazenados e transmitidos (aquilo que Karl Popper chama de MUNDO 1, ou MUNDO FÍSICO), e que envolvem pedras, paredes de caverna, papiro, pergaminho, tela, vidro, papel, vinil, plástico, fitas e discos magnéticos ou ópticos, etc., que são os suportes físicos da informação e do conhecimento.
  • As informações e os conhecimentos em si, independentemente de seu suporte físico (aquilo que Karl Popper chama de MUNDO 3, ou MUNDO LÓGICO), que envolvem imagens diversas, como desenhos, pinturas, gráficos, fotografias; sons diversos, como a fala humana, efeitos especiais, músicas; textos, incluindo equações alfanuméricas, etc.
  • Os mecanismos mentais ou psicológicos capazes de produzir o MUNDO 3 e registrá-lo, armazená-lo e transmiti-lo em objetos ou artefatos do MUNDO 1 – aquilo que Karl Popper chama de MUNDO 2, que é o MUNDO MENTAL.

[Este parágrafo, com seus três bullets, teve sua redação drasticamente modificada em 2024.12.11, para que as ideias ficassem mais claras.]

O MUNDO 3 é o mundo da informação e do conhecimento. Apesar de um livro fazer parte do MUNDO 1 por ser um objeto físico, manuscrito ou impresso, o conteúdo do livro faz parte do MUNDO 3. O livro que está em forma manuscrito não muda quando ele passa a ser impresso. Da mesma forma, o livro que estava impresso, não muda quando ele passa a existir como ebook, em uma “nuvem” qualquer, nem quando eu o baixo para o disco rígido de meu computador. Apesar de um CD fazer parte do MUNDO 1 por ser um objeto físico, o mesmo podendo ser dito de um pen drive, a música gravada nele faz parte do MUNDO 3. O mesmo pode ser dito de um software como Microsoft Office fazer parte do MUNDO 1 em um CD-ROM, ou pode ficar na “nuvem” da Microsoft, de onde é baixado para o meu computador.

Obviamente, as coisas que eventualmente vêm a fazer parte do MUNDO 3 são antes concebidas no MUNDO 2 — o mundo mental, na mente de alguém. Mas Popper insiste na diferença. Depois de concebidas na mente de alguém, as ideias, em geral, são objetificadas, e passam a ter uma existência objetiva, que independe da mente que as criou (e do contexto em que foram criadas). Essa construção teórica está na base da ideia de Conhecimento Objetivo que Popper defende (num livro chamado Conhecimento Objetivo). Segundo Popper, SE, por uma desgraça ou um desatino, toda a raça humana for aniquilada instantaneamente, mas o restante do MUNDO 1 for miraculosamente preservado, com seus livros, CD-ROMs, CDs, DVDs, fitas e discos de todo tipo, etc., e um ser inteligente chegar aqui na Terra, depois do nosso extermínio, ele será, no devido tempo, capaz de reconstituir toda a nossa base de informações e conhecimentos, até as chamadas fake news, porque tudo isso terá sido preservado e será reconstituído na mente dele, no MUNDO 2 dele. Será perdido apenas o conteúdo das mentes das pessoas que foram aniquiladas que não tiver sido objetificado em livros, CD-ROMs, discos rígidos, etc. Acho essa ideia muito interessante – e tremendamente frutífera no contexto da questão da gestão do conhecimento. Se quisermos preservar nossa base de conhecimento, temos de extrair o que está na mente das pessoas e transferi-lo para papel, discos ópticos, discos magnéticos, etc. Punto y basta.

[Os dois parágrafos anteriores foram movidos para cá de uma outra mensagem, escrita posteriormente.]

Mas aqui surge o seguinte problema, que tem várias facetas.

O conhecimento que está armazenado na mente das pessoas engloba uma boa parte da informação que também está registrada e armazenada fora. Digamos que vou escrever um artigo. Penso e decido o que vou dizer. Até que eu coloque o artigo em disco ou papel, ele está só na minha cabeça; depois passa a estar na minha cabeça e no papel ou no disco. Se um dia ou me esquecer totalmente do conteúdo do artigo que escrevi, ou, então, se eu morrer, o artigo continuará a existir em papel ou em disco.

Seria o conhecimento que está em nossa cabeça algo mais do que um conjunto de informações que podem ser, digamos, externalizadas e registradas em algum meio de armazenamento de informações?

Tradicionalmente, na Epistemologia (Teoria do Conhecimento), argumentava-se que conhecimento é informação — mas informação de certo tipo. Na versão mais famosa dessa teoria tradicional, as informações que merecem ser chamadas de conhecimento são aquelas que são verdadeiras, para as quais temos evidência, e nas quais acreditamos. Em suma: conhecimento seria crença verdadeira e evidenciada.

Não vou entrar aqui na discussão dessa proposta de conceituação de conhecimento, que é bastante falha. Basta dizer que pouca gente a aceita, hoje. Popper, talvez, tenha sido o seu coveiro.

Muitas outras propostas têm surgido para substituir essa visão tradicional, preservando a ideia de que conhecimento é informação, mas procurando mostrar que apenas um certo tipo de informação faz jus ao rótulo de conhecimento: por exemplo, conhecimento seria a informação integrada, contextualizada e interpretada. E assim vai.

Numa linha diferente, tem havido aqueles que, sob inspiração de Jean Piaget, têm afirmado que conhecimento não é informação em si (nem mesmo de um tipo especial de informação), mas que é o nome que damos aos nossos modelos e esquemas (“schemata“) mentais, que, em última instância, são o que nos permite lidar com grandes quantidades de informação e fazer sentido dela. Conhecimento, nesse caso, seria informação para a qual conseguimos dar (encontrar, atribuir, construir) sentido.

Mas, embora atraente, há algumas dificuldades nessa proposta.

Em primeiro lugar, boa parte de nossos modelos e esquemas mentais normalmente não são conscientes. Se fizermos um esforço de foco e autoanálise, poderemos até adquirir consciência de alguns deles, se bem que dificilmente em toda a sua complexidade. Em segundo lugar, se isso é verdade, seria possível descrever, em parte, esses modelos e esquemas, mas seria muito difícil transmiti-los ou transferi-los a terceiros: cada um, em última instância, teria de desenvolver os seus. Em terceiro lugar, se isso é verdade, é difícil imaginar o que seria a gestão, por terceiros, desse conhecimento que está na mente dos outros. Na verdade, é difícil até mesmo imaginar o que seria a gestão dos modelos e esquemas mentais que estão na nossa própria mente, em parte porque a tomada de consciência deles, ainda que parcial, exige competências de autopercepção (autoconhecimento?), análise e descrição de sistemas complexos que a maior parte dos mortais não desenvolve.

Quaisquer que sejam os modelos e esquemas que desenvolvamos para lidar com a informação e fazer sentido dela, parece inegável que esses modelos e esquemas, mais as informações que possuímos em nossa mente, se traduzem nas competências e habilidades que desenvolvemos. Sem, necessariamente, nos comprometer com uma visão behaviorista da mente, mas reconhecendo que num contexto institucional é o comportamento que mais importa, poderíamos, então, concluir que a chamada gestão do conhecimento é o gerenciamento da informação registrada em diversos meios de armazenamento dentro de uma instituição mais o gerenciamento das competências daqueles que ali militam. Assim evitaríamos as complicações envolvidas em falar no conhecimento que está “dentro da cabeça das pessoas”.

Quod erat demonstrandum.

Uma última dificuldade, para concluir.

Quando se trata de instituições educacionais, cuja missão, portanto, mais do que transmitir informações, é ajudar os outros a aprender, e reconhecendo, apud Peter Senge, que aprender é se tornar capaz de fazer o que antes não conseguíamos fazer, ou seja, aprender é desenvolver competências, o gerenciamento das competências talvez seja, nessas instituições, bem mais importante do que o gerenciamento da informação em si.

Mais coisa por vir.

Em Taipei, na Tailândia, 6 de maio de 2006 (data em que a mensagem foi concluída)

–Eduardo Chaves
eduardo@chaves.pro

Transcrito aqui em Salto, 11.12.2024, 18 anos e meio depois, com alguma revisão (indicada)



Categories: Liberalism

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