Uma Mensagem sobre PAULO FREIRE

[Mensagem enviada nesta data a Domingos Anand, a propósito de algo que apareceu sob seu nome no LinkedIn. Compartilhei esta mensagem no LinkedIn, no Facebook, e no X-Twitter]

Salto, SP, 26 de Janeiro de 2025

Caro Domingos Anand,

Não nos conhecemos pessoalmente, mas somos amigos (i.e., contatos) no LinkedIn.

Sou Eduardo Chaves, chegando nos 82 anos, professor aposentado da UNICAMP na área de Filosofia e História da Educação, ex-diretor da Faculdade de Educação (FE) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) –  de 1976-1980, Diretor Associado, de 1980 a 1984, Diretor Titular.

Eu era Diretor Associado da FE-UNICAMP, no exercício do cargo de Diretor (por estar o então Diretor Titular afastado), no final da década de 70, quando o pedido de contratação do Paulo Freire foi encaminhado à Reitoria. Paulo Freire estava em Genebra (exilado), sendo patrocinado pelo Concílio Mundial de Igrejas (CMI). O pedido (que me trouxe, particularmente, inúmeras dores de cabeça) foi engavetado pela Reitoria e só foi encaminhado quando eu era Diretor Titular.

Vi, no Linkedin, uma mulher, não identificada, escrevendo debaixo do seu nome, dizer uma série de coisas sobre Paulo Freire que eu pretendo contextualizar e esclarecer aqui.

Confesso que não tenho a menor vontade de entrar nesse debate (embora já tenha participado dele). Sou liberal clássico, beirando o Libertarianismo Individualista Anárquico. Sou inimigo implacável da esquerda ativista em todas as suas modalidades. E sou anti-marxista e anti-comunista. Peço que note as datas em que ocorreram os eventos acima descritos: final da década de 70, começo da década de 80. O Brasil ainda estava sob o Regime Militar. Apesar das greves do Estádio da Vila Euclides em São Bernardo, o PT e a esquerda em geral não eram forças políticas dignas de consideração séria.

Fui Diretor da FE-UNICAMP enquanto o Paulo Freire foi trabalhar na UNICAMP (ficou pouco tempo lá e mudou para a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), alegadamente por estar morando em São Paulo, onde morava sua filha Marilena Freire, então mulher do meu colega Francisco Correia Weffort, hoje falecido, mas que foi Ministro da Cultura nos dois mandatos do Presidente Fernando Henrique Cardoso, que era do PSDB, não do PT.

Posso lhe garantir uma coisa. Existem (pelo menos) quatro  Paulos Freires.

1. Há o Paulo Freire real (Paulo Reglus Neves Freire, nascido em 19.9.1921, em Recife), que fez Direito em Pernambuco (nunca fez Pedagogia, que nem existia naquela época nas Faculdades brasileiras), que só tinha doutorados Honoris Causa, e que, a partir de um certo momento, passou a se interessar pela educação (em especial sobre a educação de quem nunca frequentou a escola). Hoje, pouca gente o conhece bem. Eu o conheci um pouco. Convivemos bem. Gostei muito dele como pessoa e como colega de trabalho. Na verdade, fui Diretor da FE-UNICAMP em parte do tempo que ele passou lá.

2. Há o Paulo Freire escritor, autor de inúmeros livros (alguns, os mais recentes, publicados post mortem, em nome dele, pelo Instituto Paulo Freire (IPF), criado por meu amigo (petista, marxista, etc.) Moacir Gadotti, ex-professor da UNICAMP e professor aposentado pela USP. Creio que, diferentemente do Francisco Weffort, ele ainda está vivo – não ouvi ou li nada em contrário. (Ele é um pouquinho mais velho do que eu: nasceu em 1941, e eu, em 1943).

3. Há o Paulo Freire construído pelo PT e pela esquerda nacional, sob a tutela do Moacir Gadotti, que se tornou Secretário da Educação da Prefeitura na gestão da Luiza Erundina, então no PT, e que a Dilma Roussef eternizou como Patrono da Educação Nacional. Esse é o Paulo Freire que os intelectuais de esquerda veneram. Ele é uma construção, uma narrativa, um fake.

4. Há o Paulo Freire construído pela Direita Brasileira (e até certo ponto internacional, especialmente americana), que, como o Paulo Freire construído pela Esquerda Brasileira (e Internacional), é um fake, porque assume, para criticar, os pressupostos do Paulo Freire-3.

O Paulo Freire Real, o que eu chamo de Paulo Freire-1, e que inclui boa parte dos escritos antigos de Paulo Freire-2, era um Democrata Cristão, católico, na linha do André Franco Montoro, pessoa simples, ingênua, bem intencionada, que queria ajudar os pobres ignorantes do Nordeste. Por um trabalho que ele fez no Rio Grande do Norte (“De Pé no Chão também se Aprende”), chamou a atenção de Darcy Ribeiro, então Ministro da Educação do João Goulart, que o levou para o MEC, para coordenar um programa de Alfabetização de Adultos. Foi um desastre — para todo mundo. Para aqueles que são liberais clássicos, como eu, para o próprio Paulo Freire, para a Educação Brasileira, para o Brasil Político, e para o Mundo. E isso porque o João Goulart foi deposto pelos militares, inaugurando o Regime Militar, o alto escalão do governo de João Goulart fugiu ou foi preso, a maioria indo para o exílio (especialmente para o Chile, pelo menos inicialmente, como é o caso do Paulo Freire — foi lá que o Paulo Freire escreveu o livro Pedagogia do Oprimido), e, em decorrência disso, o Paulo Freire (como todos os presos, banidos, exilados, etc.) virou herói da esquerda, em especial da esquerda comunista ou comunistizante, e o resto é hstória. A esquerda, focada no “Oprimido” do título, não entendeu a maior parte do livro, que é uma crítica incisiva da escola, que, em sua versão pública, é tão louvada e explorada pela esquerda, prque serve de instrumento de doutrinação..

No caso do Paulo Freire, o Concílio Mundial de Igrejas (CMI), com sede em Genebra, Suíça, o “encampou”: ele não tinha passaporte brasileiro, o CMI lhe arranjou um “ficaporte”, que, contraditoriamente, lhe permitia viajar para o resto da Europa, para a África, para os EUA, etc. O Moacir Gadotti, que fazia seu doutorado na Université de Genève (criada por Jean Calvin, reformador protestante, e onde trabalhou Jean Piaget), que fica na mesma cidade que o CMI, e lá ficou amigo do Paulo Freire, que serviu mais ou menos de co-orientador oficioso da tese dele, pelo que fiquei sabendo. Com seu doutorado pronto, o Moacir Gadotti veio para a UNICAMP, na década de 70 (época em que eu também vim, só que eu estava trabalhando nos EUA, onde obtive meu Ph.D. em 1972), propôs que a gente patrocinasse o retorno do Paulo Freire para o Brasil, o que pareceu uma boa ideia a todos naquela época, menos à direção da UNICAMP, subserviente ao Governo Militar.

Por que isso pareceu uma boa ideia para todos da Faculdade de Educação? Não houve sequer um professor que objetasse à ideia. Porque naquela época a dicotomia e o confronto não era entre a esquerda e a direita (como hoje entendidas), mas, sim, entre a maior parte da população brasileira e o Governo Militar, a Ditadura. O que aconteceu, porém, é que, quando a contratação do Paulo Freire finalmente saiu, logo depois terminou o Regime Militar e teve início a chamada “Nova República”. Nesse contexto, o Moacir Gadotti “se apossou” do Paulo Freire (que passou a ser propriedade do PT, de certo modo), transferiu-se (o Gadotti e não o Paulo Freire) para a USP, mudou-se para São Paulo, criou o Instituto Paulo Freire (IPF), ao qual o Paulo Freire doou sua Biblioteca, todos os seus papéis, sua tradicional mesa de trabalho, etc, e o IPF acabou por se tornar multinacional, criando filhotes nos principais países desenvolvidos do mundo. O Moacir Gadotti trabalha duro e bem, com vistas à promoção de seus objetivos. Quando a Luiza Erundina ganhou a eleição para Prefeitura de São Paulo, o Moacir Gadotti emplacou o Paulo Freire como Secretário da Educação da Cidade. A verdade é que o Paulo Freire não fazia virtualmente nada, além de emprestar o nome e a sua imagem… Só de vez em quando falava uma bobaginha ou outro, o contava algum “causo” engraçado, à la Rolando Boldrin — o Secretário da Educação de fato era o Moacir Gadotti, mas o Gadotti (generosamente) atribuía tudo que ele fazia à genialidade freireana). Assim o “mito da esquerda” foi criado, culminando na sua instituição como Patrono da Educação Nacional, sob a égide da antalógica (sic) Dilma Roussef.

A Pedagogia do Oprimido, escrito por Paulo Freire no Chile e lá publicado em 1968, é um livro que eu, como filósofo da educação, reputo excelente. É verdade que o Paulo Freire tem uma linguagem embolada, cria neologismo atrás de neologismo, tornando-se difícil de entender. Mas, para bom entendor, no livro ele faz uma magistral crítica da educação tradicional (que, aqui entre nós, merece ser severamente criticada), que ele rotulou de “educação bancária”. Ali ele diz que os únicos que aprendem alguma coisa na educação tradicional, se forem bons e estiverem suficientemente motivados, são os professores, que precisam estudar um pouco para fazer depósitos de conhecimentos na cabeça dos alunos. Ele afirma no livro (minha adaptação da citação literal): “Ninguém educa ninguém. Mas, tampouco, alguém se educa sozinho. Nós nos educamos uns aos outros, em diálogo e comunhão, ao longo da vida, tendo o mundo como cenário — não a escola”. Não são os professores que educam. Não é a escola que educa. Nós nos educamos uns aos outros, na família, em casa, entre os amigos, na comunidade, no clube recreativo, no trabalho, em qualquer e todo lugar. Com um pouco de sorte aprendemos até sem querer. Nós aprendemos vivendo, interagindo, conversando, dialogando, discutindo, debatendo, levando porrada da vida, sendo bem sucedido aqui e ali… Isso, desde o dia em que nascemos até o dia em que morremos. Nada de professor aí, nada de livro texto, nada de doutrinação. A gente aprende vivendo, conversando, fazendo coisas, lendo… Arrumando bons “Parceiros na Aprendizagem”, na expressão inventada pela Microsoft.

Paulo Freire era amigo de Ivan Illich, que escreveu um livro famoso, logo depois do Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, chamado Deschooling Society (A Sociedade Sem Escolas, em Português, mas que deveria ter tido o título de Desescolarizando a Sociedade…). Ivan Illich não era comunista. Talvez fosse um pouco caído para a esquerda. Mas o Paulo Freire também era amigo de Seymour Papert, do MIT, o papa da Informática na Educação, ou da Aprendizagem Viabilizada pela Tecnologia, o indivíduo que ressuscitou a Matética de Jan Comenius! Matética, a Arte de Aprender Informalmente é o avesso da Didática, A Arte de Ensinar Formalmente. Seymour Papert, um gênio sul-africano, como o Elon Musk, não era comunista. Nem esquerdista.

Enfim, a Esquerda Brasileira fez de Paulo Freire um Mito e a Direita Brasileira demonizou o Mito da Esquerda (como a Esquerda Brasileira, mais tarde, demonizou o mito político da Direita Brasileira). Nenhum dos dois corresponde ao Paulo Freire Real, que viveu e com o qual eu convivi, e que escreveu alguns livros bastante bons (além de Pedagogia do Oprimido, Educação como Prática da Liberdade) lá atrás, antes de ser raptado pela esquerda para o projeto de poder que a esquerda tinha para o Brasil. Os livros publicados pelo Instituto Paulo Freire têm todos o dedo do Moacir Gadotti e de seus comparsas (ok: associados). (Antes que alguém fale, eu colaborei com o Moacir Gadotti no início do Instituto Paulo Freire, antes de o Gadotti virar o Secretário da Educação de facto da Luiza Erundina. E o considero meu amigo. Não sei se ele ainda me considera amigo dele. Mas fato é fato.)

O que a mulher que fala, no LinkedIn, debaixo do seu nome, é, em parte verdade, naquilo que ela ataca o Mito da Esquerda, o Paulo Freire-3. Mas ela fala muita bobagem em relação ao Paulo Freire-1 e ao Paulo Freire-2.  Ela representa o Paulo Freire-4, o Mito da Esquerda Demonizado pela Direita.

Abraço.

Eduardo CHAVES, em Salto, 26 de Janeiro de 2025.



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5 replies

  1. Sem palavras! Adorei!

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    • Que bom que gostou… O Paulo era uma pessoa fora de série. Muito simples, muito amável, atencioso, tudo de bom. Passou muito tempo fora do Brasil, e, através do Moacir Gadotti, foi acolhido pela esquerda, e se deixou fascinar um pouco pelo endeusamento. É compreensível. Ainda bem que morreu antes de ser demonizado pela direita.

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  2. Muito bom. Importante é entender os “ismos”…; derivados das ideias principais. No caso aqui, temos “freirismos” , como também há Cristo e os cristianismos, Marx e os marxismos, e seguem infinitos ismos , no âmbito autoral-cultural.

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  3. RUY GUILHERME ALBUQUERQUE PEREIRA's avatar

    Excelente esclarecimento professor. Vivo em Universidade e Escola públicas, maioritariamente socialistas (esquerdistas) e, em ambas, Paulo Freire é venerado. Seu esclarecimento é o correto de maneira que apresenta, pela voz de quem de fato o conheceu como pessoa, profissional e escritor, ou seja, o fato como ele deve ser posto.
    Caso contrário ficamos na divagação circular daqueles que somente conhecem pelos escritos e opiniões limitadas de outros. É o mesmo caso de discutir sobre escola sem nunca ter pisado em uma, ou, no meu caso de formação em Educação Física, discutir sobre Academias de Ginástica sem nunca ter entrado em uma.
    Atenciosamente,

    Ruy Guilherme.

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