Eu sou um comprador de livros inveterado. Eu diria que comprar livro é o único vício que eu tenho do qual acho quase impossível largar. Larguei de fumar faz quase 42 anos (foi no meu aniversário de quarenta anos, em 1983), quando acho que eu estou bebendo mais do que devo reduzo, ou mesmo deixo de beber por um tempo (minhas bebidas alcoólicas favoritas são cerveja, vinho, conhaque e rum – vodka estava entre elas, mas eu a abandonei, faz tempo, em parte por pressão da Paloma, em parte porque eu reconheci que a bebidas estava começando a me controlar…). Mas, em relação a livros, nem tento abandonar o vício. E, em geral, tenho um faro muito bom. Rarissimamente compro porcaria. E não vendo, não dou e não jogo fora os meus livros, mesmo as poucas porcarias que já comprei.
Para dar prova de meu bom faro…
Estou trabalhando meio obcecadamente na 5ª edição de meu livro História da Igreja Antiga. (Até a 4ª edição era “Breve História”. Na 5ª vou abandonar o “Breve” porque, simplesmente, o livro deixou de ser breve.) Pretendo lançar a nova edição até o fim do ano – para o que eu, naturalmente, preciso estar vivo até. Que Deus me ajude. A obsessão de lançar a nova edição me ajuda a cuidar um pouco melhor da minha vida, para que possa chegar ao meu objetivo.
Quanto à questão do faro…
Logo que cheguei aos EUA para estudar, em Setembro de 1967, minha atenção foi chamada para um livro, escrito por um judeu cristão (só isso já era razão para despertar minha atenção), Hugh J. Schonfield, publicado em capa dura em Setembro de 1966, e em brochura (paperback) em Setembro de 1967 – o mês que eu estava chegando lá. O título do livro era The Passover Plot: New Light on the History of Jesus [O Complô da Páscoa: Nova Luz sobre a História de Jesus]. Embora a edição de bolso custasse baratinho, cerca de um dólar, naqueles tempos em que não havia inflação no país de Tio Sam, eu não comprei o livro de pronto. Esperei até 5.3.1968 para fazê-lo. O livro estava fazendo um furor, encabeçando tudo que era lista de bestsellers, sendo incluído em Clubes do Livro, o autor era chamado para entrevistas na rádio e na televisão, etc. Li o livro e, mesmo para o meu espírito já liberado do fundamentalismo, foi de assustar. Assustei-me mais do que quando li “Neues Testament und Mythologie”, de Rudolf Bultmann, em 1965.
Aproveitando a fama do livro, Schonfield lançou um segundo, em Abril de 1968, com o título de Those Incredible Christians [Esses Incríveis Cristãos]. Também levei um ano para comprar, mas finalmente o comprei em 29.4.1969. O preço também era baratinho. O primeiro livro tratava basicamente do desenvolvimento do Cristianismo até a Guerra entre os Judeus e os Romanos de 66-74. O segundo tratava com o desenvolvimento do Cristianismo do ano 75 para frente, até por volta do ano 150.
Schonfield, que era um gênio para línguas, havia feito uma tradução do Novo Testamento, chamada The Authentic New Testament [O Autêntico Novo Testamento], que, segundo ele, era uma tradução teologicamente neutra, que se atinha estritamente ao texto, sem se preocupar que aquilo que o texto dizia pudesse vir a agradar ou a desagradar alguém, fossem os leitores cristãos, judeus, islâmicos, ou ateus. Essa tradução, publicada originalmente em 1955, foi relançada no final dos anos 60, para faturar em cima da febre causada pelos outros dois livros. Por ela, paguei 50 centavos de dólar. Há duas semanas descobri que a edição que eu tenho está esgotadíssima e que a Amazon está vendendo quatro exemplares usados, iguaizinhos ao meu, pela bagatela de quatro mil dólares cada um. Mais de vinte mil reais por um livrinho em brochura, que custou 50 centavos de dollar (digamos, três reais e uns quebradinhos), quando foi comprado — calculando-se o valor ao câmbio de hoje.
Estão entendendo quando eu falo de faro?
Mas li os dois primeiros livros mencionados, fiz anotações generosas, como sempre (meus livros são, quase todos eles, sublinhados e rabiscados) consultei a tradução autêntica do novo Testamento, algumas vezes, mas deixei os livros de lado. Esse abandono dos livros aconteceu por volta de 1970, quando terminei meu Mestrado e comecei meu Doutorado. Dali para frente abandonei meu interesse nos primórdios do Cristianismo para me concentrar em David Hume e o Século 18.
Por incrível que pareça, para escrever as quatro edições do livro que publiquei até hoje (todas elas em ebook pela Amazon), não me ocorreu recorrer a Schonfield. Mas como a 5ª edição contém um completo “overhaul” [revisão radical, restruturação] do livro (que terá perto de 500 páginas, mais de três vezes o tamanho da edição anterior), e lembrando do choque que os livros de Schonfield produziram em mim enquanto eu fazia o Mestrado no Pittsburgh Theological Seminary, fui buscá-los, estou lendo, não só os dois que eu tinha, mas comprei mais doze livros dele, ou sobre ele – todos eles no formato Kindle. Exagero? É, admito. Não nego que sou meio exagerado nessa área. Mas os livros de Schonfield estão me ajudando a tornar minha edição mais radical do que já estava – e já estava bem radical. Se eu estivesse vivendo no século 18, faria como Hume, que escreveu seu radical Dialogues Concerning Natural Religion [Diálogos Acerca da Religião Natural] e deixou os originais no armário, encarregando seu melhor amigo, Adam Smith (sim, ele, o economista liberal laissez-faire) que publicasse o texto apenas depois de sua morte. Hume sabia das coisas e era prudente.]
Fiquem atentos. De vez em quando vou publicar no Facebook algumas citações de Schonfield, para provocar os amigos mais tradicionais e conservadores… Amigos liberais (teologicamente falando), hoje em dia, não se escandalizam com nada…
Em Salto, 25 de Março de 25
Eduardo CHAVES (eduardo@chaves.space, caso você queira enviar uma notinha, em vez de fazer um comentário público).
Categories: Liberalism
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