Embora quase tudo o que sabemos acerca de Jesus tenha por base o Novo Testamento [i], e muita gente leia o Novo Testamento como se ele tivesse sido um jornal do dia, relatando eventos que acabaram de acontecer, e dos quais os autores foram testemunhas oculares, ou, pelo menos, jornalistas sérios, transmitindo com fidelidade, com base em fontes confiáveis, as notícias e os pronunciamentos do dia anterior, tendo como “Sitz im Leben”, “world view”, visão de mundo, cenário de referência, ou pano de fundo, o mundo e a época em que Jesus viveu, não é lícito ignorar ou esquecer que o Novo Testamento começou a ser escrito, e veio a ser completado, bem “depois de Jesus” ter vivido sua curta vida – e isso vale inclusive para os quatro Evangelhos que narram o que ele teria dito e feito.
Entre a morte de Jesus e o aparecimento daquele que é considerado o mais antigo dos Evangelhos integrantes do Novo Testamento, o atribuído a Marcos, pelo menos quarenta anos passaram – talvez algo mais próximo de cinquenta. E nesse longo intervalo surgiu Paulo, que apareceu em cena “depois de Jesus”, não conviveu com ele, nem o conheceu pessoalmente, e nem sequer o viu de longe. Nem mesmo quando Paulo teve sua famosa visão extática no caminho de Damasco ele chegou a ver Jesus, porque foi cegado no início dela, e nada viu, só ouvindo uma voz, que seus companheiros escutaram na forma de sons, não entendendo, porém, nada do que foi dito. Tudo o que Paulo veio a saber acerca de Jesus de Nazaré, que ele rebatizou de Jesus Cristo, lhe chegou “de segunda mão”, nada tendo sido presenciado pessoalmente por ele. Ele reivindica ter tido ainda outras visões, êxtases, subidas ao céu, descidas ao inferno – mas o historiador, no exercício de sua função, não pode levar a sério o que ele afirma ter recebido ou descoberto nessas experiências. Todas as sete cartas de Paulo, reconhecidas como autênticas pelos estudiosos, foram escritas na década de 50, bem antes do Evangelho de Marcos, que foi escrito depois do ano 74. E esses mesmos estudiosos reconhecem que as cartas genuínas de Paulo influenciaram, não só a Marcos, mas também a Mateus, Lucas, João e a todos os demais livros que foram escritos depois delas, e, possivelmente, até mesmo a Tradição Oral que subjaz aos Evangelhos. [ii]
Assim, SE Paulo não tivesse existido; ou SE ele não tivesse se convertido, tornando-se cristão, à sua moda; ou SE ele não tivesse vindo a ser um discípulo e apóstolo de Jesus, também à sua moda; ou SE ele não tivesse escrito suas sete cartas… Sem qualquer desses “SEs”, o movimento que foi iniciado por Jesus no início do segundo quarto da chamada Era Cristã (26 aD) provavelmente teria continuado a ser a seita judaica que era, o chamado Judaísmo Cristão, que oportunamente se expandiu e veio a ser conhecido como Cristianismo Gentio, a partir do ano 50 aD, e, em especial a partir de 75 aD, se tornou simplesmente Cristianismo – esse Cristianismo, repito, nunca teria existido.
Em Salto, 27 de Março de 2025
Preâmbulo meu à 5ª edição de meu livro História da Igreja Antiga: Dos Primórdios ao Fim do Império Romano no Ocidente, que, se Deus permitir, será publicado até o fim do ano. Eduardo CHAVES.
NOTAS
[i] Uma discussão sucinta, mas útil, de fontes externas ao Novo Testamento que mencionam Jesus de Nazaré pode ser encontrada no livro Zealot: The Life and Times of Jesus of Nazareth, de Reza Aslan (Random House, New York, 2014), pp. xxiv-xxv. Ele menciona basicamente Flavio Josefo. Outros autores, além de Flávio Josefo, mencionam o Cristianismo, sem fazer referência ao seu fundador, mas declinando o seu nome. Este é o caso de Tácito e Plínio, o mais jovem. Aslan observa: “O problema em tentar descrever o Jesus Histórico sem recorrer ao Novo Testamento está no fato de que não há quase nenhum traço do homem. [ . . . ] Para descrevê-lo temos basicamente que depender de informações que encontramos no Novo Testamento.” (Ênfases acrescentadas.)
[ii] Cp. Aslan, op.cit., pp. xxv-xxvi: “O primeiro testemunho escrito que temos acerca da existência de Jesus de Nazaré vem das epístolas de Paulo. [ . . . ] Aquela que é considerada a mais antiga das epístolas de Paulo, 1Tessalonicenses, provavelmente data de 48-50 (isto é, cerca de pelo menos duas décadas depois da morte de Jesus). O problema com os relatos deixados por Paulo, entretanto, está no fato de que ele demonstra uma extraordinária falta de interesse no Jesus Histórico. Em relação a este, só há três referências em Paulo: no contexto da Última Ceia (1Coríntios 11:23-26), da Crucificação (1Coríntios 2:2) e da Ressurreição (1Coríntios 15:14)” (loc.cit. Ênfases acrescentadas). Vide adiante, Nota 64, onde eu, diferentemente do que afirma Aslan, defendo a tese de que 1Tessalonicenses foi escrita depois, não antes, do Concílio de Jerusalém, ou seja, em algum momento nos anos 50-52. É digno de registro o fato de que, não fosse por 1Coríntios, não haveria nenhuma referência ao Jesus Histórico em Paulo, que, além dessas três (pressupondo que a Ressurreição seja uma referência ao Jesus Histórico e não ao Cristo da Fé), não faz nenhuma referência ao Jesus Histórico: nada sobre o que ele pregou (o Sermão da Montanha, as Bem-Aventuranças, a oração do Pai Nosso, a redução dos Dez Mandamentos a dois, amar a Deus e ao próximo, a afirmação contundente de que o Sábado foi criado para beneficiar o homem, sendo um momento de descanso, não para oprimi-lo, a lição que ele deu aos Fariseus, no caso da mulher flagrada em adultério, ao afirmar-lhes que só quem não tivesse pecado poderia se colocar na opinião de juiz da mulher e executor da pena, e deixando que ela fosse embora, sem que ele a condenasse, nada sobre o que ele ensinou ao recorrer às magníficas parábolas do Filho Pródigo, do Bom Samaritano, dos Talentos, nada sobre seus diálogos, como por exemplo, com o jovem rico, com Zaqueu. Na verdade, é plausível afirmar que a criação de um Cristo da Fé, distinto do Jesus Histórico, figura que seria o principal foco de interesse do Cristianismo pós-paulino, pode e, a meu ver, deve ser creditada exclusivamente a Paulo. Essa, que é uma tese bultmanniana, tem origem na Teologia Liberal do século 19, em especial em Ferdinand Christian Baur e Adolf von Harnack. Eis o que conclui Aslan (loc.cit.): “Paulo pode ser uma excelente fonte de informação para pessoas interessadas em como o Cristianismo veio a se constituir historicamente [como sistema teológico], mas é uma fonte bastante pobre para informações acerca do Jesus Histórico.” As considerações contidas nesta nota e na anterior fazem com que concluamos que, se desejarmos informações sobre o Jesus Histórico, temos de garimpar nos Evangelhos – mas sem perder de vista o fato de que os Evangelhos foram escritos depois de Paulo ter escrito todas as suas epístolas genuínas, inclusive as mais densas do ponto de vista teológico, como a carta aos Gátas, as duas cartas aos Coríntios e a Carta aos Romanos. Na verdade, os quatro Evangelhos e o livro de Atos foram escritos depois até de Paulo já estar morto (sua morte sendo geralmente colocada no ano 64-66, em Roma). A data geralmente atribuída para a composição de Marcos é posterior ao ano 74, Marcos tendo sido escrito depois da queda de Jerusalém, da destruição do Templo, e da expulsão dos Judeus da Palestina, com sua consequente Diáspora. Para a data de Marcos vide o sempre confiável padre católico Raymond Edward Brown, An Introduction to the New Testament (Yale University Press, New Haven, 1997, pp. 163-164. Como fiz referência a “epístolas genuínas” de Paulo, deixando implícito que haja epístolas atribuídas a Paulo que não foram escritas por ele, esclareço que considero as seguintes sete cartas genuínas (ou autênticas), pela provável ordem de composição: 1Tessalonicenses, Gálatas, Filemón, Filipenses, 1Coríntios, 2Coríntios e Romanos. Sigo, neste caso, a orientação da maior parte dos autores, em especial de Raymond Edward Brown, no livro que acabei de mencionar, pp. 407-421. O assunto vai voltar à tona adiante, na longa Nota 64.
Categories: Liberalism
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