O Que Significa Ser Cristão Hoje?

Acabei de encontrar na Amazon, e comprar, agora, dia 16.5.2024, às 3:45 da manhã (sic), um livro sobre o Cristianismo do tipo que eu vinha procurando há tempo, sem (até agora) encontrar, a saber, um livro com as seguintes características:

  • o autor, mesmo reconhecendo haver um tipo de Cristianismo específico que ele adota e defende, é capaz de discutir, de forma racional e civilizada, o tipo de Cristianismo que ele adota, mas o faz no contexto, ou a partir da perspectiva, do Cristianismo como um todo, incluindo, no escopo da discussão, todos os demais grupos que se consideram cristãos, ainda que vários desses grupos tenham sua identidade cristã questionada por boa parte, ou mesmo pela maioria absoluta, dos demais cristãos;
  • ou seja, o autor é plenamente capaz de apresentar, explicar e defender a sua identidade como cristão, sem achar que tem o direito, quanto mais o dever, de negar, a priori, a identidade cristã de quem quer que seja que se considere cristão de um tipo ou de uma forma diferente;
  • ou seja, o autor está convicto de que há, e é certo e legítimo que haja (visto que ninguém detém o copyright ou a patente da marca), vários tipos diferentes de Cristianismo, todos eles com igual direito de se reconhecer como ramos do Cristianismo, e que, ainda que ele ache sua “tribo” a melhor e a mais certa de todas, ele reconhece que não tem o direito, muito menos o dever, de negar que outros autores possam fazer o mesmo em relação às suas respectivas “tribos”, não precisando ser “espinafrados”, muito menos demonizados, por isso.

A maioria dos autores que eu leio, e das pessoas que eu encontro e com as quais converso, pensa e se comporta de maneira diferente, vendo o Cristianismo a partir de uma lente que tem uma abertura extremamente estreita, quase fechada.

 Dou um exemplo.

Um autor que tenho lido com certa frequência nos últimos tempos (e, confesso, até leio com prazer, em alguns momentos, porque ele é inteligente, escreve bem, e o faz de forma digna, respeitosa, elegante e até gentil) é John Gresham Machen, cujo principal livro tem o título de Christianity and Liberalism (Cristianismo e Liberalismo), publicado pela primeira vez em 1923. Para ele, o Liberalismo Teológico (ou a Teologia Liberal), em qualquer de suas vertentes, não é simplesmente um jeito de ver o Cristianismo, ou uma tendência cristã, dentro de várias possibilidades: o Liberalismo Teológico, para ele, simplesmente não é parte do Cristianismo: é uma outra religião (como o Zoroastrismo, o Budismo, o Hinduísmo, etc.). 

Eis o que ele afirma:

“Apesar do uso frequente da fraseologia tradicional, o liberalismo moderno não só é uma religião diferente do Cristianismo, mas pertence a uma classe totalmente diferente de religiões.” (John Gresham Machen, Christianity and Liberalism, 1923, Kindle Edition, Introduction, loc.118.) .

O Cristianismo, para ele, se limita apenas ao Protestantismo Reformado (Calvinista) Ortodoxo, na sua forma de entender a Ortodoxia (que é a única que ele considera verdadeira).

Punto y basta.

Por conseguinte, ele não considera cristãos não só os Liberais, mas também outros Protestantes, mesmo Conservadores, como Luteranos, Anglicanos, Menonitas, etc. Em relação aos Católicos Romanos e aos Ortodoxos Gregos ou Bizantinos, então, nem de longe cogita de levá-los em conta na discussão. Lembrando-nos dos grupos menores ou mais recentes, dentro do Protestantismo, ele negaria o direito de cidadania cristã aos Pentecostais, Metodistas, Adventistas, Mórmons, Testemunhas de Jeová, membros da Ciência Cristã (seguidores de Mary Baker Eddy, como Tom Cruise), Unificacionistas (seguidores do Rev. Moon), Quakers, Shakers, Amish, etc. De Unitários e Espíritas, etc. ele não quer nem ouvir falar.

Estou perfeitamente consciente de que serei acusado de estar exagerando na minha descrição do ponto de vista de Machen. Mas o que estou fazendo é levar as ideias dele às últimas consequências lógicas. Está lá no título do principal livro dele: Cristianismo é uma coisa, Liberalismo é outra. Os Liberais não são Cristãos Protestantes, Reformados, Calvinistas, Presbiterianos de Tendência Liberal: eles pertencem a uma Outra Religião, que pode até se parecer com a Religião Cristã (aquela que ele aceita, aquela em que ele acredita), mas não é parte dela.

Em um grau mais brando, irritam-me (com uma “irritação santa”) aqueles que, fazendo parte de uma Igreja Presbiteriana, e ainda que de uma forma quase inconsciente, não refletida, simplesmente não consideram cristãos, e, portanto, acham que precisam ser convertidos, os Católicos (eles obedecem ao Papa, veneram a Virgem Maria e os demais santos), ou os Pentecostais (eles falam em línguas estranhas), ou até mesmo os Batistas (eles não batizam crianças), etc.

O livro a que fiz referência no início é Orthodoxy and Heterodoxy: Finding the Way to Christ in a Complicated Religious Landscape, 2ª edição, revista (Ancient Faith Publishing, Chesterton, IN, 2017), de autoria de Andrew Stephen Damick. A 1ª edição, de 2011, tem um título diferente: Orthodoxy and Heterodoxy: Exploring Belief Systems Through the Lens of the Ancient Christian Faith. O autor do livro é Ortodoxo Grego (Bizantino). É essa a lente que ele usou na 1ª edição. Na 2ª edição, ele abriu bem a lente e discutiu todo mundo que se considera cristão (sem deixar de ser Grego Ortodoxo ou Bizantino).

[Abro um Parêntese. A propósito, em Julho de 2023, visitando o distrito de Eduardo Chaves (sic), na cidade de Prudentópolis, no Paraná, que é, por assim dizer, a capital dos ucranianos e descendentes de ucranianos que moram no Brasil, descobri que a Igreja Cristã Ucraniana é Católica, no sentido de reconhecer a autoridade do Papa, mas “segue o Rito Bizantino”, no sentido de ter sua teologia e seu culto mais alinhados com os da Igreja Ortodoxa Grega – ou dita Grega, pois hoje é mais Russa do que Grega. Apesar de tudo o que os Comunistas fizeram para acabar com ela. Minha solidariedade aos meus irmãos ucranianos, em especial aos de Eduardo Chaves. Fim do Parêntese.]

Por que isso que eu disse atrás, desde o início, importa?

Começo com uma razão meio boba. Um dos crentes mais fiéis que havia na igreja em que meu pai era pastor (Igreja Presbiteriana de Santo André) não tinha direito de tomar a Santa Ceia (segundo o meu pai), apesar do dito cujo ser membro regular da igreja, pagar dízimo (pequeno, porque era pobre), porque ele não era casado com a mulher com quem ele vivia – embora vivesse com ela há cerca de vinte anos (na época) e com ela tivesse nada menos do que dez filhos. A razão de ele não poder se casar com a mulher com a qual vivia era que, sendo casado (com outra), ele havia vindo do Pernambuco para São Paulo, foi ficando por aqui, encontrou essa mulher, tentou achar a dele, para se separar (não havia divórcio ainda no Brasil), mas ela havia desaparecido do mapa.

Dou outra razão, mais boba ainda. Ouvi de um pastor presbiteriano que ele foi convidado a pregar numa Igreja Batista e, na hora da Santa Ceia, o pastor batista lhe explicou que, ali naquela igreja, só Batistas que fossem membros daquela igreja podiam participar da Ceia. Pregar para eles, o pastor visitante podia. Beber um calicezinho de suco de uva aguado e um pedacinho de pão sem gosto, não…

Dou outra razão, mais séria. Há presbiterianos que acham lindos os hinos cantados pelo Mormon Tabernacle Choir, mas não os consideram cristãos, porque, além da Bíblia eles aceitam o Livro dos Mórmons, no passado eles defendiam a poligamia, etc. Esquecem-se de que eles, presbiterianos, também aceitam, além da Bíblia, a Confissão de Fé de Westminster e até mesmo (sem entender bulhufas) as Institutas da Religião Cristã do (quase escrevi sanguinário) reformador João Calvino…

Dou ainda outra razão… Há gente que acredita em Deus (o chamado Deus Pai), mas não acredita que Jesus Cristo seja Deus (em tudo igual ao dito Pai). Mas aceitam que Jesus é um ser humano diferenciado, um grande mestre, talvez até um profeta – até mesmo ser divino, em algum sentido do termo, mas não igual ao Deus, dito Pai, todo-poderoso, criador do céu e da terra, etc. A maioria dos cristãos não acha que é possível ser um Cristão Unitarista (que não acredita na Trindade) e, por isso, não considera os Unitaristas cristãos – ou cristãos “de verdade”.

Dou mais uma razão, a última. Há muita gente que acredita que este nosso universo não apareceu por acaso, mas foi, de alguma forma, criado por um ser inteligente, que produziu tudo que existe, colocou tudo isso a funcionar, segundo leis por ele criadas, e agora fica apenas garantindo que tudo funcione direitinho, a maior parte do tempo (não sendo responsável pelas coisas que acontecem porque a gente cuida muito mal deste nosso mundo). Esse ser (Deus) se revela através do mundo que ele criou. Não deixou revelação falada ou escrita nenhuma, não conversa com ninguém, não ouve oração, não se deixa influenciar pelo que queremos e pedimos, não interfere no curso dos eventos, fazendo milagres, não tem plano específico nenhum para a nossa vida, além de que vivamos segundo a lei natural que rege, não só o comportamento das coisas inanimadas, mas, também, deve reger a nossa conduta, isto é, a conduta dos seres racionais que ele criou dentro do pacote mais amplo da criação do universo. Esse ponto de vista se chama Deísmo, que sempre existiu, muito antes de Jesus de Nazaré ter nascido, provavelmente lá em Nazaré. Mas se tornou um ponto de vista bem elaborado no século 18, com os Deístas Britânicos – que, diga-se de passagem, se consideravam cristãos. Um deles, Mathew Tindal, escreveu um livro, publicado em 1730, chamado Christianity as Old as the Creation (O Cristianismo É Tão Antigo Quanto a Criação): é equivalente à Religião Natural. O Rubem Alves, meu querido amigo, um dia disse que se considerava um Deísta. A maioria dos Pais da Nação Americana, como Thomas Jefferson, Benjamin Franklin, etc. era Deísta. Mas a maioria absoluta dos cristãos de hoje não considera que um Deísta que acredita no que eu resumi, e que, por cima, considera Jesus, ao lado de Sócrates, Buda, Confúcio, etc., um dos maiores mestres que a raça humana já teve, seja cristão.

Eu acho isso tudo uma lástima. E não tenho dúvida acerca de quem sai perdendo com essa lente de abertura fechadíssima.

E depois há gente que fica se perguntando por que há tanta gente que se diz cristã mas também prefere se tornar desigrejada. Ou que acha que a principal Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos perdeu quase metade dos seus membros nos últimos cinquenta anos, algo assim, porque ela é liberal demais (aceita pastores gays, por exemplo), e não porque ela seja liberal de menos… Ler, hoje em dia, aqui no Brasil, as discussões no Facebook dos calvinistas radicais neopuritanos contra o resto dos cristãos (eles não criticam os ateus, agnósticos, céticos: criticam outros cristãos) dá nojo. De igual forma, ler os que os seus críticos falam de um pastor inteligente e dedicado como Ed René Kivitz também dá nojo. 

Cada um tem direito de ser cristão do jeito que acha que deve. Ou até mesmo de não ser cristão, ou de não se reconhecer como cristão. É legítimo, para quem queira, e, para tanto, se julgue qualificado, explicar o que ele é, em termos de religião, no que acredita, ou não acredita, e como prefere ser reconhecido. E é perfeitamente possível, e, muitas vezes, desejável, criticar as opções dos outros – mas é indispensável fazer isso de forma digna e respeitosa. E, em relação aos outros, que optam por se considerar cristãos de uma forma diferente daquela que nós escolhemos, é indispensável que isso seja considerado normal e que a questão seja tratada de forma natural, digna e respeitosa, como o faz Andrew Stephen Damick, o autor do livro que mencionei no início.

Em Salto, 16 de maio de 2024



Categories: Liberalism

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