O Cristianismo Tem uma Visão Única do Casamento? A Propósito das Ideias e da Vida de C S Lewis

Conteúdo

  1. Preâmbulo.
  2. O que C S Lewis diz acerca do Sexo e do Casamento
  3. A Vida de C S Lewis lhe Prega uma Peça

1. Preâmbulo

Meu interesse neste artigo está mais na biografia de C S Lewis — suas ideias e sua vida — do que na questão de como o cristianismo, em especial o protestantismo, encara o casamento. Em suma: neste artigo estou, aqui, mais interessado no subtítulo do que no título que dei ao artigo.

Já discuti a questão de diferentes visões do casamento dentro do cristianismo, em geral, e do protestantismo, em particular, abordando quase todas as questões que lhe são conexas, como poligamia, monogamia, divórcio, sexo, virgindade, celibato clerical, casamento entre pessoas do mesmo sexo, incesto, o que hoje se chama de poliamor, etc., em vários artigos no meu blog Liberal Space. O leitor interessado no que penso sobre o assunto pode consultar alguns desses artigos que a seguir listo, em ordem cronológica:

Tenho ainda um artigo sobre C S Lewis, que não menciona suas ideias sobre o casamento nem o fato de seu casamento tardio, que pode ser consultado por quem não está muito certo acerca de quem foi o homem:

Recentemente (dois dias atrás, antes de escrever este artigo), publiquei um outro artigo sobre C S Lewis, este no meu blog “carro chefe”, Chaves Space, que é, entre outras coisas, um blog meio autobiográfico:

2. O que C S Lewis diz acerca do Sexo e do Casamento

É virtualmente impossível discutir casamento sem discutir sexo. Vou me limitar aqui a resumir o que C S Lewis afirma sobre sexo e casamento, da perspectiva da moral cristã, em Mere Christianity (Cristianismo Puro e Simples, anteriormente A Razão do Cristianismo, em Português), seu livro de não ficção mais famoso, que consiste, basicamente, da edição de uma série de falas pelo rádio que C S Lewis transmitiu, durante a Segunda Guerra, a convite da emissora, pela BBC, de 1942 a 1944, visando, em especial, as tropas britânicas em guerra no Continente Europeu. Revisadas e ampliadas, elas foram inicialmente publicadas em três livros, um por ano, e, posteriormente, em 1952, em um só volume com o título que ficou famoso e consagrou o autor como um dos maiores apologetas do cristianismo no século 20.

Nos Capítulos 5 e 6 do Livro III desse seu best seller, que têm como títulos, respectivamente, “Moralidade Sexual” e “O Casamento Cristão”, Lewis discute sexo e casamento a partir daquela que ele entende como a perspectiva cristã. O Livro III de Cristianismo Puro e Simples tem como título “O Comportamento Cristão” (“A Conduta Cristã”, na tradução brasileira publicada pela Martins Fontes, 3a edição, 2009; citações e referências segundo essa edição).

Embora C S Lewis tenha sido, depois do período em que foi ateu, membro da Igreja Anglicana, que é uma igreja até certo ponto fruto da Reforma Protestante, o ponto de vista de Lewis acerca do sexo e do casamento, é, em alguns aspectos, mais semelhante ao ponto de vista da igreja católica do que do ponto de vista das igrejas protestantes, “s’il y en a” — isto é, se é que há um único ponto de vista que possa ser caracterizado como sendo das igrejas protestantes, como um bloco.

a. A Moralidade Sexual Cristã

A moralidade sexual cristã é discutida por Lewis a partir da perspectiva da virtude da castidade (virtude essa que, reconhece ele, “é a menos popular das virtudes cristãs” – p.126). No entender dele, essa virtude, em sua essência, prescreve, no tocante ao sexo, a seguinte regra de conduta: “Ou relações sexuais dentro do casamento, com fidelidade completa ao cônjuge, ou, então, total abstinência” (p.126; alterei aqui, levemente, o texto da tradução e acrescentei o negrito). Tertium non datur — não existe outra opção. Assim, não há como o cristão possa escapar dessa alternativa.

Mas, é forçoso reconhecer, e Lewis o reconhece, essa regra conflita com os impulsos, apetites e desejos sexuais da maioria das pessoas. Diante disso, ele se vê levado a construir mais esta alternativa: ou o cristianismo está totalmente errado em relação a essa questão, ou nossos impulsos, apetites e desejos sexuais estão seriamente corrompidos e deturpados. Ele, naturalmente, como cristão, não acredita que a primeira opção seja verdadeira: logo, aceita a segunda (p.126).

Para Lewis, a sexualidade humana existe para que nós, humanos, possamos nos reproduzir e, assim, dar continuidade à espécie, povoando a terra: “o objetivo biológico do sexo são os filhos”, diz ele (p.126). Segundo ele acredita, no plano biológico não haveria nenhuma outra razão para a existência de nossa sexualidade. A obtenção de prazer não faz parte da razão de ser do sexo, se este é visto do ângulo exclusivamente biológico — mesmo que o prazer em regra acompanhe o ato sexual.

Na visão de Lewis, não há nada de errado ou imoral nessa forma sexuada de reproduzir a espécie humana, nem no prazer que os seres humanos em geral sentem ao praticar o ato sexual. Diz ele:

“Bem sei que que alguns cristãos de mente tacanha dizem por aí que o cristianismo julga o sexo, o corpo e o prazer como coisas intrinsecamente más. Mas estão errados. O cristianismo é praticamente a única entre as grandes religiões que aprova por completo o corpo. [ … ] O cristianismo exaltou o casamento mais que qualquer outra religião.  Se alguém disser que o sexo, em si, é algo mau, o cristianismo refuta essa afirmativa instantaneamente.” (p.130).

Mas isso não quer dizer que tudo esteja em ordem com os nossos impulsos, apetites e desejos sexuais. Eles existem, é forçoso reconhecer, mas sua concretização precisa ser controlada e disciplinada: o atendimento deles precisa ser regrado, isto é, submetido a regras. A razão pela qual nossos impulsos, apetites e desejos sexuais precisam ser controlados está no fato de que eles foram corrompidos e pervertidos pelo pecado original de nossos primeiros pais. Para que possamos ser curados do pecado que o atendimento desregrado de nossos impulsos, apetites e desejos sexuais provoca é preciso, em primeiro lugar e acima de tudo, que queiramos ser curados. No entanto, “para o homem moderno até mesmo esse desejo [de querer ser curado] é difícil de ter”. (pp.130-131).

A dificuldade em resistir à tentação de uma vida sexual desregrada, ou em tentar ser curado dela, caso já tenhamos a ela sucumbido, se explica de várias maneiras.

Em primeiro lugar, porque tendo nossa natureza sido corrompida pela queda, a publicidade e a propaganda modernas, que certamente não duvidam disso, apelam para a nossa natureza pervertida, tentando nos convencer de que é a resistência aos nossos impulsos, apetites e desejos sexuais que representa uma anomalia — e não os impulsos, apetites e desejos, em si… (pp.131-132). Essa tese é falsa, segundo Lewis — embora parta de uma verdade. A verdade é que o sexo, em si, praticado como deve ser praticado, dentro da regra da castidade cristã, é algo bom. Contudo, praticado fora dessa regra, o sexo se torna pervertido e anômalo. Qualquer ato sexual que não esteja coberto pela regra de castidade é pecaminoso. Para ele, não há como fugir disso. Ao sugerir que todo impulso, apetite e desejo sexual deve ser satisfeito, porque sua não satisfação é danosa à nossa saúde mental, e, assim, à nossa natureza humana, a publicidade e a propaganda modernas invertem as coisas. O que é danoso à nossa natureza humana é, segundo Lewis, o sexo desregrado.

Em segundo lugar, é difícil querer ser controlado nessa área porque fomos levados a acreditar, erroneamente, que o ideal cristão da castidade é inalcançável, posto que utópico, estando acima das forças humanas (p.133). Lewis reconhece que a “castidade perfeita”, assim como a “caridade perfeita”, “não será alcançada pelo mero esforço humano”, sem a ajuda divina. O fato de ser necessária a ajuda de Deus para alcançar o ideal cristão da castidade não deve de modo algum levar as pessoas ao desânimo, provocar o abandono do ideal, fazendo com que se acomodem “com qualquer coisa que não a perfeição” (pp.133-134). Para ele, a verdade é que o ser humano é capaz de prodígios quando seriamente decide e tenta fazer aquilo que Deus prescreve e espera dele (p.134).

Em terceiro lugar, a cultura moderna, especialmente a incorporada em algumas tendências psicológicas, pretende combater formas repressivas de vida e acusa o cristianismo de reprimir a vida sexual das pessoas que optam por segui-lo. Segundo Lewis, há um engano nesse entendimento da repressão. Reprime-se algo, como um pensamento ou uma conduta, quando se tenta esconder esse algo no fundo do inconsciente (ou subconsciente), negando a sua ocorrência ou existência, e, assim, fazendo com que aquilo cuja ocorrência ou existência foi negada possa reaparecer de uma outra forma, com uma feição diferente. Reconhecer a ocorrência ou existência de um impulso, apetite ou desejo pecaminoso, e livre e conscientemente decidir resistir a ele, não sucumbindo ao que ele tenta nos induzir a fazer, nada tem de repressão. Muito pelo contrário: é um exercício exemplar de nosso livre arbítrio. É isso que afirma Lewis (pp.145-135).

Lewis termina esse capítulo com uma passagem lapidar, que, a seu ver, coloca as coisas em perspectiva:

“Para encerrar, apesar de eu ter falado bastante a respeito do sexo, quero deixar tão claro quanto possível que o centro da moralidade cristã não está aí. Se alguém pensa que os cristãos consideram a falta de castidade o vício supremo, essa pessoa está redondamente enganada. Os pecados da carne são maus, mas, dos pecados, são os menos graves. Todos os prazeres mais terríveis são de natureza puramente espiritual: o prazer de provar que o próximo está errado, de tiranizar, de tratar os outros com desdém e superioridade, de estragar o prazer, de difamar. São os prazeres do poder e do ódio. Isso porque existem duas coisas dentro de mim que competem com o ser humano em que devo tentar me tornar. São elas o ser animal e o ser diabólico. O diabólico é o pior dos dois. É por isso que um moralista frio e pretensamente virtuoso que vai regularmente à igreja pode estar bem mais perto do inferno que uma prostituta. É claro, porém, que é melhor não ser nenhum dos dois.” (pp.135-136).

b. O Casamento Cristão

Coerente com essa visão da moral sexual cristã, Lewis vê o casamento cristão, instituído, segundo ele acredita, pelo próprio Deus, na criação do homem, como tendo a finalidade de permitir que os seres humanos procriem, de forma regrada, assim se multiplicando e povoando a terra. É por isso que, para ele, o único lugar correto da atividade sexual humana, no cristianismo, é a instituição do casamento (p.137).

Lewis reconhece que essa visão é, hoje, e, talvez sempre tenha sido, “extremamente impopular”. Reconhece ainda que, não sendo casado na ocasião em que escreveu o livro, não discorria sobre o assunto por experiência própria. Mas alegou que esse fato não o impedia de discutir a questão (p.137).

Afirma ele que a Bíblia, ao afirmar que, no casamento, o homem e a mulher se tornam uma só carne, quis sublinhar o fato de que o casal se torna como se fosse um só organismo, com duas metades. Diz ele:

“O inventor da máquina humana queria nos dizer que as duas metades desta, o macho e a fêmea, foram feitas para combinar-se aos pares, não simplesmente na esfera sexual, mas em todas as esferas. A monstruosidade da relação sexual fora do casamento é que, cedendo a ela, tenta-se isolar um tipo de união (a sexual) de todos os outros tipos de união que deveriam acompanhá-la para compor a união total. A atitude cristã não toma como errada a existência de prazer no sexo, como não considera errado o prazer que temos quando nos alimentamos. O erro está em querer isolar esse prazer e tentar buscá-lo por si mesmo.” (p.138).

Embora não seja óbvia a inferência, Lewis conclui, dessas considerações, que o casamento cristão “deve durar a vida toda”, não admitindo o divórcio. Reconhece ele, ao afirmar isso, que existem divergências entre as igrejas cristãs em relação a essa questão. Diz ele:

“Algumas [igrejas cristãs] não admitem o divórcio em hipótese alguma; outras o admitem com relutância em casos específicos. É uma grande lástima que os cristãos divirjam quanto a essa questão; para um leigo, porém, o fato a notar é que, no que diz respeito ao casamento, todas as igrejas concordam muito mais umas com as outras do que concordam com o que vem do mundo exterior. Todas encaram o divórcio como se fosse algo que cortasse ao meio um organismo vivo, como um tipo de cirurgia. Algumas acham que essa cirurgia é tão violenta que não deve ser feita de forma alguma. Outras a admitem como um recurso desesperado em casos extremos. [ … ] O que todas elas repudiam é a visão moderna de que o divórcio é simplesmente um reajustamento de parceiros, a ser feito sempre que as pessoas não se sentem mais apaixonadas uma pela outra, ou quando uma delas se apaixona por outra pessoa.” (pp.138-139).

A principal razão que Lewis invoca para negar que, na visão cristã, o divórcio seja uma possibilidade na situação em que, não só a paixão inicial, mas o próprio amor deixa de existir, é que, quando o casamento cristão tem lugar, os nubentes se prometem ficar juntos, quaisquer que sejam as circunstâncias, “até que a morte os separe”. Essa promessa dá, ao casamento cristão, na opinião de Lewis, uma dimensão jurídica, que, na hipótese de um divórcio desejado unilateralmente, por apenas uma das partes, criaria uma injustiça para com a outra parte. O argumento de Lewis, porém, não parece provar que uma promessa feita entre duas pessoas de ficar juntas até que a morte as separe não possa ser rescindida ou revogada, vale dizer, desfeita, de comum acordo entre as partes, sem que haja injustiça para com uma delas — a menos, talvez, que se revista o casamento cristão de um caráter sacramental adicional, como o faz a Igreja Católica (mas não as igrejas protestantes), que torna o casamento  mais do que um contrato entre os nubentes, transformando-o em um pacto transcendente que envolve os dois e Deus, este representado pela igreja, na pessoa do sacerdote que oficia o casamento.

Enfim, como se mostrará no capítulo seguinte, anos depois C S Lewis veio a se tornar vítima de seu próprio argumento, quando solicitou que a sua igreja, a igreja anglicana, realizasse o seu casamento com uma mulher divorciada.

Para concluir este capítulo, mais dois elementos interessante na posição de C S Lewis.

O primeiro elemento diz respeito à sua proposta de que haja, num país que não é oficial ou majoritariamente cristão, dois tipos de casamento. Diz ele:

“Antes de deixar a questão do divórcio, gostaria de esclarecer a distinção entre duas coisas que geralmente se confundem. Uma delas é a concepção cristã de casamento; a outra, completamente diferente, é se os cristãos, enquanto eleitores ou membros do Parlamento, devem impor sua visão do casamento sobre o restante da comunidade, incorporando essa visão às leis estatais que regem o divórcio. Um grande número de pessoas parece pensar que, se você é cristão, deve tentar tornar o divórcio difícil para todo o mundo. Eu não penso assim. Pelo menos creio que ficaria bastante zangado se os muçulmanos tentassem proibir que o restante da população tomasse vinho. Minha opinião é que as igrejas devem reconhecer francamente que a maioria dos britânicos não são cristãos, e, portanto, que não se deve esperar que levem uma vida cristã. Deve haver dois tipos distintos de casamento: um governado pelo Estado, com regras aplicáveis a todos os cidadãos, e outro governado pela igreja, com regras que ela mesma aplica a seus membros. A distinção entre os dois tipos deve ser bastante nítida, de tal forma que se saiba sem sombra de dúvida quais casais são casados pela igreja e quais não.” (p.148).

Concordo 100% com C S Lewis em relação a essa questão. Em dois dos artigos mencionados no Preâmbulo (Capítulo 1), defendo exatamente o mesmo ponto de vista. Os artigos são estes, e eles defendem um ponto de vista bem mais radical do que o C S Lewis:

Mas C S Lewis foi severamente criticado, até por grandes amigos seus, como J R R Tolkien, autor de Lord of the Rings (Senhor dos Anéis), por defender a ideia de um “duplo casamento”. Vide, a propósito, o artigo “Why C.S. Lewis Was Wrong on Marriage (and J.R.R. Tolkien Was Right)”, de Jake Meador, em Mere Orthodoxy (interessante o nome do site…), no endereço https://mereorthodoxy.com/why-c-s-lewis-is-wrong-on-marriage/.

O segundo elemento tem que ver com sua defesa de que o casal casado pela igreja deva ter uma “cabeça”, ou chefia, ou liderança, alguém que decide quando os dois discordam, e que esse cabeça deva ser o homem. Diz ele:

“(1) Por que a necessidade de uma ‘cabeça’ – por que não a igualdade? [ … ] Na medida em que o marido e a esposa estão de acordo, a necessidade de um líder desaparece; e gostaríamos que esse fosse o estado de coisas normal no casamento cristão. Mas, quando existe um desacordo real, o que se deve fazer? Conversar sobre o assunto, é claro; estou partindo da ideia de que tentaram fazer isso e mesmo assim não conseguiram chegar a um acordo. O que fazer então? O casal não pode decidir por votação, pois não existe maioria absoluta entre duas pessoas. [ … ] Se o casamento é permanente, [como é o caso do casamento cristão,] uma das duas partes deve, em última instância, ter o poder de decidir a política familiar.” (p.149).

“(2) Por que a ‘cabeça’ deve ser o homem?” (p.149). “As esposas cristãs fazem o voto de obedecer ao marido.” (p.148). “Deve haver algo de antinatural na proeminência das esposas sobre os maridos, pois as próprias esposas ficam bastante envergonhadas disso e desprezam o marido que se submete. [ … ] As relações da família com o mundo exterior — o que poderíamos chamar de política externa — devem depender, em última análise, do homem, porque ele deve ser, e normalmente é, mais justo em relação às pessoas de fora. A mulher luta prioritariamente pelos filhos e pelo marido contra o resto do mundo. [ … ] A mulher é a curadora especial dos interesses da família. A função do marido é garantir que essa predisposição natural da mulher não chegue a predominar. Ele tem a última palavra para proteger as outras pessoas do intenso patriotismo familiar da esposa.” (pp.149-150).

Sem comentários, a não ser um que nada tem que ver com a questão do casamento cristão, em si, mas, sim, com a questão da hermenêutica, ou seja, da interpretação bíblica.

C S Lewis é razoavelmente coerente em sua interpretação da Bíblia. No geral, o Novo Testamento, Jesus, nos Evangelhos, e Paulo, na primeira carta aos Coríntios, é contra o divórcio, mas reconhece que às vezes ele é virtualmente inevitável (como no caso de adultério, por exemplo). Paulo, em particular, ao admitir a possibilidade do divórcio, é contra um outro casamento. Muitos cristãos conservadores, dentro e fora do protestantismo, concordam com Paulo e com C S Lewis a esse respeito, apelando para o texto bíblico. Mas quando se trata de a mulher obedecer ao marido, que seria o cabeça do casal, algo que está contido no mesmíssimo Novo Testamento, boa parte dessas pessoas refuga, mesmo sendo conservadora — em especial, no caso das mulheres. Por que dois pesos e duas medidas? Por que aceitar a oposição ao divórcio e recusar-se a aceitar a submissão ao marido, se ambas as posições têm fundamentação bíblica? C S Lewis é coerente, e usa um só peso e uma só medida. Mas é criticado por fazer isso, em geral pelas mulheres.

3. A Vida de C S Lewis lhe Prega uma Peça

Para quem já leu alguma biografia de C S Lewis, e há inúmeras, ou para quem já assistiu ao belíssimo filme Shadowlands, que conta um pedaço de sua vida, o período em que ele ficou conhecendo a escritora judia americana Joy Davidman Gresham, e, oportunamente, se apaixonou por ela e com ela se casou, já imagina a questão que vou levantar aqui, de forma sucinta.

Quando Lewis começou a se corresponder com Joy, no início do ano de 1950, por iniciativa dela (ele recebeu a primeira carta dela em 10.1.1950), ele ficou bastante impressionado com ela, e ela ainda mais com ele, cujos livros haviam sido o principal instrumento de sua conversão ao cristianismo, depois de perambular pelo comunismo e pelo ateísmo. A conversa entre os dois evoluiu bastante e rapidamente (Lewis era um compulsivo escrevedor de cartas), e Joy trocava ideias com ele sobre um livro que estava escrevendo sobre o Sermão da Montanha. Ela, que tinha dois filhos com menos de dez anos, e estava tendo dificuldades em seu casamento (o marido, também escritor, era alcoólatra, dado a violência, chegado ao abuso verbal, e contumaz mulherengo), num dado momento resolveu ir visitar Lewis em Oxford. Em Agosto de 1952 ela viajou de navio para a Inglaterra, onde chegou no final do verão europeu. Encontraram-se pela primeira vez em 24.9.1952, para um almoço outonal. Nos mais de três meses que ela permaneceu na Inglaterra, eles se encontraram amiúde, tendo ela até mesmo sido hóspede em sua residência durante quinze dias no período das festas de fim de ano. (Registre-se que ela havia deixado os filhos em Nova York, com uma parente que se dispôs a ficar em sua casa cuidando deles para ela). No final de 1952, enquanto gozava da hospitalidade de Lewis, Joy recebeu uma carta do marido pedindo divórcio, por ter se apaixonado pela parente de Joy, que cuidava dos seus filhos. Isso precipitou o retorno de Joy para os Estados Unidos, no início de Janeiro de 1953. O divórcio foi levado adiante, mas se arrastou. Antes de ser concedido, Joy, em Novembro daquele ano de 1953, voltou para a Inglaterra, passando a morar em Londres, agora com os dois filhos, David e Douglas, que tinham, respectivamente, nove e oito anos, tendo nascido em 1944 e 1945. Joy tinha 38 anos na ocasião (nasceu em Abril de 1915) e Lewis completou 55 naquele mês de Novembro (nasceu em 1898).

O inevitável aconteceu. Joy ficou apaixonada por Lewis, que, no entanto, embora muito interessado nela como parceira intelectual, tinha por ela, segundo tudo indica, apenas uma grande admiração e um afeto platônico. Em Agosto de 1954 o divórcio dela foi consumado. A situação econômica dela na Inglaterra se deteriorou, porque o ex-marido deixou de pagar pensão para os filhos, e Lewis precisou socorrê-la, alugando uma casa para ela em Oxford. Provavelmente o relacionamento continuaria no mesmo pé se o visto de Joy não estivesse por expirar. Ela teria de voltar para os Estados Unidos, a menos que se casasse com um britânico. Lewis resolveu se casar com ela, apenas no papel, e em segredo, em um gesto humanitário, para que ela pudesse permanecer na Inglaterra com os filhos, como desejava. O casamento secreto aconteceu em 23 de abril de 1956.

Mas o destino, mestre em dar nós, interveio… Ou, quem sabe, tenha sido a providência divina, agindo, de forma misteriosa, para frustrar a ortodoxia humana… Em Outubro daquele ano, seis meses depois do casamento secreto, Joy descobriu que estava com câncer, já em estado avançado. Aparentemente o câncer havia surgido no seio, mas se espalhou para o sistema ósseo e evoluiu rapidamente, a ponto de os médicos lhe darem pouco tempo de vida. Esse fato chocou Lewis, que, traumatizado, diante da possibilidade de ela vir a falecer em pouco tempo, resolveu se casar com ela para valer, com a bênção da igreja anglicana e tudo.

Nesse ponto começou o drama que colocou a vida de Lewis em conflito com o que ele havia escrito em 1943 sobre o casamento cristão e o divórcio… Lewis consultou o bispo de sua região se poderia receber autorização para se casar com Joy, uma divorciada, e a permissão foi negada. Lewis se viu obrigado a argumentar, casuisticamente, que o casamento anterior de Joy não podia, à luz da doutrina da igreja, ser considerado válido, porque seu primeiro marido já era divorciado quando ela se casou com ele. Se a Igreja Anglicana não reconhecia a validade de casamentos em que pelo menos um dos “casantes” era divorciado, o casamento anterior dela era claramente inválido e, por conseguinte, ela poderia se casar com Lewis… O argumento, apesar de logicamente bem construído, não convenceu o bispo. Lewis, diante da iminência da morte de Joy, recorreu a um pastor anglicano que havia sido seu aluno e que se deixou persuadir pela sua lógica…  Em 21 de Março de 1957, cerca de onze meses depois do casamento civil, realizou-se o casamento cristão de Lewis e Joy, em pleno hospital em que ela estava internada, e à revelia de seu bispo. No dia seguinte o mundo que admirava Lewis ficou chocado com um breve comunicado do casamento no jornal.

Em Abril, os médicos liberaram Joy da internação para que pudesse morrer em casa, ao lado do marido e dos filhos. Ela se mudou para a casa de Lewis, adaptada, rapidamente, para recebê-la. E daí o que Lewis considerou um milagre aconteceu. Ele vinha orando para que Deus pelo menos aliviasse a dor de Joy, ainda que fosse necessário transferi-la para ele. E, como se a vida imitasse a arte, ele começou a sofrer dores terríveis nas pernas (local mais severamente atingido pelo câncer de Joy), diagnosticadas como decorrentes de osteoporose, e ela começou a melhorar, contra todas as expectativas médicas! Em Dezembro daquele ano ela conseguiu até mesmo a voltar a andar… Em Junho de 1958 os médicos declararam que a progressão do câncer havia sido interrompida e Lewis e Joy puderam até mesmo, e finalmente, ter sua viagem de lua-de-mel para a Irlanda, terra natal de Lewis. Mas em Outubro de 1959 o câncer retornou com violência e em 13 de Julho de 1960 ela faleceu, deixando a vida de Lewis em crise — não só pelo sofrimento de sua perda mas também em decorrência de sua própria doença, que não o abandonou…

Lewis veio a falecer um pouco mais de três anos depois de Joy, em 22 de Novembro de 1963, dia em que o Presidente John F. Kennedy, e o escritor G. K. Chesterton, este um amigo e colega de Lewis, também faleceram. Os filhos de Joy já tinham 19 e 18 anos, respectivamente, na ocasião. O mais novo acompanhou Lewis até o fim da vida dele e escreveu uma história do relacionamento de sua mãe com Lewis e uma biografia de Lewis.

[Os dados sobre as datas dos acontecimentos retirei da Cronologia da Vida de C S Lewis, contida no livro C. S. Lewis: Companion & Guide, de Walter Hooper, que também é coautor de uma biografia de Lewis. Os títulos dos livros de Douglas Gresham são Lenten Lands: My Childhood with Joy Davidson and C. S. Lewis (de 1988) e Jack’s Life: The Life Story of C. S. Lewis (de 2005; Jack era o apelido pelo qual C S Lewis era chamado por todos os seus amigos).

Se o leitor está com lágrimas nos olhos, não deixe de ver Shadowlands. Vai chorar ainda mais diante das brilhantes e comoventes interpretações de Anthony Hopkins e Debra Winger.

Ironias do destino. Como diz Jake Meador no artigo já citado, será difícil encontrar um caso mais apto e pungente em que a vida obrigou um grande autor a engolir algumas das coisas que havia escrito.

Em Salto, 20 de Junho de 2020 – dia em que começa o inverno no Brasil e o verão, na terra que foi de C S Lewis.



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