A Independência dos EUA e a Frustrada Independência do Brasil no Século 18

A história dos Estados Unidos nos oferece um conjunto de ideias interessantes que mostram importantes diferenças entre aquela nação e a nossa… Essas ideias têm muito que ver com o Liberalismo (Clássico), em especial na forma que lhe deu John Locke.

De anteontem para hoje deparei-me com alguns livros que me reforçam o contraste entre os esforços de busca da Independência do país do Norte, que veio a se chamar Estados Unidos da América (EUA), e do nosso país, que por um tempo se chamou Estados Unidos do Brazil.

1. A Independência e a Constituição dos EUA

Em meados do século 18 havia treze Colônias Inglesas na América do Norte. Todas elas ficavam no Leste do território que veio a se tornar os EUA e todas elas foram fundadas e implantadas a partir de 1607 — ou seja, mais de cem anos depois da chegada dos portugueses ao Brasil.

Eram elas, em ordem mais ou menos geográfica, do Norte ao Sul, com as respectivas datas de fundação:

  • Colônias do Alto Leste / Norte / “Nova Inglaterra” (4):
    • New Hampshire (1638)
    • Massachusetts Bay (Plymouth, Massachusetts + Maine) (1620-1630)
    • Rhode Island (1636)
    • Connecticut (1636)
  • Colônias do Meio-Alto Leste (4):
    • New York (1626)
    • New Jersey (1664)
    • Pennsylvania (1682)
    • Delaware (1638)
  • Colônias do Meio-Baixo Leste / Sul (5):
    • Maryland (1633)
    • Virginia (1607)
    • North Carolina (1653)
    • South Carolina (1663)
    • Georgia (1732)

As colônias mais antigas foram Jamestown, em Virginia, de 1609, e Plymouth, em Massachusetts Bay, de 1620, que é onde os chamados “Pilgrim Fathers”, que vieram no Mayflower, chegaram.

Da extremidade Oeste de Pensilvânia em diante, seguindo o Rio Ohio, já se considerava “O Oeste”. Até hoje, ao cruzar a divisa entre Pensilvânia e Ohio pela estrada mais famosa, a chamada Turnpike, há uma enorme placa, acima da estrada, que diz: “Welcome to the West“. Pittsburgh, cidade em que morei por cinco anos, era o último bastião da civilização inglesa: pra frente, era território a conquistar (e a converter). Isso mostra quão (relativamente) estreita era a faixa do atual território americano ocupada pelas treze Colônias. Hoje são 50 Estados e um Distrito Federal — incluídos o Alaska e o Hawaii, que não são contíguos aos demais, nem um ao outro. O Alaska está muito mais próximo da Rússia do que do resto dos EUA. (Veja no globo terrestre e não no mapa mundi.)

Eis um mapa:

colonies-map

Mas voltemos ao que importa. Essas colônias formavam uma “irmandade”, e todas eram Colônias Inglesas (Britânicas, a partir de 1707), mas elas eram independentes umas das outras. Cada uma tinha sua Constituição Própria, seu Legislativo, seu Judiciário, seu governo Executivo, sua Milícia.

Quando, em 4 de Julho de 1776, as Treze Colônias declararam sua independência frente ao Reino Unido, então governado por George III, avô da Rainha Vitória, que por sua vez era trisavó da atual soberana britânica, Rainha Elizabeth II, elas já estavam em guerra com a Inglaterra há mais de um ano — e a guerra ainda iria durar mais sete anos. No total, foi uma guerra de mais de oito anos, que custou muitas vidas preciosas.

A chamada Guerra Revolucionária Americana durou de 19 de Abril de 1775 até 3 de Setembro de 1783, tendo a vitória das ex-colônias, que se declararam independentes no meio da guerra, em 4 de Julho de 1776, sido oficialmente ratificada em 12 de Maio de 1784.

As treze colônias, que nesse processo cimentaram sua “irmandade”, estabeleceram um verdadeiro “pacto” (covenant) entre si, o pacto  de lutarem juntas pela independência de todas elas. Houve uma guerra longa e difícil e elas ganharam. Tinham perfeita consciência de que dificilmente teriam conquistado sua independência e sua liberdade sem esse pacto.

O fantástico é que, nesse momento, também tiveram perfeita consciência de que o pacto delas, umas com as outras, era para preservar a liberdade delas, e de que a “união” delas era para se fortalecer, enquanto estados independentes e livres, e que, por isso, não podam deixar que a a forma de governo que viessem a criar para si mesmas, o governo da união, se tornasse um poder central tão poderoso e forte que viesse a ser uma ameaça para a independência, a liberdade e a autonomia de cada uma delas.

Assim, ao mesmo tempo em que reconheceram a necessidade de sua união, através de sua história e de seu pacto de defesa, não deixaram de reconhecer também a ameaça que um poder central criado para governar as questões colocadas pela união poderia representar para o que de mais importante tinham: a recém adquirida liberdade. Em outras palavras: não podiam simplesmente substituir o controle que sobre elas detinha a Inglaterra (Reino Unido) por um outro controle de igual ou pior  teor: um poder central, com um governo cheio de tentáculos a impedir sua livre ação.

Provisoriamente, criaram um “Congresso da Confederação” recém constituída, regida por uma série de normas mínimas (sem muita estrutura e sem grande sofisticação na área administrativa. Esse Congresso decidiu que algo mais formal e mais organizado teria de ser criado.

Em 21 de Fevereiro de 1787 os treze Estados recém libertados (ex-Colônias) foram convocados pelo Congresso da Confederação dos Estados Americanos (que governava a Confederação, exercendo todas as funções de governo, sem a existência de uma divisão de poderes, como Legislativo, Judiciário e Executivo) para enviar representantes para uma Convenção Constitucional, que se reuniria a partir de 14 de Maio de 1787, exclusivamente para revisar as normas que até ali haviam regido a convivência dos Estados e criar uma Constituição.

Por falta de quórum na data marcada, a Convenção Constituinte só deu início aos seus trabalhos em 25 Maio de 1787.

Trabalharam rápido. A Constituição foi concluída pela Convenção Constituinte em 8 de Setembro de 1787 (três meses e meio depois de iniciados os trabalhos) e em 17 de Setembro de 1787 ela foi assinada por 39 membros da Convenção Constituinte — todos os que estavam presentes na reunião convocada para a assinatura (uma média de três por Estado). Cerca de quarenta homens, em menos de quatro meses, produziram uma Constituição curta que, no essencial, vigora até hoje (embora tenha sofrido várias emendas, algumas das quais — na verdade, a maioria — vieram a aumentar as atribuições e, por conseguinte, o poder do Governo Central, o que hoje se chama de Governo Federal.

Mesmo com as reservas que ele pessoalmente tinha a alguns aspectos do texto a que chegaram, Benjamin Franklin encaminhou a votação favorável e pediu unanimidade na aprovação, em um belíssimo discurso. Foi atendido.

Transcrevo aqui um artiguete que publiquei neste mesmo blog há menos de quarenta dias (9/6/2019), com o título de “Benjamin Franklin – Notável!”, disponível no seguinte URL: https://chaves.space/2019/06/09/benjamin-franklin-notavel/, colocando o seu texto em outra cor para destaque:

” No dia 17 de Setembro de 1787, em Filadélfia, Pensilvânia, a Convenção Constitucional dos Estados Unidos, tendo concluído os seus trabalhos, estava pronta para votar o texto da proposta de Constituição dos Estados Unidos que teria ainda de ser aprovada pelo Congresso e pelos Estados, prévias Colônias. Foi convidado a encaminhar o voto ninguém menos do que Benjamin Franklin, filho da cidade (Filadélfia). Foi um discurso memorável. Vou traduzir algumas partes que me fascinam e que mostram o homem público que Ben Franklin, filósofo, cientista, inventor, jornalista, era capaz de ser. Faço uma tradução livre. Aqui vai. É uma peça linda.

‘ Confesso que não aprovo totalmente o texto constitucional final a que aqui se chegou. Mas, senhores, não estou certo de que eu possa garantir que nunca virei a aprova-lo totalmente. Tendo vivido muitos anos, já tive várias vezes a experiência de, tendo obtido melhores informações, ou tendo dado ao material consideração mais plena, vir a aprovar plenamente algo de que eu inicialmente discordava — ou vir a desaprovar aspectos de algo que eu anteriormente havia aprovado plenamente e sem reservas. Quanto mais velho fico, mais inclinado me vejo a duvidar de minhas próprias opiniões e a dar às opiniões de outros maior respeito. Considerar-se possuidor de toda a verdade e ter certeza de que os que pensam diferente estão errados é algo pode ter seu lugar em seitas religiosas, mas certamente não deve se manifestar em discussões políticas.

Com esse sentimento, senhores, dou meu apoio a esta Constituição, com todas as falhas que ele possa ter, se é que tem, porque creio que um governo central é necessário para nós e a forma de governo prevista nesta Constituição será uma benção para o povo desta nação, se bem administrada — e creio também que ela será bem administrada por um bom número de anos, só vindo a se tornar despótica se, antes, o povo desta nação se tornar tão corrupto que venha a tornar inevitável um governo despótico, por ser incapaz de escolher um outro. Duvido, também, que qualquer outra Convenção que possa ser escolhida seja capaz de produzir uma Constituição melhor do que esta, porque, quando um grupo de homens se reúne, por mais sábios que sejam, eles trazem consigo seus preconceitos, seus erros de opinião, suas paixões, que configuram seus interesses, e sua visão egoísta das coisas centrada nesses interesses. Surpreendo-me, senhores, que, sendo este grupo igual a qualquer outro em seus defeitos, tenhamos sido capazes de produzir algo que se aproxima tanto da perfeição como, com todos os seus defeitos, esta Constituição.

Assim, senhores, eu aprovo esta Constituição, porque eu não esperava que uma Constituição melhor pudesse ser produzida, e não posso ter certeza de que esta não seja a melhor.

Por isso, conclamo todos nós, em nosso próprio nome, e em nome do povo que todos representamos, bem como por amor à posteridade, ao votar, que a aprovemos, unanimemente e de todo coração, e que, nos estágios futuros pelos quais sua aprovação deverá passar, aos quais nossa influência possa se estender, nós nos esforcemos para que ela seja aceita, como nós, espero, a vamos aceitar.

Assim sendo, senhores, não posso deixar de expressar meu sincero desejo de que cada membro desta Convenção que ainda tenha alguma objeção a esta Constituição, se imbua, neste instante, de um pouco de dúvida quanto à sua própria infalibilidade e torne manifesta, para os cidadãos desta nação, e para o povo do mundo, a nossa unanimidade, apondo seu nome e sua assinatura a este documento. E proponho que as palavras finais do documento sejam: Aprovado pela Convenção, através do consentimento unânime de todos e de cada um de seus participantes. ’

E assim foi, acrescento eu. “

Em 28 de Setembro de 1787, o Congresso da Confederação encaminhou a Constituição aprovada pela Convenção Constituinte aos treze Estados para ratificação pelas suas Assembleias.

O primeiro Estado a ratifica-la foi Delaware, que o fez (em um pouco mais de dois meses) em 7 de Dezembro de 1787.  O último Estado a ratifica-la foi Rhode Island, que o fez em 29 de Maio de 1790 (quase três anos depois de sua aprovação pela Convenção Constituinte).

Em 26 de Julho de 1788 (menos de um ano depois de sua aprovação pela Convenção Constituinte) o Estado de New York foi o décimo primeiro a aprovar a Constituição. Com a aprovação da Constituição por onze dos treze Estados, ela entrou em efeito e começaram a ser tomadas as providências para a realização da primeira eleição presidencial.

Essa eleição teve lugar nos meses iniciais de 1789 e George Washington, o grande Comandante da Vitória das Colônias na Guerra da Independência, foi eleito Presidente na forma prevista na Constituição e veio a governar o país por dois mandatos que, juntos, vão de 30 de Abril de 1789 a 4 de Março de 1797.

Um princípio ficou consagrado nesse processo, embora ele tenha sido recusado pelo Poder Judiciário posteriormente. Esse princípio, que veio a ser conhecido como o Princípio da Nulificação, estipulava o seguinte:

  • Como a Constituição havia sido elaborada por representantes escolhidos pelos Estados, estes, cada um dos Estados, individualmente, eram a última instância para a sua interpretação;
  • Se o Congresso Federal viesse a aprovar uma Lei que um Estado, em sua soberania, interpretasse como inconstitucional, ele, o Estado, teria o direito de não acatar e respeitar essa lei, mesmo que o Judiciário Federal, até a Suprema Corte do país, viesse a afirmar que a Lei era Constitucional;
  • Se a Convivência de um Estado com os demais se tornasse, em sua visão, insuportável, esse Estado poderia revogar sua adesão ao pacto e, assim, separar-se da União dos Estados, de forma incontestada e totalmente pacífica.

Como disse, com o tempo, e com o fortalecimento do Governo Federal, os Tribunais Federais se recusaram a aceitar esse princípio, chamando a si essa soberania. Assim, um punhado de homens veio a se sobrepor à vontade e à soberania de um estado inteiro, ou mesmo de um grupo deles.

Foi com base nessa recusa que o Governo Federal, presidido por Abraham Lincoln, com o apoio dos Estados do Norte, declararam guerra aos Estados do Sul, em 1861, a propósito da questão da escravatura, dando início à Guerra Civil, uma guerra interna de estados contra estados, também conhecida como a Guerra de Secessão, porque os Estados do Sul (chamados Confederados) queriam sair do Pacto para formar uma outra nação que aprovasse, sem dissonância, a escravidão.

Depois da Guerra Civil, que terminou em 1865, o Princípio da Nulificação nunca mais foi invocado — até os últimos tempos.

Vários livros existem hoje explorando a história do princípio e, mais recentemente, a possibilidade de ele voltar a ser aceito pela maioria dos americanos.

Vide, por exemplo, os primeiros quatro oferecendo um tratamento histórico da questão, os quatro últimos um tratamento sistemático.

Chauncey Samuel Boucher, The Nullification Controversy in South Carolina (Forgotten Books, reprint, 2012).

Richard E. Ellis, The Union at Risk: Jacksonian Democracy, States’ Rights and the Nullification Crisis (Oxford University Press, reprint, 1987).

William W. Freehling, Prelude to Civil War: The Nullification Controversy in South Carolina, 1816-1836 (Oxford University Press, 1965).

Edward Payson Powel, Nullification and Secession in the United States: A History of the Six Attempts During the First Century of the Republic (G. P. Putnam 1897).

Sanford Levinson (Editors), Nullification and Secession in Modern Constitutional Thought (University Press of Kansas, 2016).

Luke von Trapp, The People vs The State: Using Jury Nullification to Defeat Unjust Laws (Luke von Trapp, 2018)

Clyde Wilson, Nullification: Reclaiming Consent of the Governed (Shotwell Publishing, 2016).

Thomas E. Woods Jr., Nullification: How to Resist Federal Tyranny in the 21st Century (Regnery Publishing, 2010)

Concluindo este capítulo, pode-se notar, em todo o processo, como os americanos sabiam o que queriam e tinham perfeita consciência das questões envolvidas. Eles tiveram de recorrer à guerra para se tornarem independentes da Inglaterra. Os estados (antigas colônias) eram bem demarcados, tinham pessoas responsáveis governando-os, e tinham certeza de que precisavam agir em uníssono para vencer a Inglaterra. Destacam-se aqui nomes do calibre de Thomas Jefferson, Benjamin Franklin e George Washington.

Menos de cem anos depois, outra guerra, esta interna, de um grupo de estados contra outro grupo, tentando impedir que o Governo Federal ditasse aos Estados o que eram obrigados a fazer, contra a sua vontade. Os Estados defensores do Princípio de Nulificação perderam essa guerra para o Poder Central, representado por Abraham Lincoln (que foi assassinado antes mesmo do fim da Guerra Civil). A Guerra Civil durou de 12 de Abril de 1861 a 9 de Maio de 1865. Lincoln foi assassinado em 15 de Abril de 1865.

Você pode dizer, leitor, que a causa do Governo Federal americano, que levou à Guerra Civil, era justa: a abolição da escravatura. Mas a causa da autonomia dos estados frente ao Poder Central também era justa — e com um pouco mais de paciência e negociação poderia ter se chegado à abolição da escravatura sem guerra. Se o Brasil conseguiu, em 1888, os EUA puderam ter conseguido, ainda que um pouco depois de 1865, sem guerra e sem o agigantamento do Poder Federal que ela representou.

2. Tiradentes, a Frustrada Revolução Mineira, e Thomas Jefferson

Um importante momento da História do Brasil sublinha a importância que o Liberalismo Americano teve no desenvolvimento de nosso país — infelizmente, por incompetência e traição, sem maiores resultados no curto prazo.

O ideário liberal, especialmente o representado pelo pensamento de Thomas Jefferson, o principal autor da Declaração de Independência dos Estados Unidos, inspirado em John Locke, teve influência decisiva sobre o pensamento e as ações dos principais líderes da chamada Inconfidência Mineira, em especial (mas não exclusivamente) sobre Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.

Não podemos nos esquecer das datas.

Em 1776, os Estados Unidos proclamaram sua independência, sendo Thomas Jefferson o principal autor da magnífica Declaração de Independência. A Guerra da Independência terminou em meados de 1784. Ao final da guerra, Jefferson era diplomata dos EUA em sua Embaixada na França, então comandada por Benjamin Franklin (de 1776, ano da Independência, a 1785). Em Maio de 1785 Jefferson passou a ocupar a posição de Franklin, tornando-se Embaixador, ou o que se chamava então “United States Minister to France“.

É sabido e notório que Jefferson foi extremamente importante na deflagração da Revolução Francesa, que teve lugar em 1789, quando ele ainda era Embaixador na França. Ao voltar para os Estados Unidos, em 1790, Jefferson se tornou o primeiro Secretário de Estado (Ministro das Relações Exteriores) dos Estados Unidos, atuando no governo de George Washington. Ficou no cargo até 1793, quando renunciou. Em 1796 foi eleito Vice-Presidente dos Estados Unidos, na presidência de John Adams. Em 1800 foi eleito presidente dos Estados Unidos, cargo que assumiu em Março de 1801 e exerceu durante dois mandatos de quatro anos, até Março de 1809 [1].

Ou seja, enquanto Thomas Jefferson era Embaixador dos Estados Unidos na França, e a Revolução Francesa era planejada, com o apoio e a ajuda dele, a Inconfidência Mineira, por sua vez, estava sendo organizada aqui no Brasil… Tiradentes foi preso em 10 de Maio de 1789, sessenta e quatro dias antes da Tomada da Bastilha (14 de Julho do mesmo ano). Mas a admiração dos que tentavam fazer o Brasil independente estava muito mais com os americanos do que com os franceses.

Eis o que diz Kenneth Maxwell, conhecido brasilianista, em seu artigo “Conjuração Mineira: Novos Aspectos”,  baseado na apresentação feita no dia 10 de maio de 1989 (bicentenário da prisão de Tiradentes), no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP) – a citação é longa, mas vale a pena:

“Por uma formidável combinação de circunstâncias, o conflito aberto no interior do esquema imperial luso-brasileiro coincidiria com o desmoronamento do sistema mercantilista da potência colonial europeia mais poderosa. Entretanto, o fermento da inovação — dentro do Brasil — já estava levantando questões mais amplas, que só podiam indicar a pertinência do exemplo das treze colônias rebeladas ao norte da América. As medidas repressivas portuguesas não podiam deixar de evocar no Brasil a alternativa lógica que a fundação dos Estados Unidos exemplificava de maneira brilhante e tentadora.

Em outubro de 1786, Thomas Jefferson, embaixador dos Estados Unidos na França, recebeu uma carta vinda da velha Universidade de Montpellier, assinada com o pseudônimo de Vendek. O missivista dizia ter assunto muito importante a tratar, porém queria que Jefferson recomendasse um canal seguro para a correspondência. Jefferson fê-lo imediatamente. Em maio do ano seguinte, 1787, a pretexto de visitar as antiguidades de Nîmes, Jefferson acertou um encontro com Vendek. Jefferson comunicou a sua conversa com Vendek à comissão para a correspondência secreta do Congresso da Confederação americana: ‘Eles [os brasileiros] consideram a Revolução Norte-Americana como um precedente para a sua’, escreveu o embaixador; ‘pensam que os Estados Unidos é que poderiam dar-lhes um apoio honesto e, por vários motivos, simpatizam conosco (…) no caso de uma revolução vitoriosa no Brasil, um governo republicano seria instalado’ [Thomas Jefferson, 1953, Jefferson a Mr. Jay. Marselha, 4 de maio de 1787. AMI, II, pp.13-9].

Vendek, José Joaquim Maia e Barbalho, natural do Rio de Janeiro, era estudante da Universidade de Coimbra. Jefferson respondeu a Maia que não tinha autoridade para assumir um compromisso oficial. Porém, uma revolução vitoriosa no Brasil, obviamente, disse ele, ‘ não seria desinteressante para os Estados Unidos, e a perspectiva de lucros poderia, talvez, atrair um certo número de pessoas para a sua causa, e motivos mais elevados atrairiam outras’ [Thomas Jefferson, op.cit., p.17].

Um relatório minucioso dos comentários de Jefferson chegou ao Brasil, levado por Domingos Vidal Barbosa, estudante em Montpellier [Ver “Estudantes brasileiros na faculdade de medicina de Montpellier. RIHGB, CCXLIII, 41, pp.48-50]” [2].

Eis o candente texto de uma das cartas de José Joaquim Maia e Barbalho a Thomas Jefferson, escrita quando este era Embaixador Americano em Paris, que reflete muito bem a admiração que ele tinha pelo filósofo e estadista americano e a confiança que expressava na ajuda americana:

“Sou brasileiro e sabeis que minha desgraçada pátria geme em um espantoso cativeiro, que se torna cada dia menos suportável, desde a época de vossa gloriosa independência, pois que os bárbaros portugueses nada pouparam para nos tornar desgraçados, com o temor que seguíssemos os vossos passos; … estamos dispostos a seguir o marcante exemplo que acabais de nos dar … quebrar nossas cadeias e fazer reviver nossa liberdade que está completamente morta e oprimida pela força, que é o único direito que os europeus possuem sobre a América… Isto posto, senhor, é a vossa nação que acreditamos ser a mais indicada para nos dar socorro, não só porque ela nos deu o exemplo, mas também porque a natureza nos fez habitantes do mesmo continente e, assim, de alguma maneira, compatriotas” [3].

Thomas Jefferson estava certo de que, mais cedo ou mais tarde, os países da América Latina se tornariam independentes da Espanha e de Portugal. Era cético, porém, sobre sua capacidade de implantarem uma democracia liberal nos países independentes. Temia que estes viessem a se tornar uma sucessão de despotismos militares… Como alguém criado sob a inspiração protestante, ele duvidava que os católicos, por serem subservientes ao Papa, um poder estrangeiro, e por carecerem da tradição anglo-saxônica de liberdades e direitos, que inclui a liberdade religiosa, pudessem  implantar uma real democracia liberal na América Latina [4].

A história mostrou que os temores de Jefferson eram fundados. A Inconfidência Mineira soçobrou, Tiradentes foi enforcado em 21 de Abril de  1792. Trinta anos depois o Brasil se tornou independente pelas mãos do Príncipe Regente, que se tornou o Imperador Pedro I, mas, como é sabido e notório, foi uma independência “meia boca”. Assim que o trono de Portugal vagou, com a morte de seu pai, Dom Pedro I abandonou o Brasil nas mãos de uma criança (Dom Pedro II), ainda que com seus regentes, e voltou para Portugal, onde se tornou Dom Pedro IV. Só em 1889 o Brasil se tornou uma República. E as ideias liberais tiveram um papel naquela ocasião também. Mas cem anos haviam se passado.

De qualquer forma, embora haja quem reivindique um papel importante para a França na frustrada revolução mineira, o papel maior foi o dos revolucionários americanos, neste caso liderados por Thomas Jefferson. Quando eclodiu a Revolução Francesa  a revolução mineira já estava basicamente destruída.

Além disso consta que Tiradentes não se separava de um conjunto de documentos americanos, entre os quais estavam a Declaração de Independência, uma primeira redação dos Artigos da Confederação revisados (as normas que foram transformadas em Constituição), um censo das colônias inglesas de 1775, a Constituição de seis dos treze estados confederados, etc. [5]

Mas tudo no Brasil, depois da Inconfidência Mineira, foi improvisado — inclusive a Proclamação de nossa Independência por um mulherengo irresponsável.

Notas

[1] Essas informações são de conhecimento comum, estando em todas as biografias de Jefferson, mas podem também ser localizadas na WikiPedia, no artigo sobre Thomas Jefferson: http://en.wikipedia.org/wiki/Thomas_Jefferson. Jefferson era amigo de Marie-Joseph Paul Yves Roch Gilbert du Motier, Marquês de Lafayette, nobre francês que lutou do lado americano na Guerra de Independência, sendo considerado um herói americano. Depois de terminada a Guerra de Independência, ele voltou para a França. Eis o que sobre ele diz a WikiPedia: “Lafayette returned to France and was appointed to the Assembly of Notables in 1787, convened in response to the fiscal crisis. He was elected a member of the Estates General of 1789, where representatives met from the three traditional orders of French society: the clergy, the nobility, and the commoners. After forming the National Constituent Assembly, he helped to write the Declaration of the Rights of Man and of the Citizen with Thomas Jefferson’s assistance. This document was inspired by the United States Declaration of Independence and invoked natural law to establish basic principles of the democratic nation-state. He also advocated the end of slavery, in keeping with the philosophy of natural liberty. After the storming of the Bastille, he was appointed commander-in-chief of France’s National Guard and tried to steer a middle course through the years of revolution. In August 1792, radical factions ordered his arrest, and he fled into the Austrian Netherlands. He was captured by Austrian troops and spent more than five years in prison. Lafayette returned to France after Napoleon Bonaparte secured his release in 1797, though he refused to participate in Napoleon’s government. After the Bourbon Restoration of 1814, he became a liberal member of the Chamber of Deputies, a position that he held for most of the remainder of his life. In 1824, President James Monroe invited him to the United States as the nation’s guest, and he visited all 24 states in the union and met a rapturous reception. During France’s July Revolution of 1830, he declined an offer to become the French dictator. Instead, he supported Louis-Philippe as king, but turned against him when the monarch became autocratic. He died on 20 May 1834 and is buried in Picpus Cemetery in Paris, under soil from Bunker Hill. He is sometimes known as “The Hero of the Two Worlds” for his accomplishments in the service of both France and the United States. [In France] he was a key figure in the French Revolution of 1789 and the July Revolution of 1830.” (https://en.wikipedia.org/wiki/Gilbert_du_Motier,_Marquis_de_Lafayette). Espera-se com ansiedade o lançamento deste livro: Tom Chaffin, Revolutionary Brothers: Thomas Jefferson, the Marquis de Lafayette, and the Friendship that Helped Forge Two Nations (a ser lançado em 26/11/2019). Eis o que diz a resenha no site da Amazon: “In a narrative both panoramic and intimate, Tom Chaffin captures the four-decade friendship of Thomas Jefferson and the Marquis de Lafayette. The bond linking Thomas Jefferson and the Marquis de Lafayette constituted a singularly extraordinary friendship, one which played a key role in the making of two revolutions―and two nations. The author of the Declaration of Independence first met Lafayette in 1781, when the young French-born general was dispatched to Virginia to assist Jefferson, then the state’s governor, in fighting off the British. The charismatic Lafayette, hungry for glory on the battlefield, could not have seemed more different from Jefferson, the reserved and philosophical statesman. But when Jefferson, a newly-appointed diplomat, moved to Paris three years later, speaking little French and in need of a diplomatic partner, their friendship began in earnest. As Lafayette opened doors in Paris and Versailles for the neophyte emissary, so too did Jefferson stand by Lafayette as the Frenchman became inexorably drawn into the maelstrom of his country’s revolution. The Virginian offered counsel to the young aristocrat as he drafted The Declaration of the Rights of Man and remained a firm supporter of the French Revolution, even after he returned to America in 1789. But Jefferson soon learned that the French Revolution’s excesses had led to the persecution of Lafayette and his family. By 1792, the upheaval had rendered him a man without a country, locked away in a succession of Austrian and Prussian prisons. The burden fell on Jefferson―and Lafayette’s other friends, including Alexander Hamilton’s sister-in-law Angelica Schuyler Church ― to win his release. The two would not see each other again until 1824, in a powerful and emotional reunion at Jefferson’s Monticello. Steeped in primary sources, Revolutionary Brothers casts fresh light on this remarkable, often complicated, friendship of two extraordinary men.”
(https://www.amazon.com/Revolutionary-Brothers-Jefferson-Lafayette-Friendship/dp/1250113725/).

[2] Apud http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141989000200002&script=sci_arttext.

[3] Apud http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=275.

[4] Vide http://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Jefferson.

[5] Confiram-se, a esse respeito, http://guiamanaouropreto.com/guiacultural/?p=14http://www.almanaquebrasil.com.br/curiosidades-historia/8005-outro-olhar-sobre-tiradentes.html.

Em São Paulo, 14 de Julho de 2019

[230 anos da Queda da Bastilha em 14 de Julho de 1789 — durante o primeiro ano de George Washington no governo dos Estados Unidos, tendo Thomas Jefferson como seu Embaixador na França, função na qual substituiu Benjamin Franklin in 1785. Em 15 de março de 1789 a Inconfidência Mineira foi delatada aos portugueses por Joaquim Silvério dos Reis, levando, oportunamente, à prisão e ao enforcamento de Tiradentes em 21 de Abril de 1792 e o fim do movimento.]

 



Categories: Brasil, Estados Unidos, Independência, Século 18, Thomas Jefferson, Tiradentes, Uncategorized

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