[NOTA: O texto abaixo foi publicado hoje, 26.12.2022, no Facebook, por minha mulher, Paloma Epprecht e Machado de Campos Chaves. Como publicações no perfil do Facebook não requerem título, o texto da Paloma não tinha título. O que figura acima como seu título fui eu que escolhi — a partir de uma passagem no próprio texto. A Paloma e eu vivemos juntos há quatorze anos (celebrados no último dia 6.Set). Desses quatorze anos, a metade, ou seja, sete ela passou fazendo Pós-Graduação: dois anos na PUC-SP, para o Mestrado, e cinco na USP, para o Doutorado. Sinto um orgulho indescritível dela por ter feito jus a esses títulos. Ela os merece. Eu sou testemunha do talento e do esforço que ela colocou nesses projetos, da inspiração e perspiração que precisou investir neles. Eu, quando cumpri essa mesma trajetória, lá atrás, quando ela nem havia nascido ainda, era estudante em tempo integral, e não fazia outra coisa além de estudar: não precisava trabalhar para me manter, não tinha filhos para cuidar, criar e educar, não tinha mãe e pai doentes, nem, muito menos, tinha de cuidar de pessoas que exigiam cuidados, por vezes, quase o tempo todo. O feito dela foi muito maior do que o meu e ela o realizou de forma heróica. Parabéns, amor meu. Aqui vai o seu texto. Obrigado por permitir que eu o republique. EC.]
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Eu avisei que viria um textão… 😊
Se cursar uma faculdade não era para o meu bico, como alertou minha mãe, imagine fazer doutorado? E ainda por cima em uma universidade pública?
Nasci na Zona Leste de São Paulo e passei a infância no Parque Cecap, em Guarulhos. Na adolescência nos mudamos para Ubatuba, em uma época em que não havia faculdade na cidade, tendo apenas opções de faculdades privadas em Caraguatatuba ou Taubaté. Mas eu não pretendia permanecer em Ubatuba. Aos 18 anos eu tinha planos de fazer faculdade e de voltar a viver em São Paulo, e sabia que faria isso, embora não soubesse como.
Estudei em escola pública a Educação Básica inteira e fiz Magistério, em vez de Ensino Médio, o que não me ajudou a me preparar para um vestibular.
Mesmo assim, no final de 1993, ousei prestar vestibular na USP, no Mackenzie e na FMU (nem tentei na PUC, porque era uma universidade de “gente rica”).
Na época eu não sabia se queria fazer Direito ou Pedagogia. Na USP me inscrevi para Direito, mas não passei nem na primeira fase (aquela não era uma instituição muito acessível a pessoas como eu, especialmente no curso de Direito). Mas passei em Pedagogia tanto na FMU, quanto no Mackenzie.
Naquele tempo as listas de aprovados saiam nos jornais. Eu me lembro como se fosse hoje, eu sentada, com o jornal espalhado pelo chão, mostrando para a minha mãe meu nome na lista de aprovados. Em 14o lugar na FMU e em 50o lugar no Mackenzie! Foi aí que minha mãe me disse que faculdade não era para o meu bico. “Você deve ter nascido na casa errada”, ela me disse, inconformada com o fato de eu achar que podia fazer uma faculdade. Afinal, como eu viveria em São Paulo e pagaria a mensalidade de uma faculdade, se não havia nenhuma possibilidade de ela conseguir bancar isso?
No Mackenzie o curso seria vespertino, o que representava uma barreira para quem precisava arrumar um trabalho para se sustentar. Além disso, as bolsas de estudo no Mackenzie costumavam ser destinadas apenas a filhos de pastores presbiterianos, e não era o meu caso. Já na FMU, além de o curso ser noturno, ainda havia uma chance de eu conseguir um Crédito Educativo (CREDUC) do governo federal.
Contrariando minha mãe, fiz minhas malas e fui para São Paulo, morar na casa de uma tia querida, que me acolheu com muito amor em seu apartamento. Meu pai me deu um cheque no valor da matrícula e disse que não poderia me dar mais nada. A partir dali, eu teria de me virar.
Foi assim, com diversas ajudas importantes, dos empregos que eu consegui, do namorado, de familiares, de amigos, e principalmente do financiamento do governo (a partir do segundo semestre da faculdade), que eu concluí minha graduação em 1997.
Antes mesmo de terminar a faculdade me casei, tive minhas filhas, e achei que já tivesse ido longe demais, afinal, minha mãe concluiu o Ensino Médio dela junto comigo, quando cursou Magistério ao meu lado e parou por aí. Meu pai fez Exame de Madureza, quando eu era criança, para concluir os ensinos Fundamental e Médio. Depois chegou a se matricular em uma faculdade, mas creio que não concluiu nem o primeiro ano.
Fui, portanto, a primeira pessoa da minha família a concluir uma faculdade. Mas mestrado e doutorado, continuavam não sendo para o meu bico. Não porque minha mãe pensasse isso (ela também pensava), mas, dessa vez, porque eu mesma tinha essa crença. Eu mesma havia me colocado um limite, e nunca teria pensado em ultrapassá-lo, não fosse o Edu.
O Edu era professor da área de Filosofia de Educação e havia lecionado por mais de trinta anos na Unicamp. Ele era PhD pela Universidade de Pittsburgh e já era um intelectual admirável. Um dia, no ano de 2008, ele me disse que eu tinha todas as condições para fazer mestrado e doutorado. Mais do que isso, ele disse que seria um desperdício se eu não fizesse! No início eu até dei risada do exagero, mas aos poucos fui me permitindo considerar que ele podia estar certo. Afinal ele tinha parâmetros para fazer aquela avaliação. Ele era desse meio.
Aos poucos, em minha carreira na área de educação, eu começava a vislumbrar a possibilidade de, futuramente, deixar a Educação Básica para trabalhar no Ensino Superior, e nesse novo contexto, a pós-graduação seria importante.
Em 2010 ingressei no Mestrado na PUC-SP (aquela faculdade de “gente rica”) e em 2012 defendi minha dissertação. Obtive, da metade para a frente do curso, uma bolsa parcial da CAPES, que cobriu os custos com a mensalidade.
Em 2017, ingressei no Doutorado na USP (aquela instituição pouco acessível a pessoas como eu…), e muitas coisas aconteceram desde então.
Diz a lenda que a vida das pessoas vira do avesso a partir da matrícula nesse tipo de curso. Eu não sei se é verdade, mas a minha virou… Especialmente após a qualificação, no dia 18 de setembro de 2019. Oito dias após a banca, meu caseiro do sítio faleceu (hoje faz exatos três anos que isso aconteceu). Oito dias depois dele, minha mãe faleceu. Meu pai, então, em franco tratamento de um câncer de próstata, passou a morar comigo, e eu me transformei em sua cuidadora a partir do início da pandemia, tendo permanecido nessa posição por longos dois anos…
Eu poderia contar mais detalhes da saga que vivi como cuidadora, e daria para escrever um livro sobre isso. Mas não farei isso neste momento. O fato é que toda a situação que vivi nesse período me obrigou a pedir prorrogação de um ano no meu prazo de depósito da tese na USP, e de seis meses na licença em meu trabalho no IFSP.
Sou muito grata ao meu orientador e aos meus chefes e parceiros de trabalho, que foram extremamente compreensivos o tempo todo! Sou grata também às pessoas que me auxiliaram em casa, nos cuidados com meu pai, com a casa e com o sítio, que me permitiram retomar minha vida acadêmica e concluir esse trabalho. Sem eles, e sem o apoio da minha psicóloga, da minha família e dos amigos, eu certamente não teria conseguido.
Meu orientador ficou até surpreso quando eu retomei o contato com ele após mais de um ano sem trocar sequer uma mensagem. Ele estava certo de que eu tinha desistido.
Desistir não é uma opção para pessoas com eu. Ou eu consigo o que estou buscando, ou eu morro tentando conseguir. Já houve ocasiões em que eu não consegui algo, mas tentei até o fim. Não desisti em nenhum momento, apenas fracassei. E o fracasso me ajudou a aprender muitas coisas que me foram muito úteis para as batalhas seguintes. O fracasso sempre ajuda, se soubermos aproveitá-lo.
Sou grata a Deus por ter conseguido romper a minha bolha. Hoje eu convivo com pessoas “bem nascidas”, a maior parte tendo feito sua graduação de período integral em uma universidade pública, que teve que lutar muito menos do que eu para chegar onde chegou. E boa parte dessas pessoas chegou a lugares mais sofisticados do que eu. Mas, para elas, esses lugares não representam, necessariamente, terem ido mais longe. Esses lugares estavam mais perto delas. Foi mais fácil.
Para mim, concluir o doutorado em uma universidade pública tem a ver com hackear o sistema. Trata-se da tão almejada mobilidade social. Para além de toda a ajuda que recebi, sem a qual, repito, eu não teria conseguido, considero que o ponto crucial, que fez realmente a diferença em minha vida, aparece em dois momentos nesse meu relato.
O primeiro, no final do segundo parágrafo, lá em cima, quando eu disse “Aos 18 anos eu tinha planos de fazer faculdade e de voltar a viver em São Paulo, e sabia que faria isso, embora não soubesse como.” O segundo, quando eu disse “… mas aos poucos fui me permitindo considerar que ele podia estar certo”, me referindo ao incentivo que o Edu me deu para prosseguir meus estudos em nível de pós-graduação.
Ambos esses parágrafos falam de crenças. No primeiro, eu tinha um projeto, e tinha a crença de que ele podia se concretizar, embora a realidade não confirmasse essa crença. No segundo eu me permiti mudar uma crença que estava plantada em meu coração, talvez desde sempre. O que explica eu ter acreditado que poderia fazer uma faculdade, em uma família que tinha pouca escolaridade? O que explica eu acreditar que jamais poderia fazer um Mestrado ou Doutorado? Por que e como eu mudei minha crença acerca disso?
Crença é algo que me fascina. Não é como um conhecimento que eu não tenho em um dia e passo a ter no outro. Não se muda uma crença de um dia para o outro. Crença é algo muito subjetivo, difícil de estudar e compreender. O método científico talvez nem seja a ferramenta mais adequada para compreender crenças.
Mas, em retrospectiva, é claro para mim que, mesmo que as oportunidades tivessem batido à minha porta, a depender das minhas crenças, eu jamais as teria aproveitado. Quanto mais eu teria buscado, criado as oportunidades que eu precisei criar para atingir meus objetivos.
Portanto, em minha visão, muito mais importante do que as oportunidades, o financiamento público, o abrigo na casa da tia, os vale-transportes recebidos em doação das colegas mais abastadas, e todo o tipo de ajuda que eu recebi no percurso, o que fez a diferença foi eu acreditar que eu podia. Sem essa crença, de nada me serviria todo o resto.
Meu sonho, agora, é descobrir de que forma a educação pode contribuir para que os jovens como eu, que não nasceram com a vida ganha, construam dentro de si as crenças necessárias para mudar sua história e romper sua bolha. O dia que eu descobrir isso, terei cumprido minha missão na área da educação.
[Eis a primeira página da tese:]
Em Salto, n’O Canto da Coruja, em 26 de Setembro de 2022.
Categories: Liberalism
Como sempre, os textões da nossa querida Paloma são uma lição de vida. Mano querido, transmita meus efusivos parabéns a ela.
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