(Resumo feito por Eduardo Chaves com base, em grande parte, em material contido no livro Rousseau and Revolution: The Story of Civilization, do casal Will (William James) e Ariel (Kaufmann) Durant, vol. X, publicado em 1967 — ano que eu cheguei para estudar nos Estados Unidos.)
Rousseau, na sua principal obra de cunho pedagógico, Émile, Ou de l’Éducation, publicada em 1762, quando ele tinha exatamente 50 anos (ele nasceu em 1712 e morreu em 1778, com 66 anos), parte de certos pressupostos acerca do que ele entende ser a natureza humana para, só então, apresentar como ele entende que deve ser a educação das crianças (ele não está interessado na chamada educação de adultos).
1. Segundo Rousseau, a criança humana possui, ao nascer, o potencial tanto para aquilo que a sociedade considera o bem e o certo como para aquilo que a sociedade considera o mal e o errado.
2. Um desses dois potenciais, ou mesmo uma mistura deles, será desenvolvido, mas esse desenvolvimento não se dá em decorrência ou através do ensino (que envolve dizer à criança o que é bom e certo e o que é mal e errado, e argumentar com ela, tentando convencê-la a fazer o bem e o certo e a evitar o mal e o errado). Segundo ele, só por volta dos doze anos a criança estará suficientemente desenvolvida, do ponto de vista da linguagem, para entender o que se entende por bem e mal, certo e errado, do ponto de vista da lógica, para entender os argumentos que buscam convencê-la a fazer o bem e o certo e evitar o mal e o errado, e do ponto de vista da retórica, para juntar linguagem e lógica em um processo efetivo de comunicação. Até essa idade a aprendizagem da criança, que resulta no seu desenvolvimento, se dará observando o exemplo dos que a rodeiam, em especial dos adultos que são importantes para ela (pais, os demais membros da família imediata etc.). “Exemplo! Exemplo!”, diz ele. Sem o exemplo a criança não vai aprender o a diferença entre o bem e o mal, que tipo de conduta é bom e que tipo de conduta é mau, o que é certo e o que é errado, o que ela deve fazer e o que ela deve deixar de fazer — e por quê. Até que a criança alcance esse estágio, deve-se evitar ensiná-la verbalmente, instruí-la, pregar para ela, dar-lhe sermões, doutriná-la.
3. O próprio desenvolvimento da linguagem da criança, bem como o domínio das primeiras habilidades mentais (em regra lógicas e retóricas, argumentativas e comunicacionais), ocorre, como o desenvolvimento das primeiras habilidades físicas e motoras, pela emulação: pelo seu desejo (inato) de imitar os mais velhos, de agir como agem os que a rodeiam. É por isso, por exemplo, que as crianças, em regra, aprendem a língua que seus pais, sua família, seus amigos falam. Uma criança que cresce em uma família em que uns falam uma língua, outros falam outra, e essa família mora em uma comunidade ou uma sociedade que fala ainda uma terceira língua, provavelmente vai aprender de forma eficaz a entender e a falar as três línguas igualmente bem [1].
4. Uma criança que nasce e cresce em um ambiente recheado de vícios e condutas indesejáveis vai, provavelmente, desenvolver esses vícios e essas condutas indesejáveis, por mais que se diga a ela que não deve se conduzir assim, por mais que se argumente procurando mostrar a ela, seja o erro, sejam as consequências nefastas, de se conduzir daquela forma. A melhor forma de conseguir que a criança desenvolva virtudes e condutas desejáveis é fazer com que ela nasça, ou pelo menos cresça, em um ambiente tão natural quanto possível, tão despido dos aspectos mais sofisticados da civilização quanto possível.
5. Até a idade de por volta de doze anos, a educação da criança deve basicamente ser uma educação moral, centrada na formação do seu caráter. Mas essa formação não é uma modelagem feita de fora para dentro, através de exortações, instruções, ensinamentos. É algo que vem de dentro para fora, à medida que a criança percebe como se deve conduzir e que condutas deve evitar observando aqueles que a cercam. A educação intelectual, de cunho eminentemente linguístico, lógico e retórico, voltada para o seu desenvolvimento mental, só virá depois.
6. Como se pode constatar no primeiro item deste resumo, Rousseau não acredita na existência de um bem ou mal, um certo ou errado, naturais, absolutos — independentemente de um contexto social ou “civilizatório”. É por isso que ele afirma, em outras obras suas, que o que a natureza produz, aquilo que é natural, e que não está ainda contaminado pelo que a civilização produz, isto é, o cultural, que é sempre artificial, deve ser o ponto de partida para a educação. Contrário a como alguns o entendem, Rousseau não afirma que aquilo que a natureza produz, o que é natural, é sempre bom e certo, nunca mau ou errado. Esses conceitos normativos (ou essas categorias avaliativas) são produto da civilização e, por conseguinte, da cultura, e, portanto, daquilo que não é natural. Aquilo que a natureza produz simplesmente é, deve ser simplesmente reconhecido como tal.
7. Assim sendo, à medida que a criança cresce, e começa a agir, a fazer coisas, nada do que ela faz, nenhum impulso natural seu, deve ser considerado mau ou errado. Rousseau às vezes escorrega e afirma que “os primeiros impulsos da natureza são sempre certos”. Errado. Ele deveria ter dito que “os primeiros impulsos da natureza nunca devem ser considerados errados” — porque as categorias de bom e mau, certo e errado, não fazem parte daquilo que entendemos por natureza. Na sequência da frase citada, Rousseau de certo modo se corrige, ao dizer que “não há pecado original no coração da criança que nasce”. Na perspectiva da natureza, não há bondade ou maldade, virtude ou pecado. Essas são categorias criadas no contexto da civilização, no ambiente social em que a cultura emerge. Tanto o potencial para o bem, como o potencial para o mal, tanto um como o outro, é inato à criança. Educá-la é conseguir que ela desenvolva o seu potencial para o bem. Mas isso, como já foi dito, se não faz pela instrução ou exortação verbal, ou seja, pelo ensino, mas, sim, pelo exemplo, porque será apenas quando ela alcançar o que normalmente se chama de “idade da razão” que a criança (então já adolescente, na “parlância” de hoje) vai conseguir entender conceitos abstratos como bem e mal, bom e mau, certo e errado, os enunciados que os contêm, os argumentos criados com esses conceitos e enunciados. [O termo “parlância” não consta dos dicionários, mas deveria. “Parlante” consta.]
8. A educação que vai ter lugar depois de a criança alcançar essa idade certamente deverá conter elementos verbais, lógicos, e retóricos, e, portanto, poderá depender, em termos, da instrução e do ensino. Mas mesmo aqui, a educação não pode ser separada do exemplo, para que aqueles que procuram contribuir com sua educação não venham a ouvir delas a famosa frase: “O que tu fazes fala tão alto que não consigo ouvir o que tu dizes!”. [Essa frase (com “fazes”, às vezes, substituído por “és”) é atribuída ao filósofo americano Ralph Waldo Emerson.]
É isso — por enquanticamente, como dizia um colega meu.
[1] Convivi com a família de um amigo, em que ele era brasileiro (língua Natia: o português), a mulher dele austríaca (língua nativa: o alemão), e que morava em Washington, DC, EUA (onde a linguagem mais comumente falada, na rua, nos meios de comunicação, etc. era o inglês). A criança cresceu falando igualmente bem as três línguas, sem nenhum sotaque. Isso é fato. Constatei, pessoalmente, que isso acontece, antes mesmo de a criança chegar ao estágio de ser alfabetizada, isto é, aprender a ler e a escrever, quando estava ainda no estágio da linguagem falada, entendendo a fala dos outros e se expressando oralmente.
Eduardo Chaves, em Salto, 27 de Setembro de 2022; pequenas revisões em 14 de novembro de 2022.
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