Desigrejamento

Em seu livro The Great Dechurching: Who’s Leaving, Why Are They Going, and What Will It Take to Bring Them Back? (O Grande Desigrejamento: Quem Está Saindo, Para Onde Eles Estão Indo, e o Que é Preciso Fazer para Trazê-los de Volta?), os autores Jim Davis & Michael Graham (1), entre várias análises sociológicas complexas e, convenhamos, por vezes cansativas, sugerem algo simples que pode ser útil. Para eles, o que mantém uma população, ou mesmo uma pessoa, na Igreja é pelo menos um de três fatores (todos descritos por uma palavra começada com a letra “B”, as palavras representando conceitos cujo peso cognitivo e emocional varia de pessoa para pessoa (2):

  • Belief
  • Behavior
  • Belonging

Não exigiu muito esforço converter essas três palavras em Inglês em seu equivalente em Português, com a alteração da primeira letra das palavras para “C”, as palavras em Português apontando, naturalmente, para os mesmos conceitos que as palavras em Inglês:

  • Crença
  • Conduta (Comportamento)
  • Comunhão (Comunidade, Companheirismo, Copertencimento, Cofraternidade)

Não me parece haver dúvida de que há outros fatores, mas concordo com os autores que esses são os principais – mantido o foco deles (dos autores), que é dificultar a saída, e, tendo ela acontecido, encontrar formas de revertê-la. Eles não parecem estar preocupados com gente que nunca esteve na igreja, e que não pode, por conseguinte, ser considerado desigrejado. E esses três fatores também explicam por que alguém que, tendo estado na igreja, saiu, pode ser convencido, ou se convencer, a voltar.

Tive uma breve conversa com uma amiga minha, recentemente, sobre qual desses fatores é preponderante como causa parcial do fenômeno do desigrejamento. Eu, com base, em parte, em minha própria experiência, acho que eles estão na ordem certa para quem sai da igreja, e na ordem inversa para quem cogita voltar para a igreja (ou mesmo contempla vir para a igreja pela primeira vez).

No meu caso, deixei a igreja, por volta de 1970, quando terminei meu Mestrado em Teologia e decidi que não iria ser pastor, mas, sim, professor universitário, nas áreas de História da Filosofia, História Intelectual da Europa, e História do Pensamento Cristão, porque não acreditava mais em uma série de doutrinas que eu, até um pouco antes, considerava essenciais para o cristão membro de igreja. Eu havia, em grande medida, perdido a fé, como se diz. E acreditava que, em casos assim, a atitude coerente seria deixar a igreja. (Com o tempo descobri que muito pastor perde a fé mas fica firme no cargo, preferindo não perder, com a fé, também o emprego.) Como naquela época a noção de cristãos desigrejados, avulsos, compondo, pequenos grupos, ou células, de (pelo menos) dois ou três, que se conduziam ou comportavam de maneira mais ou menos semelhante, e valorizavam o sentido de comunhão, comunidade, companheirismo, copertencimento, ou cofraternidade que a igreja não raro proporciona, não existia ainda, ou, pelo menos, não era comum, não pensei nessa alternativa. Ela teria feito sentido, se tivesse me ocorrido. Minha conduta ou meu comportamento nunca foram desregrados, e eu sempre valorizei o sentido de fraternidade, irmandade, koinonia, que encontrava na igreja, mas, na minha forma de entender de então, a crença era essencial. (Hoje mudei de opinião, privilegiando a esperança, ou algumas delas, mais do que a fé.)

Quando voltei para a igreja, por volta de 2010, no entanto, foi o sentido de comunhão e comunidade que foi mais forte. Embora eu tenha gradualmente voltado a aceitar certas crenças que havia abandonado (poucas, a bem da verdade, mas, na minha forma de entender, importantes), meu progresso nessa área, quando aconteceu, e ainda acontece, foi, e continua sendo, muito lento, cheio de reticências, e, é preciso que se registre, nunca me leva de retorno exatamente ao ponto de partida, sempre incorporando reduções, alterações e qualificações). Quanto à conduta, embora ela tenha se alterado um pouco em um sentido cada vez mais libertário, mas mais conservador, em detrimento de algumas tendências do Liberalismo Clássico, houve mudança, mas no sentido de mais clareza e firmeza do que em transformação profunda e significativa. Eu havia adotado e defendido o Liberalismo Clássico em 1966, quando da Crise do Seminário Presbiteriano de Campinas, da qual fui um dos protagonistas.

A principal mola propulsora do meu retorno à igreja em 2010 foi o sentido de comunhão, comunidade, companheirismo, copertencimento, e cofraternidade. Afinal de contas, voltei exatamente para a Catedral Evangélica de São Paulo, onde congregavam (outra palavra importante que começa com “c”) grandes amigos meus, de longa data (desde 1961): Elizeu Rodrigues Cremm (que era um dos pastores da Catedral), Reinhold Felippe Ortlieb, João Rhonaldo Andrade, Arnold Ferle, Marli Ruth Cremm, Isva Ruth (também!) Xavier, e boa parte da família Faustini. A Catedral sempre foi o ponto de encontro de ex-Manuelinos, isto é, ex-alunos do Instituto José Manuel da Conceição, de Jandira, SP, onde estudei, com toda essa turma, e com outros visitantes ocasionais da Catedral, como Assir Pereira, Takashi Shimizu, Dorotéa Machado Kerr, Sueli Barbosa Cavalcanti Jardim, René Myriam Camargo Lucarelli (cujo filho é presbítero na igreja), etc. Os encontros sociais e comemorativos da Associação de ex-Alunos do Instituto JMC, que foi assassinado pela Igreja Presbiteriana do Brasil em 1970, sempre foram lá.

Volto ao assunto do início depois dessa digressão autobiográfica… E pergunto: se o caminho mais frequente de saída é, de fato, o da crença (ou o da ausência dela), será que o caminho de volta será a comunhão fraternal e o companheirismo que ela proporciona? Parece-me provável.

Como, quando eu falo de comunhão, tenho em mente comunhão como algo que acontece inter fratres, entre irmãos, não necessariamente, com o Pai (assim maiusculado), imagino que muitos leitores concluam que eu queira uma igreja secular, mais parecida com um clube social de assemelhados do que as igrejas de antigamente. Pode ser. Mas não quero entrar direto nessa discussão aqui, porque estou escrevendo um artigo sobre a Unitarian Christian Church in America — UCCA (Igreja Cristã Unitária Americana), onde indago até onde pode ir o Liberalismo Teológico sem se dissolver ou se tornar uma outra religião (como John Gresham, o fundamentalista que eu mais admiro, imaginava que era). Trata-se, nesse novo artigo, de uma sequência a um artigo meu, de 1990, que considero entre meus artigos mais importantes. Com o título de How Far Can a Doctrine Change Before Becoming Something Else? ele foi apresentado na Conference of the World´s Religions, patrocinada pela New Ecumenical Research Association, em 1990, que teve lugar em um idílico resort nas Blue Ridge Mountains do estado de Virginia. O novo artigo vai discutir se é possível e viável, por exemplo, ter uma Igreja Cristã (NB) que é unitária, isto é, que acredita que Deus é só um e que Jesus de Nazaré não é parte dele, embora seja importante como rabino e mestre. Mas esse é outro assunto – tão importante ou mais, mas que não cabe neste artigo.

Enfim… Há hoje uma campanha, dentro da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPIB) — que foi a última denominação cristã de que fui membro, na Primeira Igreja de São Paulo, a Catedral Evangélica, da qual me desliguei para voltar a ficar desigrejado, por vontade própria, a partir de 2020, mas o meu desigrejamento, agora, era em outro patamar — pela revitalização da IPIB. O pastor da igreja local que eu frequento (sem ser membro), meu amigo Tiago Nogueira de Souza, é o responsável por essa área dentro da IPIB. Isso faz com que eu me sinta um pouco desconfortável discutindo esse assunto aqui, mas ficarei na superfície.

Quando se fala em Revitalização de uma Igreja ( no sentido de Denominação), ou mesmo de uma igreja local, em geral se tem em mente, indo do mais fácil para o mais complicado, o seguinte:

  • Estancar a sangria, por assim dizer, impedir que mais membros deixem a igreja (especialmente adolescentes e jovens) e ela gradualmente vá se minguando até fechar, ou quase;
  • Reconquistar, ou seja, trazer de volta, membros individuais, ou, não raro, famílias de membros, que se afastaram, por vezes por razões não fundamentais, como, por exemplo: desatenção da liderança da igreja local (o pastor não visita, não “paparica”, não envolve o membro no trabalho da igreja, etc.); desavenças com a liderança da igreja local, por razões não puramente relacionais, mas administrativas, ou disciplinares (a liberalização dos costumes tem tornado o clima meio tenso, em algumas igrejas, para membros separados/divorciados e recasados, com ou sem aspas), etc.; divergência, por incrível que pareça, acerca de questões que muitos acreditavam ultrapassadas e mortas, mas que parecem querer ressuscitar, como a questão da admissibilidade de beber uma cervejinha ou uma taça de vinho (por pastores ou mesmo simples membros), ou a crítica ao estilo pessoal ou à forma de vestir, a guarda do domingo, a velha maçonaria, etc.); ou divergências teológicas, em especial sobre doutrinas controvertidas (como a dupla predestinação, o universalismo, as penas eternas, os chamados dons do espírito, etc.); ou até mesmo desacordos políticos (o clima beligerante entre esquerda e direita tem levado muita gente a deixar uma igreja em que predomina a tendência política oposta à sua); – tudo isso tem tirado gente das igrejas que seria preciso reconquistar, reanalizando e revendo quais as causas mais sérias e frequentes que faz com que parte dos fiéis acabe por abandonar a igreja;
  • Seduzir e conquistar membros de outras denominações, ou mesmo de igrejas locais da mesma denominação, que possam não estar muito satisfeitos com suas igrejas, ainda que irmãs ou co-irmãs (como a IPI ir pescar em águas da IPB), ou que pertençam a associações religiosas tidas como estando fora dos limites do Cristianismo (pelo menos do Cristianismo Aceitável), como, por exemplo (e eu me assusto cada vez mais com os exemplos que vejo), de um lado, a Igreja Católica, e, de outro, as Igrejas Pentecostais, e, ainda de outros lados, mais distantes ainda, os Adventistas, as Testemunhas de Jeová, os Mórmons, os Espíritas, etc., em um jogo de soma-zero, porque, a meu ver, nesses casos, o número de cristãos fica exatamente o mesmo, as pessoas só trocando de time, por assim dizer, sem mudar de esporte ou mesmo de liga;
  • Conquistar, por evangelização ou trabalho missionário, gente que pertence a religiões não cristãs, como os judeus, os muçulmanos, os hindus, os budistas, os confucionistas, etc., bem como os praticantes de rituais de umbanda e do candomblé, ou outros, de matriz africana ou não, e que, em muitos casos, estão fora do eixo europeu-americano;
  • Conquistar, por evangelização, trabalho missionário, e assistência social, gente que por alguma razão, passou a adotar um estilo de vida que poderia ser considerado sub-humano, como drogados das diversas cracolândias, alcoólatras inveterados e abusados, ou gente que vive no submundo do crime, ou até mesmo estão nas prisões, que, em muitos casos, são variedades de submundo, etc., aqui no Brasil, ou mesmo no exterior;
  • Conquistar, por fim, por trabalho que, na verdade, é mais apologético do que evangelístico e missionário, gente que está totalmente fora do alcance de toda e qualquer igreja cristã ou instituição religiosa de vertente não-cristã, por convicção ou indiferença, como, por exemplo, ateus, agnósticos, céticos, secularistas, nihilistas, etc.(3)

Considero o último grupo o mais difícil de alcançar e atingir.

Pode haver outras categorias que me escapam, mas parece-me que as principais estão aí… A grande questão é se é realisticamente factível reverter o que me parece ser a tendência para um desigrejamento cada vez maior – que, é forçoso reconhecer, aumentou, em decorrência da pandemia de Covid, pelo aumento significativo dos cultos online, das lives, dos vídeos, dos eventos remotos, em telepresença, etc., para os quais as igrejas cristãs tradicionais continuam significativamente despreparadas. Mudar de canal, de website ou de grupo no whatsapp é muito mais fácil do que trocar de igreja local ou de denominação.

NOTAS

(1) The Great Dechurching: Who’s Leaving, Why Are They Going, and What Will It Take to Bring Them Back?, by Jim Davis & Michael Graham, with the collaboration of Ryan P. Burge and Preface by Collin Hansen (Zondervan Press, Grand Rapids, 2023)

(2) Essa tríade aparece também em um livro de Ryan P. Burge, que colaborou no livro citado na Nota 1. Seu livro tem o título de The Nones: Where They Came From, Who They Are, and Where They Are Going (Fortress Press, 2nd edition, Philadelphia, 2023). Vide o primeiro capítulo do livro para a discussão da tríade Belief, Behavior and Belonging. O título do livro aponta para aqueles que, no censo ou em outras pesquisas, ao serem indagados qual sua religião, respondem “Nenhuma”, que em Inglês é “None“. Por isso o autor os designa como “The Nones“.

(3) Além das inúmeras Apologéticas escritas por teólogos/filósofos profissionais, recomendo a leitura do livro de Sean McDowell & John Marriott, Set Adrift: Deconstructing what you Believe Without Sinking your Faith (Zondervan Reflective, Grand Rapids, 2023).

Em Cortland, USA, 9 de Janeiro de 2024



Categories: Liberalism

Leave a comment