Graham Greene e The End of the Affair

Nos últimos dias me enrosquei com Graham Greene, um dos meus escritores favoritos. Fui atender a um desses desafios que pedem pra gente listar os sete livros favoritos e enviar o desafio para sete amigos, coisa assim, e, ao definir meus sete livros favoritos me dei conta de que três deles eram da pena de Graham Greene: The Power and the Glory (O Poder e a Glória), The Heart of the Matter (O Cerne da Questão), e The End of the Affair (Fim de Caso, mais corretamente, O Fim do Caso). Esses livros foram publicados, respectivamente, em 1940, 1948 e 1951. Todos eles viraram filmes – o último, duas vezes, em 1955 (com Van Johnson e Deborah Kerr) e a incomparável versão de 1999, com Ralph Fiennes e Julianne Moore. The Power and the Glory foi filmado em 1961, com Sir Lawrence Olivier, Julie Harris e George C. Scott, e The Heart of the Matter, em 1953, com Trevor Howard, Elizabeth Allan e Maria Shell.

Deles três, o meu favorito é The End of the Affair – e por várias razões.

  1. Embora os três lidem com dilemas e conflitos religiosos e morais, os problemas dos dois primeiros livros são contextualizados em situações extremas: o México e Sierra Leone, na África. The End of the Affair se passa inteiramente em Londres – a maior parte da história no período da Segunda Guerra – e as pessoas e as situações se parecem mais com aquelas com as quais estou bem familiarizado. Os dilemas e conflitos religiosos e morais aqui giram em torno do fato de um escritor, solteiro, se apaixonar (e ter a paixão correspondida) pela mulher de um alto funcionário do governo britânico, que, para piorar as coisas, era amigo do escritor. Os personagens, no início, são britânicos típicos, bastante céticos, do ponto de vista religioso, e meio relativistas, do ponto de vista moral. Mas os incidentes da história (que desenvolve em uma Londres bombardeada constantemente pelos alemães) acabam por fazer os dois personagens principais confrontarem, de forma séria, e num contexto teológico, o seu caso – que vem a terminar (justificando o título) de uma maneira imprevista e, por um tempo, enigmática para quem lê o livro ou assiste ao filme. A história é muito bonita, mas, sem introduzir um spoiler muito sério, termina de forma trágica.
  2. Creio que de todos os romances de Graham Greene este é o que tem a técnica literária ou narrativa mais refinada. É o primeiro livro de Graham narrado em primeira pessoa. Quem o narra é Maurice Bendix, que, na história, faz o papel de um escritor tentando escrever um grande sucesso… Mas parte da história é também narrada – ou melhor, renarrada – de uma outra perspectiva, o de Sarah Miles, que mantinha um diário em que registrava suas idas e vindas e seus pensamentos… Quando o caso termina, misteriosamente para Maurice, este não se conforma, porque tudo parecia ir tão bem entre eles, e começa a acreditar que Sarah havia arrumado um outro amante. Não passa pela cabeça dele que ele pudesse ter resolvido voltar para o marido, porque com o marido ela sempre esteve ao longo de todo o caso dos dois. Maurice contrata um detetive e este acaba roubando o diário de Sarah, que Maurice começa a ler, devagar, em voz alta, contendo o ímpeto de folhear rapidamente para ver se encontrava ali a chave do mistério. Encontrou – mas é muito interessante acompanhar a renarração da mesma história, agora da perspectiva dela… Quantos detalhes que se completam e ficam explicados, inclusive aquele que não é realmente um detalhe, porque é a chave de toda a história. Então há duas narrativas em primeira pessoa que se entrelaçam. Mas o autor complica mais a sua técnica narrativa jogando com vários momentos da história e passando de um para outro de maneira a ir preenchendo as lacunas do conhecimento de quem lê o livro – ou vê o filme. O primeiro parágrafo do livro anuncia o que vai ser feito. Em que ponto se deve começar a contar uma história, pergunta o narrador? Poderia ser do começo, como faz a maioria dos escritores, ou do fim, com fazem alguns… Ele, porém, prefere começar a história no meio… E saltar, ora para trás, ora para frente – em alguns momentos ficando ali no meio da história e deixando o leitor impaciente para saber como é que as coisas chegaram àquele ponto – e para onde elas irão, a partir dali. Uma obra de mestre.
  3. Greene é um dos escritores britânicos mais famosos no miolo do século 20 (1930 a 1980, por aí). E foi muito biografado. Sua biografia mais pesada, em três volumes, tem 2.251 páginas (783+562+906). Foi escrita por Norman Sherry (que também biografou Joseph Conrad), que levou mais de vinte anos de sua vida, em dedicação exclusiva, para escrever essa que se tornou a sua obra prima (os volumes vindo a público, respectivamente, em 1989, 1994 e 2004). Como Greene morreu em 1991, ele chegou a ver o primeiro volume pronto – e achou o texto muito detalhado e cansativo… e com detalhes que teria sido melhor deixar de fora. Um dos detalhes aos quais a biografia dedica muita atenção é como os livros de Greene estão enraizados na experiência, vale dizer, na vida, do seu autor. No caso de The End of the Affair, que é discutido no segundo volume da biografia, e, portanto, não foi lido por Greene, tudo é esmiuçado — não fica pedra sobre pedra… A história é autobiográfica – o único detalhe significativo que foi alterado sendo o fato de que, na história, o escritor, Maurice, era solteiro, e, na vida real, Greene era muito casado, tendo se convertido ao Catolicismo para pode se casar com sua mulher, extremadamente católica… A Sarah da história, na vida real, era uma senhora da alta sociedade, também convertida ao catolicismo, e mãe de sete filhos (na história ela não tem filhos). Tanto a mulher de Greene como o marido de Catherine Walston (Lady Walston) sabiam do affair e, de certo modo, deram seu consentimento aos dois… Gente fina é outra coisa! Na alta sociedade inglesa todo mundo sabia do affair, Greene e Lady Walston constantemente viajavam pelo mundo juntos e passavam meses fora das respectivas casas… Mas agora Greene colocou tudo na frente do ventilador para que a sujeira se espalhasse… E o mais surpreendente é que Greene e Mr. Walston continuaram amigos ao longo de todo o caso… Acho fascinante, não só descobrir que há gente tão diferente da gente, mas, especialmente, mas perceber como o bom escritor aproveita as experiências que vive e é capaz de torna-las matéria prima de uma obra prima…
  4. Como já anunciei, o final da história é trágico – o que parece significar que Greene, em seu “catolicismo agnóstico”, reconhece que Deus aparentemente deixa as coisas rolarem como se não estivesse dando muita atenção para o que se passa aqui na nossa terrinha, mas, no frigir dos ovos, apresenta a conta, que inevitavelmente mostra que o pecado tem seu preço… Mesmo assim, a Igreja Católica quis que o livro fosse proibido e Greene e Lady Walston fossem excomungados, mas, pelo que consta, o Papa Paulo VI interveio, e numa audiência que Greene teve com ele no Vaticano, lhe disse que a conta terrena ele, o Papa, perdoava… mas sem garantir que a celestial também estivesse acertada…

Enfim… Vejam o filme, versão 1999 primeiro. E, depois, leiam o livro. Degustem-no devagar.

Em Salto, 7 de Dezembro de 2018.



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