Nesta terceira parte da discussão do tema (O Ceticismo e Eu), vou discutir o ponto de vista de W(illiam) K(ingdon) Clifford (1845-1879), apresentado, pela primeira vez, em 11.4.1876, numa palestra ministrada, sob o título The Ethics of Belief, na Metaphysical Society, uma associação britânica de filósofos e teólogos, fundada sete anos antes, em 1869. Nove meses depois, em Janeiro de 1877, a palestra foi publicada no periódico Contemporary Review (número XXXIX). Três anos depois de proferida a palestra, seu texto foi publicado também em Lectures and Essays, livro póstumo de Clifford, editado por seus amigos e colegas (na Metaphysical Society) Leslie Stephen & Frederick Pollock (Macmillan Co.). Desde que foi proferida, e especialmente depois de o texto ter sido publicado, o ponto de vista de Clifford tem causado muita celeuma e muita discussão.
Embora o texto que o tornou famoso e que faz com que ele seja discutido até hoje, tenha sido basicamente filosófico, Clifford era, por formação, um matemático, interessado nos aspectos mais teóricos e quase filosóficos da Física. Mas se interessava pela Filosofia. Durante seus parcos 33 anos de vida, conseguiu uma importante reputação como matemático e ganhou fama em decorrência de sua única obra na área da Filosofia.
O tema de seu texto, refletido no título, é que nossas crenças (beliefs) devem ser avaliadas não só através de critérios epistêmicos — se são verdadeiras ou falsas, ou, se isso não puder ser definido, se são justificadas ou não pela melhor evidência disponível — mas, também, através de critérios morais (se são moralmente corretas ou moralmente incorretas). Essa foi, à época, uma tese bastante inovadora.
Embora os critérios que permitem uma avaliação epistêmica de nossas crenças venham sendo propostos, analisados e discutidos há milhares de anos, mas de forma especial a partir do surgimento do chamado Empirismo Britânico, com John Locke e, posteriormente, com David Hume, sem que se tenha chegado a um real consenso (embora tenha havido progresso), a necessidade de que houvesse também critérios que permitissem sua avaliação moral foi levantada por Clifford, e, malgrado uma análise e discussão bastante rica nos quase 150 anos que passaram desde então, estão numa situação ainda mais precária do que os critérios epistêmicos.
A tese básica de Clifford é a seguinte:
“É errado — sempre, em todo lugar, e para qualquer pessoa — acreditar em algo com base em evidência insuficiente.”
“Errado”, nessa tese, provavelmente deve ser entendido como “moralmente errado”.
Como Clifford faz referência, em sua tese, à questão da “evidência insuficiente”, é de supor que a avaliação moral de nossas crenças dependa, pelo menos até certo ponto, de sua avaliação epistêmica. Acreditar em algo com base em evidência insuficiente é errado, na visão de Clifford, tanto do ponto de vista epistêmico como do ponto de vista moral.
Clifford começa seu texto com um caso hipotético. O dono de uma companhia de transportes navais está no processo de colocar no mar, para levar emigrantes para o estrangeiro, um navio já velho e que ele sabia que, mesmo quando novo, não era da melhor qualidade. Várias pessoas recomendaram a ele que não fizesse isso. Ele ficou preocupado, cogitou de mandar reformar o navio, mas recuou diante do custo elevado. Ele finalmente se convenceu de que o navio já tinha enfrentado várias outras viagens em condições semelhantes, sem maiores problemas. Ele também pôs sua confiança na Providência Divina, que não deixaria de proteger pessoas que estavam deixando sua pátria para buscar melhor sorte no estrangeiro. Por via das dúvidas, o navio estava bem segurado. O navio saiu, naufragou, todo mundo morreu, e ele recebeu o prêmio do seguro.
Dizer o que desse senhor, pergunta Clifford? O mínimo que se pode dizer é que ele foi moralmente culpado da morte dos passageiros e tripulantes. O fato de ele ter se convencido, com base em precedentes, de que o navio aguentaria mais uma viagem, e o fato de ele acreditar que, além de tudo, ele poderia contar com a ajuda divina, podem ser admitidos como evidência de que ele era sincero ao acreditar que não haveria maiores problemas. A questão, porém, ressalta Clifford, é: ele não tinha o direito de acreditar nisso dados os fatos sobre as condições do navio que eram de seu pleno conhecimento.
Clifford altera o seu caso um pouco. Imaginemos, diz ele, que o dono da companhia de transportes não estivesse errado em sua avaliação das condições do navio e em sua confiança na Providência Divina e que o navio tivesse feito a viagem em segurança, como havia feito tantas outras anteriormente. Alguma coisa se altera em relação à culpabilidade moral dele? Para Clifford, absolutamente não. Ele continuaria sendo culpado, só que ninguém descobriria o fato. Com base na evidência que ele possuía acerca da condição atual do navio, e com base em seu conhecimento de sua qualidade inicial, bem como dos riscos inerentes ao seu ramo de negócio, ele não tinha o direito de pôr o navio ao mar, independentemente do resultado que a viagem viesse a ter. Se a viagem tivesse chegado a bom termo, teria sido apenas por sorte (ou pela ação imponderável da Providência), não por estar ele correto em sua avaliação. Mesmo que a viagem tivesse chegado a bom termo, a verdade do pressuposto do dono da empresa não faz diferença. O que faz diferença é como ele chegou a acreditar que o navio se safaria sem maiores acidentes de mais uma viagem com base em seu desejo (wishful thinking): era isso que ele queria.
Como fica evidente nesse exemplo, argumenta Clifford, as crenças de uma pessoa não são uma questão totalmente pessoal sua, uma questão puramente privada. Nós agimos com base em nossas crenças. E nossas ações afetam outras pessoas, direta ou indiretamente. E essas outras pessoas sofrem as consequências de nossas crenças, ainda que de forma indireta, mediada pelas nossas ações. O fato de não ter havido a ação, ou de a ação não ter produzido resultados nefastos, não isenta as nossas crenças de responsabilidade moral — se essas crenças não forem sustentadas pela melhor evidência disponível no momento.
E é aqui que a avaliação moral de uma crença vem a depender de sua avaliação epistêmica. Se o dono da companhia de navios conseguisse provar (contra os termos do exemplo) que o navio era da melhor qualidade, que ele sofria revisões periódicas que atestavam sua perfeita navegabilidade, que a última inspeção feita no navio não demonstrara nenhum senão, ele teria direito de argumentar que sua crença de que a viagem chegaria a bom termo era baseada na melhor evidência disponível no momento. Ou seja: ele poderia tentar se isentar da culpa moral provando ter feito uma avaliação epistêmica impecável das condições do navio.
É por essa razão que, quando se discute Clifford, discute-se, ao mesmo tempo, John Locke e David Hume… Não porque eles tenham levantado a questão da avaliação moral de nossas crenças, mas porque eles levaram muito a sério a necessidade de uma avaliação epistêmica rigorosa — a melhor possível.
Eis o que afirmou John Locke, em 1690, quase duzentos anos (187, para ser exato) antes de Clifford proferir sua palestra:
“Aquele que crê, sem ter qualquer razão para crer, pode até estar apaixonado por suas próprias fantasias, mas não busca a verdade como deve, nem presta a devida obediência ao seu criador, que tem a intenção de que ele use as faculdades de discernimento que lhe foram dadas, para que pudesse ficar longe do engano e do erro. Aquele que não emprega todos os seus poderes para chegar à verdade e evitar o erro pode até encontrar a verdade, mas, se isso acontecer, terá sido por acaso; e eu não sei se esse acidente da sorte poderá lhe servir de desculpa para o procedimento irregular. Isto pelo menos é certo: ele deve ser considerado responsável por quaisquer erros que possam ocorrer. Por outro lado, aquele que faz uso da luz e das faculdades que Deus lhe deu, e busca sinceramente descobrir a verdade empregando as habilidades que tem e as ajudas que encontra, pode desfrutar a satisfação de fazer o seu dever de criatura racional, que pode, ocasionalmente, não encontrar a verdade, mas nunca perderá a recompensa reservada para aquele que a busca. Pois controla o seu assentimento corretamente, e o coloca onde deve, em relação a qualquer questão ou assunto, aquele que crê ou descrê conforme a razão o direciona. Aquele que age doutra forma transgride contra suas próprias luzes, e faz mau uso daquelas faculdades que lhe foram dadas para nenhum outro fim que não buscar e seguir a mais clara evidência e a maior probabilidade.” [John Locke. An Essay Concerning Humane Understanding, Livro IV, Capítulo XVII, Seção 24.]
Eis o que afirmou David Hume, filósofo sobre o qual escrevi minha Tese de Doutoramento (de 1970-1972), no ano de 1748, 129 anos antes da palestra de Clifford:
“Um homem sábio proporciona sua crença à evidência disponível. No caso de crenças que são fundamentadas em experiência uniforme [100%], ele [o homem sábio] espera, com o maior grau possível de confiança, que, no futuro, o mesmo continue a acontecer, pois sua experiência passada uniforme [sem exceções] é por ele considerada prova plena do que deverá acontecer no futuro. No caso de crenças que são fundamentadas em experiência não uniforme, ele deve proceder com mais cuidado. Neste caso, ele pesa a evidência de um lado e de outro e verifica que lado tem o apoio do maior número de experimentos, e para ele se inclina — mas, mesmo assim, com dúvida e hesitação. Se ele vier a firmar juízo [pode sempre suspendê-lo], ele deve reconhecer que a evidência pode não chegar ao nível em que é apropriado falar de probabilidade. Toda probabilidade, portanto, supõe uma oposição de experimentos e observações, em que se constata que um lado tem mais peso do que o outro, produzindo assim um grau de evidência proporcional a essa superioridade. Cem instâncias de um lado, e cinquenta do outro, produzem uma expectativa duvidosa de que o evento esperado possa vir a acontecer; mas quando se tem cem instâncias de um lado e apenas uma do outro lado, um grau bem mais forte de confiança pode, com razoabilidade, ser gerado. Mas em todos os casos em que há evidência dos dois lados, sempre devemos cotejar o número dos experimentos opostos, deduzindo o número de experimentos do lado que tem menos daquele lado que tem mais, para que possamos saber com precisão qual a força do lado que tem superioridade.” [David Hume, An Enquiry Concerning Human Understanding, Section X, “Miracles”].
Já que citei essa passagem significativa de Hume, retirada de seu capítulo sobre “Milagres”, em Uma Inquirição Acerca do Entendimento Humano, cito um trecho, de minha própria lavra, no meu primeiro artigo nesta série, que é relevante:
Hume operava dessa forma. Ao discutir a questão dos milagres, por exemplo, definidos como violações das leis da natureza, filósofos não muito céticos, e de orientação mais racionalista, como Spinoza, acreditavam que milagres eram impossíveis, pois as leis da natureza não são violáveis ou mesmo suspendíveis… Hume pensava diferente. Para ele era totalmente possível que o Sol, que aparece no céu todos os dias, introduzindo o dia, e sai do céu, anunciando a noite, um dia possa deixar de aparecer (de fato, não apenas se escondendo atrás das nuvens)… Para Hume, as chamadas leis da natureza, por mais bem justificadas que sejam, podem ser refutadas amanhã, e muitas leis que foram consideradas invioláveis por muito tempo já foram refutadas e abandonadas… (o conjunto das “leis” que sustentavam o sistema geocêntrico, na astronomia, por exemplo). Assim, para Hume, não vem ao caso se milagres são considerados impossíveis, porque são definidos como violações ou suspensões das leis naturais, que seriam invioláveis e insuspendíveis, porque essas leis são, admitidamente, falíveis e, portanto, violáveis… Para Hume a questão é se, diante da evidência existente para eles, milagres são críveis, mesmo por alguém, como ele, que admite a sua possibilidade. A questão passa do plano da Ontologia — daquilo que é — para o plano da Epistemologia — daquilo que podemos dizer que conhecemos ou sabemos. Hume admitia que, se ele visse um milagre comprovadamente acontecer diante dos seus próprios olhos, ficaria surpreso, mas propenso a acreditar na sua veracidade. O problema é que ele nunca havia visto um. Todos os milagres que se alega terem acontecido, se foram vistos por alguém, foram vistos por gente que não pode mais ser interrogada e examinada em juízo, por estar morta, em geral há muito tempo, ou por alguma outra razão… Assim, só tomamos ciência do suposto acontecimento de milagres através de testemunhos ou relatos de seres humanos inalcançáveis. A questão relevante, para Hume, é a da credibilidade de testemunhos e relatos humanos. Nossa experiência mostra que os seres humanos, mesmo quando relatam eventos não milagrosos, não raro erram, imaginando ter visto algo que de fato não aconteceu, ou que não aconteceu exatamente como eles alegaram, assim enganando-se eles próprios. Além disso, temos inúmeros exemplos de casos em que seres humanos, por uma razão qualquer, têm interesse em nos enganar, relatando ter visto uma coisa que, em seu íntimo, sabem que nem de longe viram… Com Hume são mudados os termos da discussão. Se alguém me relata o acontecimento de algo que eu, durante toda a minha vida, nunca vi acontecer, e se eu estou acostumado a ver gente que, ao me relatar alguma coisa, ou se engana ou tenta me enganar, eu sou obrigado a me recusar a crer no relato — isto, se eu sou uma pessoa sábia e razoável, que adequa ou proporciona suas crenças à evidência disponível…
Aqui, em Locke e Hume, está a fonte da maior parte das ideias de Clifford — se bem que nenhum dos dois tenha se aventurado a discutir explicitamente a questão da avaliação moral das nossas crenças. A preocupação maior deles era a questão da avaliação epistêmica, da qual, como se viu, a avaliação moral é dependente.
Voltando a Clifford, para concluir.
Como já foi dito anteriormente, neste artigo, para Clifford as crenças de uma pessoa não são uma questão totalmente pessoal sua, uma questão puramente privada. Aquilo em que cada um acredita, as crenças de cada um, longe de serem uma questão privada são questão de interesse geral, público, porque nós agimos com base em nossas crenças, e as nossas ações, dependentes de nossas crenças que são, afetam outras pessoas, direta ou indiretamente. E essas outras pessoas sofrem as consequências de nossas crenças, ainda que de forma indireta, mediada pelas nossas ações. Este o primeiro ponto significativo.
O segundo é que, para Clifford, temos um “dever universal de questionar tudo aquilo em que acreditamos”. Esse dever se expressa através da dúvida. Devemos sistematicamente duvidar da veracidade ou das credenciais epistêmicas das nossas crenças, submetê-las a escrutínio sério e rigoroso, porque a vida ou o bem estar de outras pessoas pode depender desse procedimento. Como, anos mais tarde, Karl Popper veio a salientar, não devemos esperar que os outros critiquem as nossas crenças: devemos nós mesmos criticá-las com seriedade e rigor, tentando falsificá-las e refutá-las — especialmente aquelas que nos são mais importantes e emocionalmente recompensadoras. Só temos o direito de continuar a mantê-las se fizermos isso. Se suspeitarmos que não somos capazes de fazer isso com suficiente objetividade em relação às nossas próprias, devemos pedir aos outros que critiquem aquilo em que acreditamos, porque, como disse John Stuart Mill, no seu magnífico livrinho, On Liberty, publicado em 1859, dezoito anos antes da palestra de Clifford, é só vivendo numa comunidade aberta em que todas as ideias podem e devem ser abertamente criticadas, é que vamos verdadeiramente depurá-las. Isso não é fácil, mas é a única forma de preparar um mundo melhor para as gerações futuras.
É isso, por enquanto. Até a quarta parte.
Em Salto, 5 de Agosto de 2020.
Categories: Belief, Criticism, Evidence, Rationalism, Reasonableness
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