“A literatura de ficção contém as verdades que a Divina Providência se esqueceu de fazer acontecer. . .” (Eu, modestamente, lembrando-me de algo que Ferreira Gullar um dia escreveu sobre a arte).
Fascinante… Preciso ler o livro resenhado no link abaixo imediatamente (Machado, de Silviano Santiago, Companhia das Letras, 424 páginas, R$ 69,90, 2016). Entrei na Amazon Brasil para comprar, sem perceber que a resenha diz: “Lançamento nesta segunda, na Livraria da Travessa do Shopping Leblon (3138-9600)”. Tenho de esperar até amanhã para que o pedido se confirme… [Nota acrescentada em 18/11/2016: o livro chegou ontem, 17/11/2016].
A questão das coincidências me intriga cada vez mais. Silviano Santiago nasceu no dia e mês em que Machado de Assis morreu. Sente-se, hoje, como Machado no fim da vida: solitário, sozinho, doente, sua única companhia sendo seus livros. Seu maior medo é morrer entre eles e só ser descoberto dias depois pela mulher da limpeza…
Outra coincidência: os outros dois escritores (Mário de Alencar e Magalhães de Azevedo), cujas iniciais também são M.A. e que também eram epilépticos…
E adoro gente que consegue escrever sem o compromisso de diferenciar claramente o que é história, o que é biografia, o que é autobiografia, o que é ficção.
Simone de Beauvoir era assim. Escreveu vários romances ditos autobiográficos e históricos, mas insistia que, neles, não tinha ela não assumia nenhum compromisso com a verdade. Misturava tudo. Se alguém é fissurado em distinguir verdade de ficção, que considere tudo ficção… Acho fascinante isso.
[Acrescentado em 18/11/2016: O livro de Silviano Santiago tem dois motes. Um é uma citação de Thomas De Quincey que afirma que o cérebro humano é “um palimpsesto natural e poderoso”. Interpreto isso no seguinte sentido: o cérebro humano armazena impressões, sensações e memórias, mas as coisas nele armazenadas nem sempre são descritas “wie sie eiglentich geschehen sind”, como elas de fato teriam acontecido, como se fossem a verdade original; além disso, com o passar do tempo, elas são apagadas (às vezes mal) por cima delas outras impressões, sensações e memórias são escritas, por vezes deixando aparecer traços das escritas anteriores, que os psicoterapeutas e psicanalistas tentam desenterrar… O segundo mote é de Jean-Paul Sartre, companheiro de Simone de Beauvoir. Ele afirma que todo escritor é um ficcionista. Faz referência a um livro que ele está escrevendo sobre Stendahl, que supostamente é uma biografia, mas que ele prefere que seja considerado uma obra de ficção… Bem coerente com a afirmação de de Beauvoir sobre seus romances autobiográficos…]
Quem sabe de Beuavoir tenha sido indiretamente influenciada por Michel Zévaco, autor de folhetins, que Sartre, seu companheiro de toda a vida, adorava ler quando criança e adolescente. Zévaco escrevia romances históricos sobre a França do século 16, especialmente, e ali misturava história e ficção com sua visão romântica e heroica, não de como as coisas de fato foram, embora a “história real”, “wie sie eigentlich gewesen ist” estivesse ali, mas de como as coisas deveriam ter sido para que a gente continue a admirar os nossos heróis e odiar os nossos vilões…
A prosa de Ayn Rand e Mário Vargas Llosa, dois de meus escritores favoritos (ela de longe a favorita), segue essa orientação (talvez porque Vargas Llosa admirasse Rand). A de Rand não pretende ter muito de autobiográfico, mas tem muito de histórico. A de Llosa é altamente autobiográfica – mas autobiográfica do que propriamente histórica ou simplesmente biográfica. Quem se interessar pelo assunto leia La Verdad de las Mentiras, de Vargas Llosa, onde ele leva minha tese um pouco adiante: a de que frequentemente há mais verdade na mentira (i.e., na ficção) do que na suposta verdade (i.e., na história e no jornalismo).
Fico a me lembrar de uma afirmação de Voltaire, que garantiu a seus leitores nunca ter dito uma mentira em sua vida inteira, mas que insistiu que havia inventado muitas verdades… A literatura de ficção contém as verdades que inventamos. Isabel Allende, chilena de nascimento, escreveu um livro sobre o Chile que tem o título de Mi País Inventado… Não é uma obra de história e geografia ou de jornalismo. É uma obra de ficção: é uma revelação sobre o Chile (no qual ela viveu pouco tempo) que ela criou em sua mente.
A literatura de ficção contém as verdades que a Divina Providência se esqueceu de fazer acontecer. . .
Quanto postei sobre esse assunto no Facebook disse que esse tema valeria um artigo. Transcrevo o post aqui como um primeiro rascunho do artigo… [acrescentando algumas observações retiradas do livro ou por ele provocadas, agora que o recebi]. Não consegui esperar, embora tenha de ler uma dissertação de mestrado da qual sou banca, que será defendida na quarta-feira. [Já li e a dissertação já foi defendida…]
Estou encomendando o livro. Quem sabe o leio nas férias… (Infelizmente, tenho de esperar até amanhã para a Amazon Brasil confirmar o pedido, como já disse…). [Repito: o livro chegou ontem. (Nota acrescentada em 18/12/2016)].
Vejam a resenha do livro em:
Antes de terminar: Já escrevi sobre o tema aqui. Vide meu artigo “Memória, Verdade e Autobiografias”, de 31/12/2015 — quase exatamente um ano atrás. Está na seguinte URL:
https://chaves.space/2015/12/31/memoria-verdade-e-autobiografias/
Em São Paulo, 11 de Dezembro de 2016 [revisto uma semana depois, em 18 de Dezembro de 2016].
Categories: Autobio, Autobiography, Biografia, Biography, Fiction, História, History, Lie, Literatura, Literature, Memórias, Memories, Mentira, Truth, Verdade
Também comprei o “Machado”, não vejo a hora de chegar! Concordo com seu ponto de vista no texto. Parabéns pelo site e muito sucesso. Abraços.
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Estou encomendando um para mim também… o inverno em Bruxelas é ótimo para ler!
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