A despeito das críticas que recebe, Facebook é um ambiente fantástico para promover discussões sérias e interessantes. Resolvi fazer um artigo com pedaços de uma conversa que aconteceu entre meu amigo Ivan Moura Campos e mim. Eu fui instado por ele a participar na conversa.
I. Mise-en-Scène
1) Em 17 de Fevereiro de 2018 Ivan publicou no Facebook o texto abaixo e colocou um tag no meu nome, que, segundo a praxe do Facebook, significa um convite para participar da discussão daquele tema.
Disse ele em seu texto.
“Trazendo para a ‘superfície’ o comentário que fiz a um post hoje, sábado, 17 de fevereiro de 2018.
Há uma questão epistemológica muito mal resolvida pelos socialistas de Pindorama: uma teoria só merece esse nome se mantiver, ao longo do tempo, sua verificabilidade e sua correspondência com a realidade observável.
A Física, paradigma das ciências da natureza, busca explicar a realidade observável do universo com modelos matemáticos de seu comportamento. O papel assumido pela comunidade científica — e isso é sinônimo de fazer ciência — é tentar encontrar erros nos modelos, isto é, inconsistências entre o que as teorias neles envolvidas dizem e o que realmente acontece.
O fracasso do Socialismo e do Altruísmo a ele subjacente se deve a essa falta de correspondência entre o que diz o modelo e o que acontece na realidade observável. A situação da Venezuela é mais uma a escancarar essa inconsistência, e o que vemos é uma atitude de inexplicável teimosia em rever conceitos, buscar as razões do fracasso, reconstruir o edifício conceitual.
O que fazem os socialistas? Ou negam que tenha havido fracasso, ou dizem que a implementação do Socialismo na Venezuela não correspondeu ao modelo preconizado, ou colocam a culpa nos Estados Unidos, ou, mais vagamente, no ‘Capitalismo Selvagem Internacional’.
Acordem: sua teoria tem furos graves e eles começam na sua concepção do que são direitos naturais da pessoa humana e na atitude profundamente antidemocrática de demonizar a desigualdade obtida por mérito, isto é, a excelência individual geradora de riqueza.” [Os itálicos foram acrescentados por mim, EC. Fiz mais umas pequenas mudanças na redação.]
2) No mesmo dia, eu respondi com o post a seguir transcrito, referindo-me ao que me pareceu ser a tese central do post publicado por Ivan Moura campos, com o entendimento de que a principal tese apresentada era que “o papel [da comunidade científica] . . . é tentar encontrar erros nos modelos, isto é, inconsistências entre o que as teorias neles envolvidas dizem e o que realmente acontece.”
Disse eu:
“Essa tese, com a qual concordo plenamente, é brilhantemente defendida por Karl Raymund Popper especialmente em seus livros The Logic of Scientific Discovery e Conjectures and Refutations [ambos já traduzidos para o Português há muito tempo]. Em vários lugares, nesses dois livros, e em outras publicações suas, Popper discute a diferença que há entre, de um lado, a Física (praticada por Einstein, por exemplo), e, de outro lado, o Marxismo (ilustrado por Marx). A Psicanálise (exemplificada por Freud e Adler) também é enfocada, ocupando, nas críticas, um lugar paralelo ao do Marxismo.
O critério básico que distingue a ciência (que tem na Física ou seu exemplar mais típico) e a diferencia e demarca de atividades intelectuais como o Marxismo e Psicanálise, é a sua falsificabilidade. A Física é falsificável – e os melhores físicos (Einstein evidentemente entre eles) sempre incentivaram a busca de erros em seus próprios modelos, teorias, e predições, bem como naturalmente, nos dos outros.
Thomas S. Kuhn mostrou, em The Structure of Scientific Revolutions, de 1962, também traduzido há muito tempo para o Português, que nem todos os físicos fazem isso. Aqueles que praticam o que ele chama de “ciência normal”, a ciência praticada na maior parte dos laboratórios científicos, onde militam os ‘operários’ da ciência (ou o seu ‘baixo clero’, para ser coerente com algumas das imagens usadas por Kuhn), não buscam falsificar os modelos e teorias (que Kuhn chama de paradigmas) debaixo dos quais operam. Só fazem isso os cientistas que se localizam ‘fora da curva’, e que praticam uma ‘ciência extraordinária’, na qual, vez ou outra, mas bem mais raramente do que Popper parecia imaginar, surge uma revolução que derruba um paradigma.
Os proponentes e defensores do Marxismo e da Psicanálise, no entanto, ao contrário de cientistas como Einstein, que praticam uma “ciência extraordinária” na Física, tentam a todo custo desenvolver estratégias imunizadoras contra qualquer possibilidade de falsificação. Eles assim buscar tornam suas teorias, na prática, infalsificáveis – achando que isso é um mérito, e não uma característica que as invalida como ciência.
Hans Albert, discípulo de Popper, tem um belo livro sobre esse tema, que tem o título de Traktat über kritische Vernunft (https://www.amazon.de/Traktat-über-kritische-Vernunft-Albert/dp/3825216098/). Custa 12.90 Euros em paperback. Que eu saiba, o livro não foi traduzido para o Inglês, muito menos para o Português.”
3) Na sequência Ivan Moura Campos retorquiu:
“Eduardo Chaves, você poderia clarificar seu ponto sobre a falsificabilidade da Física e as ‘estratégias imunizadoras contra qualquer possibilidade de falsificação’ que teria, por exemplo, a Psicanálise? Quando cito Albert Einstein e Jacques Lacan na mesma frase, tenho a impressão de estar violando alguma regra básica do universo.”
4) Vou tentar atender ao pedido de Ivan não só porque ele é meu amigo mas porque este é um dos assuntos que mais me interessam do ponto de vista intelectual. Vou escrever um breve ensaio, com elementos autobiográficos, mas também com elementos que extravasam essa dimensão pessoal e são de interesse generalizado.
Aqui vai.
II. Bartley
Eu vim a ter conhecimento mais aprofundado das ideias de Popper em 1970, quando negociei com William Warren Bartley III, então Professor de Filosofia na University of Pittsburgh, onde eu começava o meu Ph.D., que ele orientasse o meu trabalho sobre David Hume. Bartley era conhecido como “o popperiano” do Departamento de Filosofia, não só porque havia feito seu Doutorado na London School of Economics, sob a orientação de Popper, mas também porque a comunidade filosófica da Academia o tinha na conta de “discípulo amado” de Popper. Como os alemães chamam o Orientador de Doutorado de Doktorvater, talvez eu tenha o direito de considerar Popper meu Doktorgroßvater. . .
Além disso, a Tese de Doutoramento de Bartley, publicada em 1962 com o título de Retreat into Commitment, alcançou razoável notoriedade, sendo rapidamente traduzida para o Alemão. Nessa tese Bartley discutiu aquela que, até hoje, me parece ser uma das questões mais importantes da Filosofia:
É possível ser, de forma coerente, um racionalista consequente, que submete todas suas crenças prospectivas (tudo o que lhe parece passível de credência) ao escrutínio da razão, sem nenhuma exceção, e só aceita aquelas que, mostrando-se fundamentadas em fatos e argumentos sólidos, passam a merecer o título de conhecimentos e não de meras crenças?
Em um curto parêntese, registro que essa discussão alcançou seu ponto mais alto, antes de Popper, Bartley e outros discípulos do grande mestre, em um livrinho chamado The Ethics of Belief, escrito por um matemático-filósofo chamado W. K. Clifford, em 1877 no qual ele defende a tese de que é imoral acreditar em coisas para as quais a gente não tem evidência suficiente, criando seu famoso princípio de que “é errado — sempre, em todo e qualquer lugar — que alguém acredite em algo com base em evidência insuficiente”. O livrinho de Clifford acabou ganhando bastante notoriedade quando o famoso psicólogo-filósofo americano, William James, Professoro em Harvard, resolveu contestar sua tese, em um ensaio chamado The Will to Believe, publicado dezenove anos depois, em 1896. Defendeu ele a tese de que, mesmo não havendo evidência favorável, e desde que não haja evidência contrária, é legítimo crer, com base em motivos não-epistêmicos. Por exemplo, assumindo, por amor ao argumento, que não existam evidências e/ou argumentos suficientes para acreditar na existência de Deus, nem para negar sua existência, é admissível crer que Deus existe, porque essa crença torna as pessoas melhores como pessoas, mais tendentes a serem bons cidadãos, etc.
Ressalte-se que um problema semelhante havia sido levantado por Platão em seus diálogos, quando tentou mostrar que o conhecimento consiste de crenças que não são meras crenças, por serem verdadeiras e justificadas (isto é, verdadeiras e bem evidenciadas – as duas coisas são necessárias). Essa questão, que ocupou a Epistemologia durante toda a História da Filosofia, ocupava Bartley nos anos 60 do Século 20.
Qual era, no entender de Bartley, o maior obstáculo a esse racionalismo coerente e consequente (que ele chamou de Comprehensively Critical Rationalism)? Esse obstáculo era um argumento proposto especialmente por teólogos neo-ortodoxos, que, em resumo, era assim:
- Há dois acessos ao conhecimento: a razão, alicerçada na experiência sensorial, e a fé, alicerçada na revelação divina;
- Embora a razão, atuando em cima da experiência sensorial, possa (até certo ponto) justificar nosso conhecimento empírico, ela não pode justificar o comprometimento do indivíduo com a racionalidade (isto é, consigo própria), sem incorrer numa falácia de petitio principii (isto é, sem cair em circularidade), pois sua justificação precisaria fatalmente ser racional e, assim, a razão estaria pressupondo aquilo que seria necessário provar ao se justificar a si mesma;
- A fé, assumindo que o que lhe é dado crer tem origem na revelação divina, não sente necessidade de se justificar, porque a revelação divina ou seria intrinsecamente auto-autenticadora, ou então viria acompanhada de milagres e portentos, que a justificariam externamente — embora, talvez, até pudesse fazê-lo, como Tomás de Aquino, no Século 13, brilhantemente tentou fazer, justificando o recurso à fé através da razão);
- Se o racionalista acusar o crente de não conseguir justificar o seu compromisso com a fé, o crente pode, portanto, simplesmente redarguir que o racionalista também não consegue justificar o seu compromisso com a razão sem recorrer a uma falácia, estando ambos, portanto, tanto o crente como o racionalista, no mesmo patamar, pois nenhum dos dois consegue justificar seu compromisso sem circularidade: ambos consideram seus compromissos como ultimate commitments, incapazes de se justificar a si próprios sem circularidade (donde o título do livro de Bartley – que em Alemão é Flucht ins Engagement);
- Este, portanto, o famoso argumento tu quoque: “Eu não consigo, mas nem você” – argumento que poderia ser colocado na forma esculachada em que Justo Veríssimo o colocava: “Sou, mas quem não é?”
III. Popper
Bartley recorreu a uma saída popperiana para tentar escapar do tu quoque. Mas para entender sua saída, é preciso retroceder uns trinta anos e saltar de 1960 para mais ou menos 1930.
Popper nasceu em 1902, em Viena, e morreu em Londres, em 1994, com noventa e dois anos. É, em geral, considerado o maior filósofo do Século 20, embora, no mundo de fala inglesa, Bertrand Russell talvez lhe faça alguma sombra (quiçá por ter nascido antes e vivido mais tempo: 1872-1970, por ter se envolvido em causas políticas, por ter sido preso várias vezes por defender causas populares, e por ter, acima de tudo, sido recipiente do Prêmio Nobel da Literatura em 1950), e nos mundos de outras falas, alguns outros (como Jean-Paul Sartre e Martin Heidegger). [Há uma excelente biografia de Popper cujo primeiro volume foi lançado no ano 2000, mas ainda está à espera do segundo. Seu autor é Malachi Haim Hacohen, e o título do primeiro volume é: Karl Popper, The Formative Years (1902-1945): Politics and Philosophy in Interwar Vienna (Cambridge University Press, Cambridge).
A Viena “fin-de-siècle” já havia sido um local memorável. Mas a Viena do período entre as duas guerras mundiais talvez tenha sido o local mais estimulante para chegar à maioridade intelectual de todo o mundo moderno – quem sabe concorrendo, no período moderno, com a Paris da segunda metade do Século 18 (onde militavam Voltaire, Diderot, Condorcet, d’Allembert, e outros philosophes) e, expandindo o horizonte temporal, quem sabe perdendo para a Atenas antiga (por onde andavam Sócrates, Platão, e Aristóteles). Mesmo assim, é difícil tirar a prova. Em Viena, de 1870 a 1933 [1870 é o ano em que a Europa deu uma ajeitada na casa, por assim dizer, e 1933 é o ano em que Hitler começou a desajeita-la novamente, anexando a Áustria à Alemanha (Hitler era nascido na Áustria), através do chamado Anschluss], viviam, ou se encontravam com frequência, Albert Einstein, Sigmund Freud, Moritz Schlick, Rudolf Carnap, Ludwig Wittgenstein, Otto Neurath, Hans Hahn, Ernst Mach, Ludwig Boltzmann, Kurt Gödel, Theodor Gomperz, Heinrich Gomperz, Karl Menger, Ludwig von Mises, Friedrich von Hayek, etc. Há outros, mas bastam esses nomes. (Sugiro, nesse contexto, a leitura de Carl E. Shorske, Fin-de-Siècle Vienna: Politics and Culture; Allan Janik & Stephen Toulmin, Wittgenstein’s Vienna; e, mais recente e mais interessante do que os outros dois, Karl Sigmund, Exact Thinking in Demented Times: The Vienna Circle and the Epic Quest for the Foundation of Science).
Os membros do Círculo de Viena plus Popper nos interessam mais de perto aqui. Eles procuravam encontrar o fundamento maior da ciência (empírica e formal, esta envolvendo a Lógica e a Matemática) e, no processo, mostrar a unidade de todas as ciências (as humanas e sociais ficavam além do escopo de seus interesses). Foram eles que vieram a definir o famoso (assim chamado) Princípio da Verificação, que afirma mais ou menos o que Ivan Moura Campos descreve no início do seu texto: “uma teoria [científica] só merece esse nome se mantiver, ao longo do tempo, sua verificabilidade e sua correspondência com a realidade observável” Segundo esse princípio, para qualificar como científica, uma teoria tem de ser justificada empiricamente, isto é, tem de ser comprovada por testes empíricos, ou verificada através da experiência que, no fundo, é sensorial.
Assim sendo, a referência que faz Ivan Moura Campos à necessidade de uma teoria científica ter, como características, para merecer esse nome, “verificabilidade” e “correspondência com a realidade observável”, está totalmente de acordo com o que pensavam os membros do Círculo de Viena.
Para esses distintos cientistas-filósofos, se uma teoria não passar esse teste, ela não é científica. O que seria ela então? Alguns membros afirmavam que ela era uma teoria metafísica, mas a maioria dos membros preferia dizer que ela não chegava sequer a ter sentido. Um enunciado geral ou é ciência, ou é nonsense, meaningless gibberish. Tertium non datur. Essa posição foi rotulada de Positivismo Lógico, porque, primeiro, negava que houvesse conhecimento fora da ciência (poderíamos dizer que o lema do Positivismo era extra scientia nulla cognitio?) e, segundo, identificava um critério lógico (a verificabilidade) para demarcar entre ciência e não ciência. A própria filosofia só se justificaria como assessora e acessória da ciência, enquanto fosse entendida e definida como Análise da Ciência ou Análise do Discurso Científico. Está aí a origem da Filosofia Analítica, para a qual, primeiro Russell, e depois Wittgenstein, muito colaboraram.
Popper nunca foi membro do Círculo de Viena. Na realidade, nunca foi convidado para sê-lo, talvez por causa de sua arrogância e agressividade. Ficando de fora, Popper fez sua fama criticando o Círculo e a Filosofia Analítica que lhe era caudatária (embora, pessoalmente, fosse amigo de vários membros do Círculo e de vários filósofos analíticos). Que ele tenha severamente criticado o Marxismo também ajudou-o a não ganhar o convite. Seu primeiro livro, Logik der Forschung, em Inglês The Logic of Scientific Discovery, foi publicado, entretanto, em 1933-1934 sob os auspícios do Círculo de Viena e por decisão de Moritz Schlick, o iniciador e coordenador do Círculo, que foi assassinado por um aluno seu nas escadarias da Universidade de Viena em 1936 (já depois do Anschluss).
Qual foi a principal crítica de Popper ao Círculo de Viena?
A mais original e importante é que há uma assimetria lógica entre verificação e falsificação. Não importa quantas verificações possam ser obtidas por um enunciado geral universal (do tipo “Todos os x são y”), elas não garantem ou comprovam a veracidade do enunciado — mas uma só falsificação garante a sua falsidade. Assim, verificação é uma coisa e falsificação outra coisa, bem diferente. Uso um exemplo trivial que passa longe da ciência física: “Todos os cisnes são brancos”. Milhões ou até bilhões de verificações desse enunciado não garantem ou comprovam a veracidade do enunciado (o próximo cisne a ser observado pode não ser branco), mas um só cisne observado que não seja branco falsifica ou refuta o enunciado.
Há alguns corolários dessa constatação lógica. Mencionarei apenas três.
O primeiro é que a indução não pode ser parte do método científico, porque, como Hume, no Século 18, já havia demonstrado, ela não prova nada. Uma generalização à qual se chegue indutivamente, a partir da observação de casos particulares, por maior que seja o número dos casos observados, não pode ser considerada verdadeira, nem mesmo provável (a menos em casos de universos bem pequenos e delimitados).
O segundo é que a ciência não precisa lamentar a invalidade da indução, porque, na prática, ela é hipotético-dedutiva. O cientista encontra um problema, conjetura (imagina, inventa, recebe em um sonho, etc.) uma possível solução (a hipótese), e passa a testar essa hipótese, não acumulando casos positivos, mas procurando, de maneira séria e rigorosa, encontrar casos negativos, ou contraexemplos – isto é, tentando falsificar (refutar) e não verificar (comprovar) a hipótese. Se ele encontra um caso negativo, um só que seja, a hipótese é falsificada (refutada) e, em princípio, deve ser rejeitada. Se encontra um milhão de casos positivos, isto nada significa.
[Um parêntese. Atrás afirmei que “a referência que faz Ivan Moura Campos à necessidade de uma teoria científica ter, como características, para merecer esse nome, ‘verificabilidade’ e ‘correspondência com a realidade observável’, está totalmente de acordo com o que pensavam os membros do Círculo de Viena”. Aqui preciso afirmar que a referência que faz Ivan Moura Campos à necessidade de a comunidade científica assumir o papel de encontrar erros nos modelos e teorias propostos e identificar inconsistências entre o que eles afirmam e o que realmente acontece na realidade, está totalmente de acordo com o que pensava Karl Popper, maior crítico do Círculo de Viena. Essa pequena inconsistência entre as duas afirmações pode decorrer do fato de que em seu post inicial Ivan não atentou para a assimetria entre Verificação e Falsificação. Fim de parêntese.]
O terceiro é que o cientista, ao formular suas hipóteses, não deve buscar hipóteses difíceis de falsificar ou refutar, porque essa dificuldade em regra decorre do fato de que seu conteúdo empírico é reduzido – o que, para Popper, é muito mal. O cientista deve ousar e arriscar-se, buscando, isto sim, hipóteses que tenham grande quantidade de conteúdo empírico, e que, portanto, sejam mais facilmente testáveis (i.e., falsificáveis, refutáveis, desmentíveis pelos fatos).
Um exemplo que não é uma hipótese, mas uma predição, ilustra bem a diferença entre conteúdo empírico reduzido e conteúdo empírico rico. Se eu digo “Vai chover”, simplesmente, o conteúdo empírico de minha predição é mínimo: virtualmente nada a refuta – e isso porque eu disse muito pouco! Se não chover no dia em que a predição foi feita, eu não preciso considera-la refutada, porque eu não disse que seria naquele dia; se não chover durante mil anos em nenhum lugar da Terra, eu (supondo que estivesse vivo para continuar argumentando) não preciso considera-la refutada, porque não disse que seria dentro de mil anos nem que seria na Terra… e assim por diante.
Mas se eu digo “Vai chover mais de 5 mm na próxima hora do dia de hoje na parte Leste do campus da UNICAMP em Barão Geraldo, em Campinas”, o conteúdo empírico de minha previsão é rico – e isso porque eu estou dizendo muita coisa. Se chover a cântaros no resto do mundo na próxima hora do dia de hoje, mas não chover no campus da UNICAMP, a predição foi falsificada; se chover no campus, mas apenas depois de 61 minutos, ou apenas na parte Oeste, a predição foi falsificada, também. A predição só não é refutada se chover mais de 5 mm na parte Leste do campus da UNICAMP em Barão Geraldo nos próximos 60 minutos.
E se chover, como previsto, o enunciado é verdadeiro? Em princípio, sim, porque ele é bastante específico e particular. Se fosse um enunciado geral e universal, não, porque sempre seria possível que viesse a ser falsificado em outro momento ou local.
IV. Popper, a Física, a Psicanálise e o Marxismo
Para Popper, o Princípio da Falsificação Empírica demarca (distingue, diferencia, separa) a ciência da não-ciência. Os enunciados não falsificáveis podem, para ele, ainda ter sentido e mesmo ser verdadeiros – embora não empiricamente verdadeiros. Assim Popper vê as coisas. O fato de admitir a existência de conhecimento não científico, como metafísico, filosófico, religioso, ético, etc. deixa claro que Popper não é positivista (ao contrário do que afirmam muitos críticos esquerdistas dele). Logo, ainda que fosse convidado por Moritz Schlick, Popper provavelmente não aceitaria ser membro do Círculo de Viena (e não porque, como Groucho Marx, um Marx bem mais divertido do que o outro, não aceitasse ser membro de nenhum clube que o aceitasse como membro…).
O jovem Popper, vivendo em meio a grandes cientistas e em meio a gente que pretendia ser cientista, mas não era, ficou impressionado com a diferente atitude que prevalecia entre os físicos, em especial no caso de Einstein, e os proponentes da Psicanálise e do Marxismo.
Popper ilustra, no caso de Einstein, com a previsão que o próprio Einstein fez (com base em sua teoria da relatividade) acerca da atração gravitacional da luz. Ele mesmo indicou que essa previsão poderia ser testada no caso de um eclipse solar total. Refinou seus cálculos e deu o número, em graus, a que ele havia chegado para medir a força dessa atração gravitacional. (Estou falando em minhas palavras). Disse, por fim, que, se os seus colegas, ao fazer os experimentos, durante um eclipse total do Sol, obtivessem resultados diferente, ele mesmo admitiria que estava errado e que sua teoria tinha problemas sérios, não merecendo ser considerada uma teoria que devesse continuar a ser testada. Houve o dito eclipse, cientistas se deslocaram para vários pontos do mundo em que ele poderia ser visto (até o nordeste brasileiro) e o resultado foi favorável a Einstein – naquele teste específico: no próximo, poderia não ser. O resultado favorável não provou sua teoria, mas mostrou que ela tinha “estofo”: que era capaz de vencer testes difíceis e rigorosos, definidos de antemão, e que tinha confiança em si mesmo, porque prometeu reconhecer que, caso sua teoria viesse a se mostrar falsa, ele a rejeitaria.
No caso da Psicanálise, Popper trabalhou com Adolf Adler em Viena, ajudando crianças carentes da periferia. A partir de um momento ele começou a observar um menino que parecia não ter passado pela fase do Complexo de Édipo (pela qual, segundo Freud, todo mundo passa). Popper dedicou inúmeras horas, em vários dias, semanas, e anos a observar o menino. Quando achou que tinha um caso bom de refutação da teoria do Complexo de Édipo, foi até Adler apresenta-lo. Adler o escutou por um tempo e lhe disse: “Que nada, é fácil explicar isso”. Popper redarguiu: “Como, se você nem chegou a ver o menino e nem acabou de me escutar?” A isso Adler arrematou: “Não vi este mas vi mil outros”. Popper, amargo, lhe disse: “Anote aí, antes de assinar minha admissão, que você viu o seu 1001º menino” – e foi embora para não mais voltar. (A linguagem do diálogo é minha, mas o sentido é fiel a Popper). Sua conclusão foi no sentido de que os grandes pilares da Psicanálise haviam encontrado “estratégias imunizadoras” que impediam que sua teoria fosse falsificada. Não podiam deixar que nada que acontecesse viesse a falsificar suas teorias principais. Do ponto de vista lógico, suas teorias estavam refutadas – mas eles, como os esquerdistas mencionados por Ivan Moura Campos no início de seu post, faziam de conta que não viam.
O número dessas estratégias é enorme e elas são usadas em todas as áreas, até mesmo na Física, como bem demonstrou Thomas S. Kuhn (um historiador da Física). O que diferencia Popper de Kuhn é que Popper acha que isso depõe contra a Física – enquanto Kuhn acha que isso é a coisa mais normal nos laboratórios de Física mundo afora, acadêmicos ou industriais. O que Kuhn chama de “ciência normal” é a ciência em que ninguém está preocupado em falsificar, refutar e substituir ou rejeitar uma teoria que se tornou paradigmática. Pesquisa, neste caso, é tentar fazer com que a realidade se ajuste ao paradigma e se encaixe em seus escaninhos. Pesquisar é resolver quebra-cabeças para as quais o paradigma de antemão garante que haverá solução. A teoria paradigmática funciona como verdade assumida.
Um filósofo (Antony Flew), em meados do Século 20, aplicou essas ideias à religião cristã, que afirma que Deus é sumamente bom. Daí acontece que uma criança nasce com problema congênito sério. Os crentes inventam uma explicação (estratégia imunizadora): Deus está testando a fé dos pais. Depois há um tsunami que mata milhares de inocentes. Os crentes acham uma nova explicação: Deus estava punindo a população majoritariamente pagã que morreu no tsunami. E assim por diante. A afirmação de que Deus é sumamente bom nunca é falsificada: ela foi imunizada por um conjunto de estratégias imunizatórias (Immunisierungsstrategien, como dizia Albert).
E o Marxismo? No seu livro A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, que ele escreveu durante a guerra, enquanto se refugiava na Nova Zelândia, Popper desmonta as estratégias usadas. O Comunismo finalmente viria numa sociedade industrial avançada, previu Marx. Não veio nem na Inglaterra, nem na Alemanha, nem nos Estados Unidos: veio na Rússia agrária e atrasada. A luta de classes iria se intensificar nas sociedades em que o Capitalismo mais avançou, e isso certamente levaria o proletariado à revolução. Mas operários e patrões se aliaram e conseguiram evitar a revolução, optando por mudanças pacificamente obtidas através da legislação dita progressista, e a revolução não veio. E assim vai.
V. Bartley e Popper
Voltando ao final da primeira seção. A saída popperiana de Bartley, em defesa de um racionalismo coerente e consequente foi se recusar a justifica-lo mas dispor-se a analisar toda e qualquer crítica que a ele fosse feita. Como, no entanto, para criticar o Racionalismo, seria necessário argumentar, e, por conseguinte, usar a razão, o Racionalismo sairia vencedor e vindicado, qualquer que fosse o resultado da crítica…
Parece uma estratégia barata – ou um golpe baixo. Mas, no fundo, não é. Se alguém pedisse (ele está morto desde 1990) a Bartley que justificasse sua adoção do Comprehensively Critical Rationalism, ele diria que não é possível justifica-la, mas que ele está disposto a rebater qualquer crítica e tentativa de refutação que se faça a ela. Se a crítica for racional, a adoção está vindicada. Se a crítica não for racional (seja isso o que for), não há porque ele deva leva-la a sério.
Assim, ele continua a aceitar o CCR.
VI. Eu, Bartley e Popper
Meu contato com Bartley e, depois com Popper (com o qual troquei algumas cartas) deu um novo direcionamento à minha vida profissional. Meu contato com a obra de Ayn Rand, a partir de 1973, confirmou essa nova direção e mexeu com minhas ideias não só na área epistemológica, mas também no domínio em que valores estão envolvidos: a ética e política.
Concordo plenamente com Ivan Moura Campos que as esquerdas (comunistas, socialistas de vários matizes, até mesmo socialistas cristãos, social-democratas, etc.) se recusam a admitir que a realidade já falsificou suas teorias. O doente morreu, mas as esquerdas se recusam a mostrar o defunto e a permitir que ele seja enterrado. Ficam, entre eles, maquiando o morto.
Agradeço ao amigo Ivan o ter-me convidado a participar da discussão. Ela está continuando.
Em 1º de Março de 2018.
Eduardo CHAVES
Categories: Bartley, Círculo de Viena, Popper, Racionalismo Crítico
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