A Propósito do Dia do Escritor

Amanhã, dia 25 de Julho, é Dia do Escritor. Escrevo este artigo (em 2019) a propósito desse dia, que se refere à profissão que escolhi para mim depois de me aposentar como Professor. O artigo vai dar alguma volta antes de chegar à função e ao papel do Escritor.

Em Julho de 1997, vinte e dois anos atrás, criei uma empresa que usa o nome fantasia MindWare (em regra acompanhado de outros substantivos, conforme o caso: MindWare Tecnologias, MindWare Edutec.Net, MindWare Editora, Mindware Consultoria, e, tem tempos mais recentes, simplesmente MindWare Education).

Essa empresa é especializada em instrumentos e ferramentas (ware) usadas pela mente (mind) — donde MindWare [1].

Quando se fala em instrumentos e ferramentas, a maior parte das pessoas pensa em hardware, isto é, em instrumentos e ferramentas tangíveis como martelos, furadoras (furadeiras), chaves de fenda, parafusadoras (parafusadeiras), formões, plainas, lixadoras (lixadeiras), trenas, etc., todos eles usados, em última instância, pelo corpo do ser humano, mais especificamente pelas suas mãos (nenhum dos quais, dessa lista, eu sou capaz de usar bem, apesar de ter uma grande quantidade deles…). (Uma “hardware store” nos Estados Unidos vende tudo isso mais enxada, foice, outros utensílios agrícolas, e mais um monte de coisas [2]).

É importante registrar que, para que o corpo use esses instrumentos e ferramentas tangíveis, é necessário que haja uma participação da mente: na aprendizagem do uso e na aplicação do que se aprendeu.

No meu caso, porém, eu sempre estive (e continuo a estar) interessado em mindware, instrumentos e ferramentas intangíveis a serem usados, de forma direta, pela mente — mesmo que esses instrumentos e ferramentas intangíveis possam, ou mesmo precisem, vir a ser incorporados em algum meio tangível para transmissão e comunicação (como se verá em mais detalhe na sequência).

Os principais instrumentos e ferramentas intangíveis são conceitos, enunciados (proposições), questões, conjeturas, hipóteses, teorias, doutrinas, dúvidas, linguagens, notações, métodos, técnicas, etc., que nos ajudam a organizar nossas percepções e a entender o mundo (inclusive o nosso lugar no mundo, como seres vivos e humanos, que têm uma mente, e que precisam conviver no mundo não só com outros seres humanos, mas com outros seres vivos, com seres materiais inanimados, não vivos, e, quem sabe, até com seres imateriais, vivos / animados, ou não…), para que possamos agir nesse mundo de maneira inteligente, solucionando problemas, criando ou construindo coisas (objetos, artefatos, organizações, instituições, normas, regras, leis, etc.), tornando o mundo, enfim, um lugar melhor para nossa curta vida (curta, para os seres humanos — outros animais não se preocupam, pelo que tudo indica, com a duração de sua vida, e seres imateriais, como deuses e espíritos, pelo que consta, são eternos ou imortais).

Contribuíram para que eu chegasse a essas reflexões (e, oportunamente, ao nome de minha empresa) várias considerações, as mais importantes das quais originárias (tanto quanto eu saiba) de meu mentor de segundo nível, Karl Raymund Popper [3] (chamo-o de mentor de segundo nível porque ele foi orientador de doutorado do meu orientador de doutorado, William Warren Bartley III). Em um dos artigos contidos em seu livro Objective Knowledge, Popper criou (tanto quanto eu saiba  ideia é original dele) uma Ontologia (teoria do ser ou da realidade), que divide as coisas que existem na realidade em três “Mundos”: o Mundo 1, o Mundo 2, e o Mundo 3. Vou chamar essa contribuição de Popper de “Teoria dos Três Mundos”.

O Mundo 1 é o mundo das entidades materiais, tangíveis, sejam elas inanimadas ou animadas (pedras, plantas, animais, seres humanos – que, afinal de contas, têm um corpo que, infelizmente, ou, talvez, felizmente, um dia morre e se decompõe).

O Mundo 2 é o mundo das entidades mentais ou psicológicas, imateriais e intangíveis (cheio das entidades que mencionei em um parágrafo anterior: conceitos, enunciados, etc.). Esse mundo, por mais rico que seja, está, no que nos diz respeito, na mente dos seres humanos, mente essa que, infelizmente, segundo parece, morre, ou se torna de difícil acesso, quando o corpo vinculado a essa mente morre [4]).

É nesse contexto que se torna importante o Mundo 3. Ele é o Mundo 2 materializado, ou seja, incorporado em alguma substância basicamente material (algum “medium“, ou, como se diz em Português, alguma “mídia”, palavra no singular em nossa língua, embora usada, frequentemente, em sentido também plural: a mídia para as mídias — no Inglês “media” é plural de “medium“).

Fazem parte do Mundo 3:

  • Poemas, discursos, contos, histórias, instruções, etc. verbalizados em forma oral (declamados, proferidos, contados, narrados, comunicados, etc.);
  • Poemas, discursos, contos, histórias, ensaios, tratados, enciclopédias, dicionários, instruções, métodos, software, etc. verbalizados em forma escrita (manuscritos, impressos ou gravados em papel, ou gravados em meio magnético ou óptico, etc.);
  • Sons diversos gravados em diversas mídias, como fitas, discos, cartões, tabletes, etc., de forma analógica, magnética, óptica, etc.);
  • Imagens diversas gravadas em diversas mídias, como fitas, discos, cartões, tabletes, etc., de forma analógica, magnética, óptica, etc.);
  • Artefatos diversos, como esculturas, edifícios, pontes, etc., construídos com diferentes materiais (existentes na natureza ou, por sua vez, construídos de materiais mais elementares da natureza), como terra, argila, pedra, madeira, ferro, aço, plásticos, polímeros, etc.).

Essas mídias todas permitem que todo esse conteúdo psicológico das mentes das pessoas, conteúdo que desapareceria com sua morte, seja preservado para uso por terceiros em sua ausência física ou material ou, mais importante, mesmo depois de sua morte (física, assumindo que haja outros tipos de morte, talvez até piores).

Acho essa ideia genial — digna do gênio que Popper foi.

Essa Ontologia Popperiana nos permite lidar com razoável facilidade com problemas que, doutra forma, seriam quase intratáveis. Por exemplo: o que é um livro? Um livro, eu diria, é um conjunto de ideias, conceitos, enunciados, teorias, histórias, etc. que existe, em um primeiro momento, na mente de alguém (isso é, no Mundo 2, que é o mundo mental ou psicológico). Essas ideias, etc. podem ser referir a entidades e seres do Mundo 1, isto é, aspectos da realidade física ou material, da realidade biológica, inclusive da realidade humana, ou até mesmo de uma presumida realidade espiritual, mas apenas na medida em que essas entidades e esses seres (essas realidades) sejam apreendidas por uma mente (por uma entidade do Mundo 2). Mas se não fosse a criação do Mundo 3, que é um mundo tipicamente humano, aquilo que faz parte da realidade do Mundo 2 de um ser humano desapareceria com sua morte. É a existência do Mundo 3 que permite que os conteúdos do Mundo 2 sejam materializados pela sua incorporação, no caso de um livro, através de palavras (faladas ou escritas) ou, em parte, através de desenhos, pinturas, esculturas, etc.

Tomemos a Ilíada e a Odisseia, por exemplo. Num primeiro momento o conteúdo daquilo a que hoje nos referimos por esses títulos existiu na mente de uma pessoa – Homero. Antes da invenção da linguagem verbal (que faz uso de palavras), esse conteúdo provavelmente consistiu apenas na forma de imagens visuais e lembranças sonoras na mente de Homero: não era ainda algo compartilhável e comunicável. Certamente não era um texto. Para ser transmitido ou comunicado a outros, foi necessário, primeiro, que uma linguagem verbal (composta de palavras) fosse antes inventada. Enquanto essa linguagem verbal tinha apenas uma dimensão oral, o conteúdo poderia ser declamado, memorizado, etc., mas, na minha forma de entender essas coisas, não era ainda um livro. Era, na minha forma de entender, um poema, um discurso, um conto, uma história oral. No meu modo de entender, não era sequer um texto, porque, para mim, o texto requer certa medida de estabilidade.

Para que um poema, um discurso, um conto, uma história, etc. se torne um texto, a linguagem verbal em que ele se encontra tem ainda de evoluir de modo a adquirir uma dimensão escrita (escrita alfabética, saliente-se), para tanto sendo necessário que seja inventado um alfabeto, sejam estipuladas formas de relacionar os fonemas (que, em sentido básico, são as menores unidades de som que entram numa determinada língua) aos grafemas (que, também em sentido básico, são as letras ou combinações de letras do alfabeto capazes de expressar um fonema), etc. Foi só quando isso aconteceu para a língua grega que a Ilíada e a Odisseia se tornaram textos e livros. (Há textos que não constituem livros: artigos, cartas, anotações, etc.).

Assim, para que haja escritor, cujo dia se comemora amanhã, é necessário que haja linguagem verbal escrita, que torne possível a existência de textos — mas não é necessário que haja livros, porque as pessoas podem escrever panfletos, artigos em jornais e revistas, etc.

Além disso, mesmo que alguém escreva um livro, não é necessário que esse livro esteja apresentado em um determinado estágio da evolução da tecnologia. Um livro, seja ele manuscrito, impresso, ou em formato digital (e-book), é o mesmíssimo livro. O texto (ou, em um caso específico, um livro) surge quando o que está na mente de alguém é colocado em palavras escritas. O que muda, quando o livro é manuscrito, impresso ou digital, é a facilidade com que ele pode ser alterado e redistribuído. Escrever um livro grande a mão leva muito tempo. Imprimi-lo em papel, em uma gráfica, leva bem menos. Mas redistribuir um e-book alterado é instantâneo.

Caro colega escritor, parabéns pelo nosso dia! Nossa atividade profissional é das mais nobres: converter experiências e ideias privadas em algo público, que pode ser compartilhado com pessoas que nunca  vimos — e que continuarão disponíveis mesmo depois de nós não estarmos mais aqui.

Mas, se posso lhe dar um conselho, contribua para a proteção de nosso planeta distribuindo seus livros em formato digital. Só há vantagens. Poupe as árvores, não desperdice papel para imprimir o seu livro nem contribua para que os outros desperdicem madeira para construir estantes.

Notes

[1] O termo “ware” em Inglês quer dizer basicamente “mercadoria”, especialmente quando associado ao adjetivo “hard” (ver a nota seguinte, sobre “hardware store“). Mas neste contexto, faz sentido traduzi-lo como “instrumento”, ou até mesmo “ferramenta”.

[2] Eis como a WikiPedia em Inglês define “hardware store” no primeiro parágrafo do artigo com esse título: “Hardware stores (in a number of countries, “shops”), sometimes known as DIY [“Do It Yourself”] stores, sell household hardware for home improvement, including: fasteners, building materials, hand tools, power tools, keys, locks, hinges, chains, plumbing supplies, electrical supplies, cleaning products, housewares, tools, utensils, paint, and lawn and garden products directly to consumers for use at home or for business. Many hardware stores have specialty departments unique to its region or its owner’s interests. These departments include hunting and fishing supplies, plants and nursery products, marine and boating supplies, pet food and supplies, farm and ranch supplies including animal feed, swimming pool chemicals, homebrewing supplies and canning supplies. The five largest hardware retailers in the world are The Home Depot, Lowe’s (both of the United States), Kingfisher of the United Kingdom, Obi of Germany, and Leroy Merlin of France.”

[3] Refiro-me, em especial, a “Epistemology Without a Knowing Subject” e “On the Theory of the Objective Mind”, ambos os artigos in Objective Knowledge: An Evolutionary Approach (The Clarendon Press, Oxford, 1972, pp. 106-152 e 153-190, respectivamente.

[4] Não vou entrar aqui na discussão do dualismo “mente – corpo”, embora eu, seguindo Popper, seja dualista. Acredito que o ser humano tenha, ou seja, uma combinação de um corpo e uma mente e que os dois interagem. Como os dois se relacionam é um problema filosófico e científico complicado – e se a mente pode existir independentemente de seu corpo, antes de seu nascimento, ou depois de sua morte, um problema filosófico e teológico talvez mais complicado ainda, especialmente porque uma resposta positiva pode provocar o levantamento da questão da reencarnação, da transmigração, etc. Para o ponto de vista de Popper, vide Karl R. Popper, Language and the Body-Mind Problem: In Defense of Interaction (Routledge, London, 1994; edited by M. A. Notturno) e Karl R. Popper e John C. Eccles, The Self and Its Brain: An Argument for Interactionism (Routledge, London, 1977). (O título desse livro é extremamente provocador. Ele sugere que é o corpo que pertence à mente [ou self, como Popper e Eccles preferem], não a mente ao corpo.) Para um resumo rápido da questão como vista por Popper, vide o artigo de Randal Samstag, “Popper and the Mind Body Problem”, no blog Notes from my Library (16/4/2011), no URL https://notesfrommylibrary.com/2011/04/16/popper-on-the-mind-body-problem/.

Em Salto, 24 de Julho de 2019



Categories: Books, Mindware, Uncategorized

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