Sobre os Supostos Direitos dos Animais (para não Falar dos das Plantas)

Fala-se muito em direitos humanos ultimamente. A questão que pretendo levantar aqui está, de certo modo, implicada na pergunta: A expressão “direitos humanos” é um pleonasmo, ou é possível falar de direitos de outras entidades que não sejam seres humanos – como, por exemplo, os animais?

Minha atenção foi levada para essa questão por um artigo, que li hoje (agora cedo), na London Review of Books (LRB), de autoria de Daisy Hildyard, com o título “On the Farm” (LRB, 7.6.2018, Vol. 40, No. 11, pp.22.23, URL: https://www.lrb.co.uk/v40/n11/daisy-hildyard/on-the-farm). Esse artigo desencadeou em mim uma série de perguntas e reflexões que colocam uma série de questões de difícil resposta e solução.

O contexto do artigo – seu Sitz im Leben, como diriam os alemães – é o seguinte. Aparentemente, em decorrência de ser membro da União Europeia, a Grã Bretanha foi obrigada a acatar, e inserir em seu próprio corpo jurídico, uma série de leis promulgadas pelo Parlamento Europeu. Tendo em vista sua possível (provável) saída da União Europeia, a Grã Bretanha está removendo de sua legislação leis que só estavam lá por terem sido aprovadas pelo Parlamento Europeu.

No que segue, vou relatar e discutir questões e perguntas que o artigo suscitou em mim mais do que aquelas contidas explicitamente no texto da matéria do LRB.

Uma das leis que foram removidas do corpo jurídico britânico foi a que definia animais não-humanos como sentient beings, isto é, seres capazes de sentimentos e emoções como dor e prazer, desconforto e contentamento, quem sabe até (no caso de alguns animais, como os cães), sentimentos e emoções mais complexas, como amor e lealdade para com o dono, alegria quando vê o dono depois de longa ausência, vergonha quando faz algo errado, como destruir o sofá da sala, etc.. Aparentemente o objetivo dessa lei da União Europeia foi fornecer um respaldo filosófico-científico que justificasse punir seres humanos por maus tratos a animais não-humanos – em especial animais domésticos (como cães e gatos) e domesticáveis (como cavalos e bovinos). São especialmente estes os animais que a autora do artigo contempla ao dar ao seu artigo o título de “On the Farm” (Na Fazenda).

Embora se possa dizer que árvores e outras plantas sejam sensíveis (se maltratadas, podem morrer, sem bem-tratadas podem vicejar), de um jeito que pedras e rochas não são, é difícil atribuir sentimentos e emoções a plantas, de modo a poder punir, por ferir seus sentimentos, o por lhe causar emoções negativas, quem a maltrata. Por outras razões (pelo dano que causam ao meio ambiente, por exemplo) já se admite punir seres humanos que maltratam (ou matam, cortando) plantas. Cortar uma árvores ou desmatar uma área pode, hoje, levar um ser humano para a cadeia.

Mas animais como cães (diferentemente de gatos, cavalos e bovinos) indiscutivelmente são capazes de sentimentos, mesmo alguns razoavelmente complexos e elevados. (Há um filme, protagonizado por Richard Gere (Hachi, a Dog’s Tale, 2009), em que um cachorro acompanha o dono até a estação ferroviária, todos os dias, quando o dono sai para o trabalho, e o espera no mesmo local, ao final do dia. Num dado momento, o dono do cachorro sai para o trabalho, morre por lá, e não mais retorna no trem costumeiro ao final do dia. O cachorro o aguarda até tarde e volta para casa macambúzio. No dia seguinte, passa o dia em casa, mas à tarde vai até a estação, na expectativa de que o dono retorne. E assim para sempre – evidência de amor e lealdade.)

Diante de evidências como essas, os legisladores britânicos, como seria de esperar, enfrentaram oposição e crítica ao remover do corpo jurídico britânico a lei que afirmava que animais são capazes de sentimentos e emoções. Em uma saída tipicamente britânica, um legislador afirmou, de forma pouco engenhosa, que não era contra a tese de que animais são capazes de emoções e sentimentos – era apenas contra haver uma lei que afirme que os animais sejam capazes de emoções e sentimentos… Outro legislador afirmou que não faz sentido manter no corpo jurídico britânico uma lei cujas implicação (que o maltrato de animais capazes de sentimentos e emoções é punível) é diariamente violada nos frigoríficos e outras instituições de abate de animais – e mesmo em casas de sítio e fazendas). Essa resposta faz mais sentido, porque obriga alguns dos defensores da lei a serem pouco engenhosos em seu argumento, afirmando que os frigoríficos e casas de abate são obrigados a não fazer sofrer os animais que abatem, infligindo a eles uma morte indolor…

Enfim, foram essas considerações que me levaram a me perguntar se faz sentido dizer que animais têm direitos, mesmo que se reconheça que vários deles são capazes de sentimento e emoção, ou se direito é uma categoria que se aplica exclusivamente a seres humanos, que representariam, por conseguinte, a única categoria de animais passível de incluir sujeitos de direitos. Nesse caso, acrescentar ao termo “direitos” o qualificativo “humanos” seria pleonástico.

Antes de prosseguir, é preciso refinar um pouco a questão.

Primeiro, matar (ou abater) um animal, ainda que seja por método totalmente indolor, se é que existe, e sem causar tensão prévia no animal (isto é, sem que este perceba que vai ser liquidado), parece-me ser o cúmulo do maltrato. Na minha maneira de ver as coisas, diante de matar um boi, dar um chute em um cachorro é café pequeno.

Segundo, se isso é verdade, e eu acho que a tese é difícil de contestar, a questão se desdobra em pelo menos duas:

  1. De que forma é possível justificar a criminalização de maus tratos a animais domésticos, como cachorros e gatos, que não são, pelo menos no Ocidente, objeto de abate para que sua carne seja consumida por seres humanos;
  2. É possível, nesse contexto, deixar de criminalizar o abate (ainda que indolor) de bovinos, suínos, galináceos, mesmo quando eles são reproduzidos e criados para fins de abate para consumo de seres humanos?
  3. Se criminalizarmos o abate de animais para consumo humano, e sacralizarmos ou sacramentarmos a vida em todas as suas formas, o que fazer em relação a animais venenosos como cobras e escorpiões, a animais nojentos (e portadores de doenças) como baratas e ratos, e a micro-organismos que combatemos com remédios chamados antibióticos – termo que quer dizer “antivida”?

Colocada dessa forma diferenciada em três, a questão inicial (dos animais capazes de sentimento e emoção) fica mais complicada e pode até mesmo perder importância, pelas seguintes razões:

Primeira, acho difícil estabelecer uma distinção significativa entre os animais do item “a” (animais domésticos como cães e gatos) e os animais do item “b” (animais domesticáveis como cavalos, bovinos, galináceos e outros (cordeiros, bodes, cabritos, peixes diversos, etc.) que justifique a criminalização de maus tratos aos primeiros e justifique o abate dos segundos.

Segunda, concedo (pelo menos por amor ao argumento) que animais mencionados no item “c”, como cobras, escorpiões, baratas, ratos, vírus e bactérias não são capazes de sentimentos e emoções, e, portanto, só diferem dos animais mencionados no item “b”, a meu ver, pelo fato de que os do item “b” são benéficos ao ser humano (lhes dão carne, leite, etc.) e os mencionados no item “c” são maléficos  (em alguns casos seu veneno mata, em outros sua presença no organismo humano pode causar doenças e até mesmo matar).

A grande questão é: como sair dessa enrascada de forma decente e filosoficamente justificável:

  1. em um extremo, sem admitir como moralmente defensável maus tratos generalizados a animais, pelo menos os domésticos, mencionados no item “a”, atrás, condenando e punindo o que se fazia antigamente, e algumas pessoas ainda fazem, a esses animais;
  2. em outro extremo, admitindo como moralmente defensável o combate por todos os meios possíveis a animais que causam mal ao ser humano, como os mencionados no item “c”, atrás, e isso significa deixar de punir quem mata cobras, escorpiões, talvez morcegos, ratos, baratas e vírus e bactérias nocivas ao ser humano;
  3. no meio, o que fazer com a inclinação de boa parte dos seres humanos de saciar a sua fome com a carne de animais de terra, céu e mar, sem lhes violar desnecessária e excessivamente a liberdade que um regime liberal deve procurar resguardar ao máximo.

Está aberta a discussão.

Em Salto, 25 de Novembro de 2019



Categories: Animals, Human Rights, Plants, Rights, Uncategorized

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