Ainda Outra Crônica Antiga: Formaturas

[Esta crônica foi escrita logo depois da formatura de minha filha mais nova, Patrícia, em Junho de 2000].

Formaturas

De sexta às 23h até sábado por volta das 4h30 estive no Baile de Formatura de minha filha caçula. Cento e vinte formandos de Odontologia, curso diurno, de uma Universidade da região (não vou dizer o nome para não ficar chato, diante do que vou dizer adiante), mais ou menos 1800 pessoas no salão. Fomos de ônibus especial, os quase trinta convidados, por uma razão de bom senso. Primeiro, o aluguel do ônibus saiu o mesmo preço do que cerca de quinze carros no estacionamento. Segundo, e mais importante, de ônibus você consegue voltar para casa mesmo meio bêbado, segundo me informaram os sábios e sensatos jovens que sugeriram a medida. Embora a viagem não tenha durado mais do que trinta minutos (com chuva torrencial), pois a casa de eventos era em Jaguariúna, eles conseguiram consumir dois litros de uísque antes de chegar lá — para não mencionar umas substâncias supostamente energizantes vendidas em umas latinhas. Lá, mais três litros de uísque se esgotaram fácil, além de não sei quantas cervejas e garrafas de vinho (estas incluídas no preço — o uísque tive de comprar e levar – e nem gosto de uísque).

No salão, era impossível se movimentar. Para dançar, você tinha de pedir para, por amor de Deus, lhe darem um metro quadrado de chão. Lá fora, a chuva caía sem dó. Dentro, a gente suava – e era começo do Inverno! As formandas de longo (o que sobrava em baixo faltava em cima), os rapazes de terno preto com gravata borboleta. Quando eu me formei no ginásio, em 1959, se bem me lembro, o traje já era este — para vocês verem como a gente em 1959 já era avançadinho: usava roupas do ano 2000.

A comida, sofrível — coxinhas, bolinhas de queijo, perninhas de siri, e mais algumas coisas do gênero. Assim que cheguei dei 10 reais de gorjeta para a moça dos salgadinhos (e mais dez para o garçom das bebidas) e fomos bem tratados. Um dia ainda vão chamar isso de corrupção. A garrafa de cerveja chegava à metade e ele já a trocava por uma mais gelada. Os salgadinhos esfriavam eles levavam e traziam outros (?) quentes.

Para os pais, tocaram uns dois boleros e duas musicas de Ray Conniff (Aqueles Olhos Verdes e outra). Depois tocaram duas valsas de Strauss, uma para os formandos com os pais, a outra para os formandos com os cônjuges ou equiparados. Depois disso, o estilo era rebola a bundinha e solta um punzinho (juro que ouvi uma música que dizia exatamente isso).

Como não gosto de som alto, não gosto de muita gente perto de mim (especialmente bebendo), e detesto calor, diverti-me pra valer. Arre! Aproveitei o tempo para filosofar — ignorando os olhares fulminantes de meus companheiros de mesa, que, acredito, se sentiram assim meio esnobados por mim. Procurei fazer como aquele individuo, num comercial meio antigo já, que tomava cerveja numa mesa no meio de uma arena de touros — manter a calma, sorrir quando absolutamente necessário, gingar o corpo um pouco, ainda que sentado, quando o ritmo ficava irresistível, e esperar que o tempo prossiga em seu curso inexorável. Tempo é um negócio muito importante: resolve muitos problemas. Oportunamente, até o maior dos problemas, a própria vida.

Meditei, primeiro, sobre as razões por que alguns consideram diversão aquilo que estava acontecendo ali ao meu redor. Lembram da piada da hiena? De por que ela ri? Fiquei sentindo a mesma coisa. Mas acredito que achei a resposta: lugar superlotado, temperatura acima de 30 graus, barulho ensurdecedor, comida de botequim — só estando bêbado mesmo para achar aquilo divertido. Eles bebem tanto para conseguir se convencer de que o que estão fazendo é divertir-se. Não conseguem entender como alguém pode se divertir mais (neste caso de fato), lendo um livro, sentado, sozinho, numa sala cheia de estantes, em sua própria casa. Para se divertir, eles precisam estar em turma e estado avançado de intoxicação. Não sabem extrair de dentro de si, em estado de plena consciência, o prazer autêntico e refinado que uma boa leitura, uma boa música, um bom filme, ou uma boa conversa, podem produzir — e que não é provocado por terceiros, mas vem de dentro. Senti-me um privilegiado, ali, ao perceber que eu podia filosofar até no meio do caos.

Fiz voltar meu pensamento para a noite anterior, a da colação de grau. No mesmo local, só que com as cadeiras dispostas como em um auditório. 240 formandos (os do noturno colaram grau juntos). Que coisa mais deprimente ver aqueles marmanjos vestidos de beca, com uma touquinha na cabeça e um laço colorido na cintura. Até quando as nossas universidades vão preservar essas tradições primitivas? Quatro horas de “festa”! Para colar o grau, tinham de parar na frente do Diretor do Centro de Ciências da Saúde, que papagaiava algo ininteligível enquanto aproximava um barrete da cabeça do formando. Este, ao sair dali, colocava aquele chapelete ridículo na cabeça, assinava um livro (que poderia ter sido assinado no dia anterior), era fotografado em não sei quantas poses, e voltava para o local em que estava sentado.

O clima medieval era quebrado, de vez em quando, por umas malditas buzinas de ar que se usam em campo de futebol hoje em dia, e que arrebentam com os tímpanos de quem está perto. Ou por umas cartolinas supostamente divertidas nas mãos de formandos, que diziam coisas assim: “Já está chorando, mãe?”, “Troco um fogão e uma cama por um equipo”, “Procuro emprego”, etc. Divertido?

A isso se acrescenta a brasilidade irresponsável da classe média brasileira. As dez primeira fileiras de cadeiras indicavam que eram para os pais dos formandos. Mas não havia cordinha nem ninguém fiscalizando. O que vocês imaginam certamente aconteceu. Quem quis se sentou ali. Na hora de começar, havia quase uma centena de pais sem lugar. Daí avisaram pelo som que não iriam começar a “festa” até que os que não eram pais saíssem das dez primeiras fileiras de cadeiras para dar lugar para os pais. Avisaram nada menos do que DEZ vezes. Alguém saiu? Ninguém. Daí vieram com seguranças e tiraram aqueles que tinham caras jovens demais para passar por pais. Os mais velhos, ficaram. Nem assim deu para sentar todos os pais. Eu, que estava inicialmente na primeira fila (chegamos 45 minutos antes para pegar o melhor lugar), e vários outros pais, vimos com assombro que iriam colocar algumas novas fileiras de cadeiras na nossa frente. Quase houve briga de socos. Finalmente, chegou-se a um compromisso. Colocaram umas poucas novas fileiras de cadeiras, mas todas as fileiras existentes, até a nona, mudaram algumas fileiras para frente, deixando as filas vazias, lá atrás. De vez em quando inteligência e justiça aparecem neste nosso mundo.

Mas não adiantou grande coisa. Avisaram que não era para levarmos câmera de qualquer espécie — fotografias e filmagens seriam apenas pela empresa contratada. Contei no mínimo umas duzentas câmeras, de vídeo ou fotográficas — e todo portador de câmera vinha filmar ou fotografar, você sabe, ali: exatamente na minha frente. Uma senhora, na casa dos seus 45 anos, pediu licença para se apoiar no meu joelho enquanto se acocorava para melhor tirar uma foto — e, depois, novamente, para se por de pé. Gritos de “sai da frente”, “abaixa” (razão para que a dita senhora tenha se acocorado) abundaram.

Na hora de chamar os formandos, houve um problema. Pelo que pareceu, um formando não foi chamado na ordem em que deveria. Bastou isso para que a senhora (?) sua mãe se mandasse para a frente do salão e começasse a discutir com o mestre de cerimônias, na frente dos microfones, que ele tentava tapar. Ele não podia parar de chamar o pessoal (afinal, eram 240), e a matrona continuava e lhe enfiar o indicador nas fuças, enquanto as dela fumavam. Foi lá umas cinco vezes. Depois sumiu. Ou chamaram o filho dela, ou ela descobriu que ele a havia enganado e não estava se formando coisa nenhuma. Imaginei o vexame do marido da referida senhora. Tivesse sido comigo e eu teria desaparecido do salão, ou fingido uma síncope cardíaca.

Os paraninfos, patronos, homenageados, etc. fizeram discursos que me fizeram corar de vergonha. Como podem professores universitários dizer tanta bobagem — e, por cima, dizer mal! A gente espera que no curso eles tenham tido desempenho melhor. Mas duvido. Afinal de contas, de dentistas se espera que eles saibam trabalhar na boca dos outros, não com a própria.

Formatura, gente, é isso.

Mas estou contente. Minha filha está formada, e empregada, tratando dos dentes do povo da periferia da cidade. Tratando canais — porque, para minha surpresa, ela fez o que chamaram de curso de especialização nessa área enquanto fazia o curso de graduação. Nunca soube que você pudesse se especializar antes de se formar – ou enquanto se forma. Mas ela, apesar de não ter sido uma estudante brilhante, não me causou dissabores durante o curso (exceto pelo excesso de despesas) e é esperta. Vou lhe dar, proximamente, o supremo voto de confiança de deixá-la tratar de um canal na minha boca.

Em Campinas, Junho de 2000. Publicada aqui neste blog em Salto, 26 de Maio de 2020.



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